quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Casas da Memória

Adquirir hábitos culturais demora tempo, a partir dos bancos da escola deveria haver uma disciplina que ensinasse as crianças incutindo nelas o amor pela cultura. Teatro, música, cinema, pintura e por aí fora.
O corpo dá sinais quando tem fome, sede… o espírito não, corpo precisa de alimento, também devemos dar ao espírito os alimentos que necessita, cuidá-lo, mima-lo com as belezas que as artes nos oferecem.
Na cidade de Castelo Branco já existem ao longo do ano as mais variadas exposições e muitos museus.
O Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco mostra as mais diversas formas de arte, a Casa da Nora também. O antigo edifício dos correios, os museus Cargaleiro, Francisco Tavares Proença Júnior, Arte Sacra, Museu da Memória Judaica… Ofertas culturais que a cidade oferece, que vale a pena ver
No ano 2016, visitei o Museu Nacional de Arte Antiga que se situa na Rua das Janelas Verdes, em Lisboa. Este museu guarda um espólio muito rico; pinturas de autores portugueses (Domingos Sequeira, Vieira Portuense…), europeus (Bosch, Durer…), esculturas, arte da China, India, Japão, mobiliário, biombos, ourivesaria, cerâmica. Lá se encontra a famosa custódia de Belém, os célebres painéis de São Vicente de Nuno Gonçalves…
Todos os portugueses o deviam visitar.
Os funcionários, sempre atenciosos para responderem às nossas dúvidas.
Todo o espólio exposto é uma maravilha, mas, uma cadeira me despertou atenção redobrada. Porquê! Na nossa vila existe um “exemplar” muito parecido. Sabem onde se encontra!?
O segundo museu que vou citar é também um museu nacional, fica na airosa cidade de Viseu, paredes meias com a monumental Sé, é o Museu Nacional Gão Vasco. Deve o seu nome ao mestre viseense Vasco Fernandes e guarda um espólio muito importante de obras de arte do mestre e seus colaboradores. Para além dos quadros, existem numerosos objectos que serviam o culto religioso: imagens, cálices….
O espaço é magnífico. No outro lado da praça, em frente, encontra-se a igreja da misericórdia, que possui também um rico acervo museológico. Estes monumentos estão cercados de artérias medievas com as casas bem preservadas.
Vale a pena visitar a cidade de Viseu.
Há muitos anos que não revisitava a igreja de São Roque e o museu da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Quando o visitei pela primeira vez era um pequeno espaço museológico. Juntamente com os meus irmãos António e João Maria, encontrei um grande, valioso e maravilhoso museu. Rico em paramentaria, ourivesaria, pinturas, relicários, tocheiros. A capela de São João Batista, uma maravilha!
Realço o quadro que representa o casamento do rei D. Manuel l com a princesa Dona Leonor, onde figura o vicentino D. Álvaro da Costa. Terá sido o primeiro provedor da misericórdia de Lisboa.
Finalmente, menciono o mais recente museu da cidade albicastrense, chama-se Museu da Memória Judaica.
Situa-se na Rua das Olarias, o local onde se encontra foi muito bem escolhido, a câmara aproveitou o que restava das muralhas.
Através do seu espólio, ficamos a conhecer a presença hebraica na cidade de Castelo Branco. Vale a pena parar um pouco e escutar, graças às novas tecnologias, episódios que aconteceram a pessoas acusadas pelo tribunal da Inquisição.
Olhar as peças que servem os rituais judaicos, o grande painel onde figuram os nomes dos judeus que de uma maneira ou outra sofreram perseguições, condenações no tribunal do santo ofício. Amato Lusitano foi um dos que sofreu na pele os esbirros da inquisição.
É um espaço agradável e bonito, fiquem bem.




J.M.S

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Fontes: Manuel Lopes e Manuel Simões

A Rua Manuel Lopes sobe pelo meio do Cimo de Vila. Já a Rua Manuel Simões é uma travessa que liga as artérias lá do alto quase todas. Encontram-se as duas na esquina da ti Mariazé Gata, onde também morava a sr.ª Celeste Dias, parteira, e o tio Miguel Jerónimo, carniceiro.
Penso que a casa do Manuel Lopes Guerra seria a da janela manuelina. E o Manuel Simões, clérigo licenciado que chegou a ser vigário de São Vicente da Beira, moraria na casa com balcão seiscentista, onde depois nasceu a Maria Benedita, que daria origem à Casa Cunha.
O meu primo João Benevides Prata contou-me, um dia, que estas duas casas estavam unidas pelos sótãos, havendo passagem de umas para as outras.
Mas qual a ligação familiar entre os Lopes Guerra e os Simões? Este registo de casamento de 1745 ajuda um pouco.
O noivo, o Doutor Francisco Simões Cardoso era filho de Manuel Lopes Guerra e de sua esposa Mariana Gracia, de São Romão. Uma das testemunhas foi o Doutor Cláudio António Simões, outro filho de Manuel Lopes. O apelido do Manuel Simões passou para os filhos de Manuel Lopes Guerra. Porquê?

