sábado, 5 de fevereiro de 2011

Dona Úrsula

A única mulher que deu nome a uma rua, em São Vicente da Beira, chamava-se Úrsula Maria Robalo(Roballa,na época) e nasceu em Vila Velha de Ródão, de pais residentes nas Sarzedas, onde viveu até casar. O matrimónio foi anterior a 1720, com António Velho de Brito, natural de Monsarraz e Capitão de Cavalos, em Morão.
O casal fixou residência em São Vicente, talvez porque o noivo, reformado da vida militar, tenha decidido voltar à terra dos seus antepassados, pois aqui havia pessoas com o apelido Velho de Brito. Mas esta é apenas uma hipótese.
A documentação da época refere 6 filhos deste casal: Antonio (nascido em 1720), Joana, Francisco (a mãe deixou duas missas por sua alma), Isabel e Constança (a mãe deu, em testamento, um cadeado de ouro a cada uma) e Luís Nogueira de Brito, seu testamenteiro.
Dona Úrsula faleceu, no dia 8 de Julho de 1764. Teria pouco mais de 20 anos quando casou e veio morar para São Vicente. Aqui viveu mais de 40 anos, sendo considerada de São Vicente, pelo Cura Domingos Gaspar, que registou o seu óbito e o seu codicilo(pequeno testamento).
A Câmara deu o seu nome à rua onde morava e também é lembrada na toponímia de uma propriedade, a Tapada de Dona Úrsula.
Em 1775, a casa onde Dona Úrsula vivera já estava sem morador e, no ano de 1779, o seu filho Luís Nogueira de Brito não vivia em S. Vicente da Beira. Em 1808, a azenha deste, na Torre, já andava na posse dos seus herdeiros.


Codicilo de Dona Úrsula Robalo:
(Linguagem e pontuação actualizadas)

«Primeiramente, deixa que seu corpo seja sepultado na Igreja Matriz desta vila de São Vicente da Beira e que, sendo horas competentes, se lhe faça uma vigília do uso da Igreja. No dia do seu falecimento, acompanhem seu corpo os clérigos da freguesia e lhe digam missa por sua alma cada um. E o ofício devido da Igreja se lhe faça o mais breve que puder ser.
Deixa mais, por sua alma, cinquenta missas; item deixa as três missas de Santa Catarina; deixa por alma de seu marido, dez missas; por alma de seu pai e mãe, oito missas; por alma de seu filho Francisco, duas; pelas almas do Purgatório, duas; por penitências mal cumpridas, duas; pelos irmãos das Irmandades a que tiver faltado com as rezas, duas; ao Anjo da sua Guarda, uma missa; à santa do seu nome, uma; ao Santo Nome de Jesus, uma; à Senhora do Rosário, uma.
Deixa que a acompanhem todas as Irmandades desta freguesia e a cada uma lhe deixa meio alqueire de centeio.
Declara ela testadora que, depois de seu bem de alma satisfeito e dívidas pagas, deixa o que … (sobrar) da sua terça a sua filha Dona Isabel. Deixa que a um rapaz que criou, chamado Vicente Velho, de Maria de Sousa, lhe mandem ensinar um ofício ou lhe dêem dinheiro para comprar uma besta menor.
E roga a seu filho Luís Nogueira Velho que, pelo amor de Deus, queira ser seu testamenteiro, de quem fia, como bom filho que foi sempre, dará inteiro cumprimento a esta sua disposição.
Declarou mais ela dita testadora, na presença das testemunhas neste codicilo assinadas, que deixava mais uns cadeados de ouro a sua filha Dona Isabel e a sua filha Dona Constança, pelo amor de Deus, por ser assim a sua última vontade.»
(Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Registos Paroquiais de São Vicente da Beira, Óbitos, microfilme 145)


Genealogia de Dona Úrsula Robalo:

