Síntese do
trabalho “Movido pela loucura ou pela fé: trajetória de Alexandre Henriques”,
da investigadora Grayce Mayre Bonfim Souza, professora na Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia, Brasil, e publicado em
Alexandre
Henriques foi batizado, em São Vicente da Beira, pelo Padre cura Antonio Simões
Leitão, aos onze dias do mês de dezembro de mil seiscentos oitenta e nove anos
e foram padrinhos Pedro Rodrigues da Costa, solteiro, filho de Alexandre
Henriques e de sua mulher Brites Rodrigues, e sua madrinha Leonor Rodrigues da
Vila do Sabugal. Era filho de
Francisco Henriques da Costa, comerciante de tecidos, e Clara Rodrigues, todos
de São Vicente da Beira.
Em dezembro de
1706, Alexandre Henriques procurou a Mesa Inquisitorial do tribunal de Lisboa
para confessar que praticava o judaísmo e que havia sido iniciado (juntamente
com sua irmã Maria Nunes) por sua mãe, Clara Rodrigues, e pela madrinha, Leonor
Rodrigues (também sentenciada pelo tribunal). Nessa ocasião, ele fez referência
ao ritual de jejuar e “guardar o dia grande do mês de setembro”. O jejum grande
consistia em abstinência completa de “alimentos sólidos ou líquidos durante 24
horas do Iom Quipur, iniciado na véspera, quando a primeira estrela aparece no
céu, encerrando no dia seguinte à mesma hora”.
Após confessar
perante o Santo Ofício, ficou por certo tempo na Corte, dedicando-se a alguns
negócios, e depois passou para a cidade de Leiria; em seguida foi assistido na
Vila de Perucha (Ourém, Portugal) e depois no Rio de Janeiro, e posteriormente
nas Minas. Por fim, foi recolhido como louco pelo hospital da Santa Casa da
Misericórdia na cidade da Bahia.
Alexandre
Henriques, cristão-novo e mercador, foi preso em Serro Frio, região das Minas
do Ouro, e enviado à Baía e depois para Lisboa, onde deu entrada na prisão dos
Estaus (Rossio, sede da Inquisição, no lugar do atual teatro D. Maria II), no
dia 16 de março de 1734, com 46 anos de idade.
Quando foi
preso, disse que ele ao tempo em que foi preso tinha uma loja, que importaria
em vinte e tantos mil cruzados de fazendas [...]. E do líquido, que se lhe quer
[são] vinte e duas dobras de dose mil e oito [centavos] cada uma, e dez patacas
de trezentos e vinte réis cada uma, que importam em três mil e duzentos réis, e
quatro oitavas de diamantes brutas, que não se sabe o quanto valeriam.
Na Baía, onde
foi recolhido ao Hospital da Misericórdia, por loucura, Alexandre Rodrigues
disse que não acreditava na Santíssima Trindade, que há um Deus poderoso, mas
não trino nas pessoas, como também negava a encarnação do divino Verbo, a
pureza imaculada da Virgem Santíssima e, finalmente, todos os mais mistérios da
nossa Santa Fé, da instituição do Sacramento do Altar, Sagrada Eucaristia,
Ressurreição... Encerrado o seu discurso herético, teria confessado ser judeu
de nação e acreditava que só a “lei de Moisés era verdadeira e que nela queria
morrer, ainda que o queimassem vivo. E que desde os sete anos o seu nome
verdadeiro era Isaac Pecador.
As testemunhas
consideraram que Alexandre Rodrigues era movido pela convicção religiosa de um
judeu “muito apaixonado” e não pela loucura.
Alexandre
Rodrigues declarou ainda que, depois que saiu do Santo Ofício, em 1706, viveu
apenas três anos na lei de Cristo, retornando então para a lei de Moisés,
porque o demónio o perseguia.
Ao próprio Vice Rei,
que lhe perguntou se ele era cristão e cria em Deus, logo lhe respondeu
publicamente que era judeu, e que cria no Deus de Israel e na Lei de Moisés em
que havia de morrer.
Ao Comissário da
Inquisição João Calmon, pediu Alexandre Rodrigues que alcançasse licença de
liberdade de consciência para viver na lei de Moisés em que só cria por
verdadeira.
Enviado à
Inquisição de Lisboa, permaneceu no cárcere de Estaus durante mais quatro anos.
Mandou-se então investigar o seu passado, em S. Vicente da Beira.
Da diligência realizada,
pelo comissário do Santo Ofício Manuel Simões, obtiveram-se poucas informações,
mas o suficiente para perceber que a família, desde muito cedo, foi se
decompondo por conta das perseguições religiosas. Nos relatos e outras
informações que surgem ao longo do processo, foi possível identificar três de
seus irmãos. O pai, Francisco Rodrigues da Costa, era um cristão novo e
mercador, e a mãe, Clara Rodrigues, foi presa em 21 de março de 1703, por
acusação de judaísmo, sendo sentenciada em Auto de Fé que ocorreu no ano de
1705, cuja pena foi abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo
sem remissão, degredo para Angola por 5 anos e penitências espirituais. Maria
Nunes, irmã de Alexandre Henriques, também procurou a Mesa em 1706 para
confessar que judaizava e Brites Rodrigues da Costa ficou presa nos cárceres
dos Estaus por mais de um ano e meio. Consta ainda no sumário que o terceiro
filho, Pedro, tinha problemas mentais e morreu ainda muito jovem, em 1703.
Segundo as testemunhas, o mais novo era Alexandre e havia-se ausentado da Vila
fazia muito tempo.
Considerado
louco, foi Alexandre Rodrigues entregue ao Hospital Real de Todos os Santos,
onde faleceu, em novembro de mil setecentos e trinta e sete.
Notas:
- Apelidos de Alexandre Henriques e sua família: Henriques, Rodrigues, Nunes e Costa.
- Em 1689, o cura da Igreja de São Vicente era António Simões Leitão. Em 1733-37, o representante local do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) era Manuel Simões, o qual sabemos ter sido padre e licenciado. Aliás, em 1739, exerceu provisoriamente o cargo de Vigário. Em 1709, este Manuel Simões foi padrinho de um filho de Manuel Lopes Guerra. Ambos, Manuel Simões e Manuel Lopes deram nomes a ruas do Cimo de Vila. Em 1762-85, existiu um Doutor Manuel Simões e, na mesma época, um Cláudio António Simões (filho de Manuel Lopes Guerra), também letrado, pois era escrivão da Câmara. Foi a filha deste, Maria Benedita Simões Feio de Carvalho, que casou com um membro da família Cunha Pignatelli, fundando a Casa Cunha, em São Vicente da Beira.
- O grande dia do Iom Quipur, em finais de setembro, era (é) para os judeus um dia de jejum e de extrema religiosidade. É o dia do perdão das faltas cometidas sobre os outros, perdão que se obtém desses outros, por meio da demonstração de um profundo arrependimento. Isto levanta-nos uma questão muito complexa: a data coincide com a nossa festa do Santo Cristo, também ela de grande religiosidade, no passado e ainda hoje. A devoção ao nosso Santo Cristo da Misericórdia já era grande no século XVIII, mas manifestava-se ao longo de todo o ano e não num dia especial. Terá sido criada a festa ao Santo Cristo para fazer esquecer aos descendentes dos judeus as suas antigas tradições religiosas, enquadrando-as no Cristianismo? Ou, por outro lado, ter sido criada por descendentes de judeus que consideravam, por tradição, os finais de setembro como um tempo sagrado.
José Teodoro Prata