José Teodoro Prata

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Fontes: Os Pousão do Violeiro

... vieram de Pousafoles, Sarzedas.
Eu explico. Como estarão lembrados, o Domingos Nunes Pousão, do Violeiro, casou com uma Cabral de Pina, de Fornos de Algodres, irmã do vigário de São Vicente da Beira,  e foram antepassados dos Viscondes de Tinalhas.
Ora o registo de casamento que abaixo se apresenta, de 1681 (a data está parcialmente ilegível, mas pode datar-se pelos outros registos), informa-nos do casamento dos pais desse Domingos Nunes Pousão. O pai chamava-se Domingos Fernandes e a mãe Isabel Nunes. Na margem esquerda, acrescentou-se Pousão ao nome do noivo. Seria uma alcunha, por ser de Pousafoles.
Com o filho, a alcunha passou a apelido. E os filhos de Domingos Nunes Pousão nenhum ficou no Violeiro: uma casou em Tinalhas e os outros quatro, celibatários, fixaram-se em São Vicente. Mas talvez ele tivesse irmãos e assim ainda haja pelo Violeiro descendentes deste Pousão de Pousafoles (mesmo que não usem o apelido).


José Teodoro Prata

domingo, 15 de janeiro de 2017

Oráculo

O ano dois mil e dezasseis, trezentos e sessenta e seis dias depois cortou finalmente a meta.
Bissexto, torto ou travesso. Terramotos, guerras, mortes inesperadas, inundações… dois mil e dezasseis; exausto, entregou o testemunho ao ano dois mil e dezassete. Folgazão, iniciou a corrida com esperança.
Foguetórios, bebidas, comidas… ei-lo que parte sorridente, satisfeito e esperançoso.
Pura ilusão, dois mil e dezassete à medida que vai percorrendo o caminho irá encontrar os mesmos obstáculos, as mesmas manigâncias do seu antecessor. Fomes, guerras, secas, terramotos, hipocrisias, ilusões, desilusões, algumas alegrias, mortes inesperadas, desastres naturais, esperança num futuro melhor também. Gritará aos quatro ventos: “Paz, quero Paz”. Deixem-se de tormentosas guerras, acabem as perseguições ao nosso semelhante, a ganância, o ódio a inveja, continuarão a reinar. Muitos passarão fome, poucos continuarão a empanturrar-se.
As crianças Senhor, não têm culpa de nada tão pequeninas, que mal fizeram para começarem a sofrer assim que nascem. E os velhinhos, tantos sacrifícios passaram para educar, alimentar, cuidar os seus, tantas vezes esquecidos, abandonados.
Os jovens fartam-se de estudar na esperança de um futuro mais risonho, têm que abandonar o seu torrão natal à procura do pão que não encontram na sua terra.
O ano dois mil e dezassete vai ser uma cópia exacta do ano dois mil e dezasseis. Frio, chuva, vento, calor, acidentes, os estrangeirismos vão continuar a enxamear a língua de Camões, mas também haverá muita fé e esperança num futuro melhor. Um dia chegará a meta da igualdade, fraternidade e solidariedade. Está longe, mas existe, temos que ter paciência, coragem e esperança num futuro digno para todos.
A nossa casa comum está doente, se cada der um pouco de si ao nosso semelhante, se cada um de nós amar e respeitar a mãe natureza, o testemunho um dia será recebido apoteoticamente, festivamente.
Guardado cuidadosamente, elevando-se bem alto para que todas as nações da Terra o possam ver entrelaçando as mãos, possamos alegremente dizer:
- Finalmente chegou o ano que transporta o testemunho da Paz, Amor, Justiça, e Fraternidade.

J.M.S

sábado, 14 de janeiro de 2017

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Pagar o vinho

O USO ACABOU MAS NÂO NAS
MÃOS DO SENHOR CAPITÃO

Como, todos os Vicentinos sabem, há anos atrás, era uso, qualquer rapaz de terra estranha que viesse cá namorar uma rapariga, era costume, digo, pagar um cântaro de vinho à rapaziada. Chamávamos-lhe nós “ter de pagar o vinho”.
Assim como nós teríamos de fazer o mesmo se fossemos namorar uma rapariga fora da terra.
Acontece que nos anos de 1950/51 veio cá o Senhor José Guardado Moreira, namorar a menina Mariazinha, filha do Senhor Manuel da Silva, e que nesse tempo já era capitão da G.N.R. E então nós a “malta” achávamos que esse senhor também tinha que pagar o vinho, mas todos tinham medo de lá ir – tínhamos até medo de que ele nos mandasse para a cadeia! Mas, não deixamos de o fazer, mas assim numa carta escrita em versos para ser mais bonito, visto ele ser um Senhor de mais respeito.
Então, foi assim que escrevemos os seguintes versos:

Meu capitão, dais-nos licença
para que a rapaziada exponha
em carta, por ter vergonha
de vir à vossa presença?