1. António Nogueira era filho de António Nogueira, senhor de um morgado com capela na Igreja das Sarzedas, onde moravam. Casou com Isabel Tavares.
2. António Nogueira de Tavares “o Velho", filho dos anteriores, casou com Filipa Rodrigues Peres e foi Capitão-Mor das Sarzedas.
3. Um filho deste casal, Domingos Nogueira Peres, nascido nas Sarzedas, em 1627, foi também Capitão-Mor das Sarzedas. Depois serviu na Guerra da Restauração (1640-1668), no posto de Capitão de Infantaria de Auxiliares. O Terço de Infantaria de Auxiliares, também chamado Terço das Ordenanças, agrupava 3000 soldados das ordenanças locais e, em 1796, passou a chamar-se Regimento de Milícias. Casou, em S. Vicente da Beira, com Maria de Lemos, no ano de 1653. Ficou a viver na Vila, onde foi Capitão-Mor e faleceu, em 1685. Em S. Vicente da Beira, foi senhor da Casa dos Nogueiras.
4. Leonor Nogueira, também filha de António Nogueira de Tavares “o Velho” e de Filipa Rodrigues Peres (n.º 2), casou com Diogo de Sequeira Pecegueiro, na povoação de Álvaro, mas ficou a morar nas Sarzedas, pois aí nasceram os filhos do casal.
5. Margarida Nogueira de Andrade, filha da n.º 4, nasceu nas Sarzedas, em 1630, e casou com Pedro Luís da Costa, de Tinalhas. Também residiram nas Sarzedas, pois aí nasceram os seus cinco filhos.
6. Luís Nogueira da Costa, filho da n.º 5, casou, nas Sarzedas, com Maria Robalo de Abreu.
7. Úrsula Maria Robalo, filha do n.º 6, nasceu em Vila Velha de Ródão, mas o seu registo de casamento atribui-lhe a naturalidade das Sarzedas, pois terá lá vivido até casar. Depois residiu em S. Vicente da Beira, onde casou com António Velho de Brito, de Monsarraz. O casal teve seis filhos: António e Francisco, que faleceram antes da mãe; Isabel e Constança, a quem sua mãe deixou alguns bens em codicilo; Luís Nogueira de Brito, que as genealogias não referem, mas sabemos ter sido testamenteiro de sua mãe e dono de uma azenha na Torre; Joana Úrsula de Abreu Velho, que segue.
8. Joana Úrsula de Abreu Velho, filha da n.º 6, nasceu em S. Vicente da Beira, no ano de 1724, e casou no Freixial do Campo, em 1744, com Francisco Ribeiro da Costa, filho de Manuel Jordão da Costa e de Margarida Josefa.
9. António Velho de Brito, filho da n.º 7, nasceu nas Sarzedas, em 1746, e casou em Lisboa. Foi alferes de Cavalaria n.º 4.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A resina no Museu


Vai ser inaugurada domingo, dia 6 de Fevereiro, no Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, em Castelo Branco, a exposição “A Campanha da Resina”, sobre o ciclo de produção da resina, concebida por Paulo Santiago e organizada e produzida pelo Centro Ciência Viva da Floresta, em colaboração com a Câmara Municipal de Proença-a-Nova. Na cerimónia de inauguração, às 16H00, actua o rancho folclórico “Os Resineiros”, de Corgas, do concelho de Proença-a-Nova.
A mostra, que estará patente até dia 27 de Fevereiro, inclui painéis descritivos de todo o ciclo produtivo, um filme, vestuário e alfaias utilizadas pelos resineiros e até troncos de árvore mostrando como eram feitas as incisões (feridas) e colocados os canecos de barro.
Refira-se que, há meio século, o distrito de Castelo Branco produzia um décimo do total de resina entrada nas fábricas de destilação em Portugal e gerava uma receita anual calculada, à época, em 17 mil contos de réis. A resina natural é obtida por exsudação da árvore a partir de sucessivas incisões no lenho, de forma a fazê-la sangrar. Os resineiros trabalhavam em grupo para os produtores de resina, que lhes pagavam à jorna e simultaneamente pagavam aos donos dos pinhais o número de incisões exploradas.

Fonte: Jornal Reconquista online, 4 de Fevereiro de 2011.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Xisto e granito

As fotos da casa onde foi preso o Pistoria, residência, em 1939, de José Maria Rodrigues e Maria de Jesus Carvalho, merecem-nos um outro olhar, na perspetiva da arte de construir.
São Vicente situa-se em vale xistoso. Bastava escavar no chão e arranjava-se pedra para uma casa. Mas era uma pedra pequena e mole e, assim, para as partes mestras da construção (aberturas e esquinas) ia-se à serra, a cortar e a aparelhar o granito, trazido depois em carros de bois.
Por baixo das janelas, colocavam-se pedras de granito, com apenas 1/4 da espessura da parede (cerca de 20 cm), a fim de permitir que as pessoas estivessem à janela (se a parede ali tivesse a mesma largura, as pessoas mal conseguiam chegar com a cabeça ao exterior). É por esta razão que a janela da primeira imagem tem mais pedras de granito na parte inferior do que nas outras partes envolventes.


O lado da empena, virado a sul. Janela da sala. Na época, a janela era de madeira e de guilhotina.


A porta principal de entrada na casa (dava para a sala), virada a oeste. À esquerda, um curral. O antigo telhado era de telha lusa e a porta de madeira.


A porta de serviço (no corredor que levava à cozinha), virada a este. A antiga porta era de madeira.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Eleições Presidenciais


Apresentam-se os resultados da freguesia de São Vicente da Beira, seguidos das percentagens do concelho (Castelo Branco) e do todo nacional.

Cavaco Silva: 61,55% (437 votos); 50,41%; 52,95%
Manual Alegre: 18,31 (130 votos); 24,57%; 19,76%
Fernando Nobre: 10% (71 votos); 14,39%; 14,1%
José Coelho: 4,37% (31 votos); 4,3%; 4,49%
Francisco Lopes: 3,94% (28 votos); 4,91%; 7,14%
Defensor Moura: 1,83% (13 votos); 1,42%; 1,57%

Votos Brancos: 2,55% (19 votos); 4,8%; 4,26%
Votos Nulos: 2,28% (17 votos); 2,43%; 1,93%

Votantes: 47,97% (741 votantes); 46,55%; 46,52%

Fonte:
Comissão Nacional de Eleições
http://www.presidenciais.mj.pt/index.html

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O livro da Filarmónica



Como noticiei na altura, a Sociedade Filarmónica Vicentina encerrou as comemorações do seu Centenário, com um concerto e o lançamento de um livro, na Igreja Matriz, dia 26 de dezembro, domingo.
De acordo com a sua ficha técnica, não posso transcrever partes do livro ou mostrar imagens, sem uma autorização escrita. Como não a tenho, aqui deixo o que é possível. E sobretudo o apelo para que todos os vicentinos comprem este livro, pois vale a pena e estamos a ajudar a nossa banda.


Ficha Técnica

Título:
Sociedade Filarmónica Vicentina 1910-2010
Um Século de Cultura, Um Século de História

Autor: António José da Conceição (Tó Sabino)

Edição: Sociedade Filarmónica Vicentina

Ano: 2010

Fotografias: Arquivo do GEGA, Tó Sabino, João Paulino, Pedro Gama Inácio, Rui Pedro e Dário Inês

Preço: 10 euros

sábado, 22 de janeiro de 2011

Mais do Pistotira

O tempo
Luís Rodrigues, o menino que correu atrás da mãe e viu o Pistotira ser preso em casa do irmão Zé Maria, fez 79 anos há poucos dias e disse-me que, naquela época, tinha 7 anos. Assim, esta história terá ocorrido cerca de 1939.

O espaço
A história desenrolou-se na Barroca, na Tapada de Dona Úrsula e na Praça: taberna do Arrebotes e antiga Câmara.
A Barroca situa-se acima da Lajes, junto à laje e presa do Paço. Nesse local, o vale afunila e existem muitas captações de águas, em minas e represas (presas), para regadia.
Na altura, só existia uma habitação, na Tapada da Dona Úrsula. A partir de meados do século, foram construídas mais três: uma de Manuel Candeias e Carlota Prata, outra de José Candeias e Estela Prata e uma terceira de António Teodoro e Maria da Luz Prata, os meus pais.
A taberna do Arrebotes situava-se na casa números 26 e 28 da Rua do Beco. Mas não era do João Jerónimo, por alcunha dos Arrebotes, mas sim dos pais da mulher dele, Maria de Deus. Como o João dos Arrebotes também lá vivia e trabalhava, o povo dizia que era a taberna do Arrebotes. Anos mais tarde, o João Jerónimo e a Maria de Deus viveram e exploraram uma taberna na Rua da Igreja, onde os conheci, nos anos 60.
A prisão do Pistotira na antiga Câmara terá sido uma das últimas utilidades do edifício, antes de ser adaptado a Escola Primária, obras que se realizaram pouco tempo depois. A lareira, numa sala ao fundo do corredor, já existia desde o tempo em que ali funcionava a Câmara. Havia uma latada encostada ao edifício, do lado do Largo Hipólito Raposo, onde hoje se situa a sede da Junta de Freguesia e na altura funcionava a Regedoria.


Legenda: 1 - Barroca; 2 - Tapada da Dona Úrsula; 3 - Praça (taberna do Arrebotes e Câmara).


A residência do José Maria e da Maria de Jesus, onde o Pistotira pediu para o deixarem aquecer-se. A presa foi, depois, substituída pelo tanque, mas situava-se mais perto da casa.


A entrada da casa, onde o Pistotira foi bater. Na época, tinha uma porta de madeira. A cozinha era à direita. O postigo, na imagem, era o do corredor para a sala, pois o postigo da cozinha fica à direita, do outro lado da casa. Não o fotografei, porque está tapado com silvas.


Esta quelha/vereda sobe na perpendicular à Rua da Cruz. Foi por ela que os homens desceram, com o Pistotira a arrastar. Não está traçada no mapa acima apresentado, do qual apenas consta a outra quelha.


Casa da Rua do Beco, ao lado da Praça, onde era a taberna do Arrebotes. Seria na porta da esquerda, pois a da direita tem a escadaria para o 1.º andar.

As pessoas
Miguel Rodrigues e Ana Prata viviam na Barroca. Ele era sapateiro e ela doméstica, além do cultivo dos leirões abaixo da casa. Tiveram 10 filhos.
O filho João Rodrigues, conhecido por João Coxo, era alfaiate e morava no Largo Francisco Caldeira, na casa e quintal mesmo junto à Fonte Velha. Teve uma taberna nesse local.
O filho José Maria Prata(ou Rodrigues?) casou com Maria de Jesus Carvalho e viviam na Tapada de Dona Úrsula. Na época desta história, tinham três filhos: o João, que veio à porta, o António e José, ainda muito pequeno, a viver atualmente em São Vicente e que me deu estas informações. Tiveram, depois, mais dois filhos, a Maria de Jesus e o Miguel. Cresci junto a eles. O José Maria ia aos quintos para o Alentejo e trazia muita semente como pagamento. Nós comprávamos-lhe trigo e centeio, para mandar moer ao moleiro da Torre.
O filho José Rodrigues namorava a Maria de Jesus Barroso, que vivia com os pais no Cimo de Vila, numa casa da Rua da Cruz, a fazer esquina, pela parte de cima, com a Rua Manuel Simões. Casaram e fixaram residência numa casa mesmo em frente, onde a Maria de Jesus ainda vive, pois o José faleceu muito jovem, deixando os filhos ainda pequenos.
A filha Palmira Rodrigues casou com Joaquim Craveiro. Este foi trabalhar para França, onde a mulher e os filhos se lhe juntaram. Faleceu há pouco tempo, mas a Palmira ainda é viva. O João Maria Rodrigues Craveiro, autor de um dos comentários ao conto "O Pistotira", é filho deste casal.
O filho Luís Rodrigues casou com Tomázia da Conceição e foi sempre lavrador, primeiro com bois e depois com trator e ovelhas. Acabou por comprar a casa do café da Tia Eulália, na Rua do Beco. Explorou o café por uns tempos, mas já o fechou há anos e adaptou o espaço a habitação.
A filha Cecília foi viver para a Covilhã e faleceu há cerca de 6 anos.
O José Pedro, conhecido por Zé Gato, morava ao Cimo de Vila, na casa da esquina da Rua Manuel Lopes com a Rua Manuel Simões. Nos anos 60, ainda ali conheci a sua esposa, já viúva, conhecida por Maria José Gata. Gata porque era a mulher do Gato.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Pistotira

O vulto negro descia pelo caminho do Cabeço do Pisco. Mal se enxergava*, naquele entardecer enevoado. Chovera sem parar desde que deixara o palheiro onde pernoitou. Acima da barragem, longe das vistas, era o melhor que se podia arranjar, nem sonhar com uma casa quente no Casal da Serra.
Ao fim da tarde, felizmente, estiou*, mas vinha todo encharcado e a noite voltava a cair. Nos eucaliptos, cheirou-lhe a fumo e ficou esperançoso. Andou mais um pouco, sempre a tentar descortinar alguma coisa naquele breu. Desceu para o cruzamento e parou. O cheiro vinha da esquerda, mas não conseguia ver. Subiu pelo outro caminho e um pouco à frente avistou a casa. Tinha de tentar a sorte. Vinha todo molhado e, com a Vila já perto, podia não ter outra oportunidade.
A casa tinha um postigo que dava para o caminho. Era a cozinha, pelo fumo nas frestas das telhas. Chegou à porta e bateu. Veio um garoto.
“Santas noites, meu menino. O teu pai está?”
“O meu pai não está, mas vem já. Ó mãe!”
Apareceu uma mulher, com o candeeiro na mão.
“Boas noites, minha senhora, pela alma dos que lá tem, deixe-me entrar para me enxugar ao lume, estou todo encharcado.”
Silêncio, depois a mulher respondeu, com um aperto na voz:
“O meu homem foi à Vila, mas não demora. Pode vir.”
O estranho entrou e seguiu-a para a cozinha. Pendurou o casaco numa ponta do caniço* e sentou-se no banco. As samarras* molhadas deitavam mais fumo que calor, um lume miserável. Mas desenrascava, que remédio.
A dona da casa veio à rua espreitar a vereda para a Vila, na esperança do homem dela não demorar como nas outras noites. Estava ralada*, com medo, assim, sozinha com os pequenos. O estranho ainda não tirara a mão direita do bolso. E se fosse o Pistotira? Tinham-lhe contado que ele nunca mostrava essa mão, porque a tinha aleijado e o denunciava.
Avistou a cunhada Cecília, de regresso a casa, findo o dia de trabalho, no irmão João. Graças a Deus! Desceu ao seu encontro e segredou-lhe:
“Ó Cecília, tenho um homem em casa, ao lume, e estou cheia de medo que seja o Pistotira, porque tem a mão direita sempre escondida. Por amor de Deus, vai lá chamar o teu irmão.”
“Onde é que ele está?”
“Vai todas as noites para a taberna do Arrebotes, a jogar às cartas.”
A Cecília voltou para trás e chegou num instante à Praça. Entrou na taberna e o irmão lá estava, sentado à mesa, com as cartas na mão.
“Ó Zé Maria, tens o Pistotira em casa. A Jú pediu-me para te vir chamar, porque o homem já está há um bom bocado ao lume e ainda não mostrou a mão direita. Anda depressa.”
“A minha mulher o que quer é mama, o que me quer é em casa, com medo que eu me embebede!”
Não havia nada a fazer, tão cedo não largaria as cartas e os copos. Voltou para a Tapada e encontrou a cunhada cá fora, junto à presa*, a falar baixinho com a Palmira.
“Ele não acreditou. Disse que tu queres é apanhá-lo em casa.”
“Eu vou lá buscá-lo e tu vais para casa, porque a mãe e o pai já estão ralados com a tua demora.”
A Palmira desceu quase a correr para a Vila e chamou à porta da taberna.
“Ó Zé Maria, chega aqui.”
“Isto hoje está animado. Não posso jogar em paz?”
“Olha que é verdade que o Pistotira está na tua casa. Vem depressa!”
“A tua cunhada é uma medricas. O Pistotira é um grande amigo meu, andámos a trabalhar juntos na barragem do Casal da Serra. Foi lá que deu cabo da mão. Ele nunca ia fazer mal à minha família. A Maria de Jesus ouve as histórias que se contam e fica cheia de medo.”
E voltou ao jogo. A Palmira desistiu e subiu a rua, desanimada, sem saber como acudir à cunhada. Por sorte deu com o irmão Zé, a sair da casa da moça.
“Ai Zé, foi Deus que te pôs agora aqui. A nossa cunhada Jú tem um estranho em casa e está cheia de medo, porque desconfia que é o Pistoria. Eu fui chamar o Zé Maria e a Cecília também já lá foi, mas ele não quer vir.”
“Onde é que ele está?”
“No Arrebotes.”
“Vai para casa que eu vou buscá-lo. Há-de vir a bem ou a mal!
O Zé Maria era forte, mas o irmão Zé era ainda mais alto e entroncado. Chegou à taberna e atirou:
“Não és homem, nem és uma trampa.”
“A minha o que tem é medo!”
Um dos parceiros da jogatana, o Zé Pedro, de alcunha o Zé Gato, virou-se para o Zé Maria e disse-lhe:
“Sabes que tens o homem em casa e não vais? Agora vou eu contigo!”
Levantaram-se e saíram, subiram a rua e depois a quelha quase a correr, com os pés a tactear o chão. Ao mesmo tempo, na Barroca, a mãe Ana acabava de ouvir o que se passava da boca da Cecília. Ficou com o coração apertado, por mor da nora e dos netinhos. Pôs o xaile na cabeça e saiu a correr, com um filho atrás, sempre pela vereda estreita da regadia. Os pés descalços do Luís davam topadelas* nas pedras e ele não conseguia acompanhar a mãe. Ela pegou-lhe ao colo, na ânsia de chegar e com medo que ele caísse da vereda do rego para um leirão. Chegaram a casa ao mesmo tempo, da taberna e da Barroca. O Zé Gato deu uma sapatada na porta e entraram de rompante.
“Ó malandro, então estás aqui, hoje?”
“Você conhece-me de algum lado?”
“Eu sei bem quem tu és!”
O estranho ergueu-se do banco e estendeu a mão esquerda ao Zé Gato, mas ele recusou-a. O Zé Maria perguntou-lhe:
“O que estás a fazer na minha casa?”
“A aquecer-me, mas o lume de samarras não aquece.”
O Zé Gato empunhou uma cavaca* que tirou do caniço e sentenciou:
“Daqui já não sais sem ser algemado.”
Era preciso ir chamar o cabo de ordens*, para trazer as algemas, mas o dono da casa discordou:
“A melhor algema é o cinto.”
Ataram-lhe as mãos atrás, nas costas, com outro cinto a apertar o tronco e os braços. Trouxeram-no para a rua e desceram a quelha com ele de costas, a arrastar. O Zé Maria ia à frente, com os pés do Pistotira na cintura, atrás vinha o Zé Gato, a pontapear o bandido sempre que ele tentava levantar a cabeça. Depois da quelha, desceram a rua até à Praça.
As pessoas vinham às portas ver que alarido era aquele e seguiam o cortejo, desejosas de verem mais. Na Praça, já havia um ajuntamento, pela notícia da saída dos homens da taberna, para irem buscar o Pistotira. O cabo de ordens chegou, levaram o bandido pelo balcão da Câmara acima e deixaram-no no chão do corredor. Revistaram-no: uma pistola descarregada e várias sovelas*, o suficiente para tirar o pio a uma criatura de Deus. As algemas substituíram os cintos, por serem mais conformes com a lei.
Os homens mandaram vir um garrafão de vinho e foram para a sala do lume a festejar. Era obra apanhar um criminoso daqueles, ladrão e matador como poucos. Vinham mulheres a dar fé do bandido e a elas pediu ele uma manta para se resguardar do frio da noite, pois estava muito dorido e enregelado. O cabo de ordens autorizou e deu-lhes um cobertor que por ali havia, agasalho dos que costumavam lá passar a noite, a olhar por algum preso, quando calhava.
Pouco a pouco, a Câmara sossegou. Os curiosos voltaram a suas casas e a porta foi fechada à chave. Os homens continuavam na sala da lareira, a conversar e a virar copos. De manhã, os cabos de ordens tinham de ir levar o preso para Castelo Branco. A pé até ao apeadeiro da Soalheira e depois no comboio.
O Pistotira achou-se sozinho e começou magicar na maneira de sair dali. Sorte o cabo de ordens ter substituído os cintos pelas algemas. Quase metade da palma da mão aleijada ficara-lhe naquela maldita rebentação das obras na barragem. Com um pequeno esforço, tirou a mão da algema e ficou livre. Agora, por onde sair? Pela porta, impossível. No fundo do corredor, os homens aqueciam-se ao lume, de porta aberta, mas já quase esquecidos dele. Rastejou para fora do cobertor, fez-lhe uns altos para simular um corpo e colocou-se a uma das portas da esquerda. Esperou, os homens continuavam entretidos. Abriu a porta e atravessou a sala até à janela, que se adivinhava por uma ténue claridade na parede. Abriu a janela e sorriu, não era preciso saltar para a rua de tão alto, pois havia uma latada. Alçou-se para fora, pendurou-se nas varas e saltou para o chão. O tombo foi curto e depois correu pela rua abaixo. Ao fundo, galgou um muro. Sempre a correr, entre oliveiras, a saltar paredes de leirões, só parou quando o coração lhe queria saltar pela boca e a distância percorrida já lhe dava tranquilidade. Deixou-se cair no chão, ofegante. Chegou-lhe o toque dos sinos a rebate e teve de voltar a correr. Seguiu um caminho, meteu-se na água da ribeira e continuou, encosta acima, até penetrar bem fundo num pinhal. Atirou-se para o chão e descansou. Mas o corpo começou a gelar e teve de erguer-se e caminhar.
Andou como um bicho, acossado pelos montes. Dormia em palheiros e passou fome de cão. Ao terceiro dia, encontrou um pastor. Mostrou interesse pelo gado e lamentou-se da sua vida: a infância no Souto da Casa, aquela burrada* de vender algumas cabras do pai e gastar o dinheiro todo, a expulsão do lar paterno, a vida sem eira nem beira, o acidente com dinamite na barragem, a dificuldade de trabalhar com a mão aleijada e muita, muita fome. E os de São Vicente nem o deixaram aquecer-se!
“Eu também já fui pastor e, se o senhor é um pastor verdadeiro, deve trazer consigo uma lima, com que possa cortar-me a algema.”
O outro tinha uma lima e restituiu-lhe a liberdade. Andou por esse mundo e foi ter a Lisboa. Arranjou trabalho no quintal de um casal, a troco de comida, uns trocos e dormida na arrecadação anexa. Era uma vida boa.
Passados uns tempos, os donos deixaram de ser vistos e os vizinhos estranharam.
“Foram visitar uns parentes longe e deixaram-me a tomar conta da casa.”
Mas tardavam. Alguém sentiu mau cheiro, vindo do quintal, e avisou a polícia. Encontraram os corpos enterrados debaixo do loureiro, junto ao tanque.
Esteve preso sete anos, a comer por um cano, com água pelas pernas, na maré cheia. Mas conseguiu partir os grilhões e fugiu a nado. Chegou ao paredão e subiu-o de arrastos, tolhido das pernas. O sol quente, uma coisa tão boa! Passou o barco patrulha e soou um tiro. O corpo rebolou e voltou à água.

Nota: Este conto baseia-se em fatos reais que me foram narrados, oralmente, por Luís Rodrigues, naquela época com 7 anos e que foi com a mãe Ana ver se era verdade que o Pistotira estava em casa do irmão Zé Maria.


Vocabulário:
Burrada - Asneira, erro.
Cabo de ordens - Homem com funções de policiamento, subordinado ao regedor.
Caniço - Estrutura formada por varas finas e juntas, colocada por cima do lume, para secar as castanhas lá espalhadas.
Cavaca - Pedaço de madeira resultante de um tronco rachado(cortado pelo interior) em partes.
Enxergar - Ver.
Estiar - Parar de chover.
Ralada - Preocupada.
Presa - Maneira local de dizer represa. Em geral, tratava-se de uma construção no leito de um ribeiro, destinada a prender e acumular a água. Também de fazia no local de uma nascente, à maneira dos atuais tanques, para acumular a água que ali emergia. No caso deste conto, a presa, em forma de tanque, mas de terra e pedra, detinava-se a acumular as águas que vinham das regadias da Barroca, para regar noutra hora e sobretudo para aproveitar os restos, as corredouras, que já não davam para regar. Também acumulava as águas das chuvas.
Samarras - Cascas secas dos eucaliptos.
Sovela - Instrumento com que os sapateiros e os correeiros abrem os furos no cabedal. É formado por um arame encabado e afiado, com cerca de 13 centímetros de comprimento (cabo e arame).
Topadelas - Choque dos dedos descalços dos pés, nas pedras do caminho, de que resultavam feridas, quase sempre.