São costumes pertinazes
quando um estranho aqui vem
a pedir a filha à mãe,
ter de dar vinho aos rapazes!

Por isso, meu Capitão,
vede lá como há-de ser?
se esse uso tem de morrer,
que não seja em vossas mãos!

Não deixeis de acontentar
os rapazes, por favor,
para que Deus Nosso Senhor
abençoe o vosso lar.

Se formos atendido,
como todos esperamos,
desde já nos confessamos
altamente agradecidos.

Aí vai por comissão
João de Deus, bom rapaz,
se boas novas nos trás
recebe um chi coração!

Lá fui eu então, João de Deus Duarte e o José Maria Diogo, mais conhecido por Zé Águas, entregamos-lhe a carta e ficámos à espera até ao dia seguinte pela sua resposta. Assim foi.
Então o Sr. Manuel da Silva chamou-me e deu-me permissão para me dirigir à Viúva, para trazer o cântaro de vinho. Isto deu origem a uma grande alegria e a algumas bebedeiras…
Mas,…o Sr. Capitão teve de pagar o vinho!

João de Deus Duarte

Pelourinho, setembro/outubro de 1984
M. L. Ferreira

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Nos bancos da praça

— Já vou estando velho! — disse Chequim da Oles para os companheiros, como princípio de conversa, naquela tarde. — E, passados todos estes anos, ainda não atinei com a resposta!
Era conhecido por aquele nome por ter nascido nas casas da Oles. Toda a sua mocidade foi trabalhar e guardar gado nas terras baixas e férteis daquele sítio. Mas herdara a casa que os pais tinham na vila! Os que estavam com ele, sentados no banco da praça, ouviram o que tinha dito e olharam-no. Não percebiam o que queria ele dizer com aquilo!
— Que estás tu para aí a relatar ó Chequim?! Parece que estás arloucado! Vê lá se falas com’é dado, de maneira que a gente te entenda! — interveio o Zé Canhoto. Canhoto, por ser esquerdino, já se vê! Aproveitara um momento de pausa dos fregueses e viera à praça dar fé do que se passava. Mas podia continuar a vigiar a porta da sua taberna, ao fundo da igreja, que deixara aberta! — Picou-te o moscardo ou estarás tu a esgrouviar da cabeça, meu dialho?
— Por que raio teriam eles feito aquilo? — continuava a perguntar, de viva voz, o Chequim da Oles ao adjunto de tagarelas. Mas fazia-o como se não esperasse resposta.
Não era burro de todo. O pai ainda o mandara aprender algumas letras com o Padre José David dos Reis. Onde é que isso já ia!...
Muitos lustros passaram! Quem o queria ver agora, já bem entrado nos anos, era sentado na praça, a dar dois dedos de conversa a outros da sua igualha e com idade do mesmo quilate!
— Certas idades, convidam a novas vidas! — tinham-lhe zumbido aos ouvidos.
— Vós falais que nem doutores, falais. — teria dito. — Isso soa bem à rapaziada nova, como diz o outro! Mas é de mau agouro para os que por cá andam há muito!
Lembrava-se dos tempos da sua juventude, quando era cachopo novo, todo cheio de nove- horas!
— Dali, já só para a quinta das cruzetas! — pensava, em voz alta, quando via os velhos da vila, sentados nos bancos ou no muro da praça, encostados às pilastras.
Nessa altura andava a zurzir segredos de bem-querer ao ouvido das cachopas. Acabou por casar com a Rosária das Lameiras. Boa moça e de alguns haveres. Veio a herdar, por sua banda, algumas courelas e um bom pedaço de pinhal. Juntas às dele, davam umas boas jeiras em ricas terras aráveis e tinham lenha para as invernas. Punham pé nas baixas junto à ribeira, depois, também, nas Lameiras, na Fonte da Portela, nos Aldeões e na Serra. Com boas e abundantes colheitas hortícolas, fruta, batata, milho, azeite, vinho, trigo, centeio e pasto. Praticamente tudo! Governava a família e tirava das fazendas o sustento para o gado miúdo, rebanhos e animais de carga.  
Tiveram doze filhos! Seis machos e seis fêmeas. Sãozinhos e escorreitos, que os benzera Deus! Era vê-los a espigar e a calcorrear paredes e cômoros atrás das cabras e das ovelhas e à frente dos bois, a guiá-los, nas lavradas, com o pai na rabiça do arado! Aquilo era rapaziada de ímpeto e vivacidade que nem as ondas do mar alteroso!
— Uma dúzia de filhos, ó Chequim! Assim é que se vê quem é que tem… unhas! — diziam-lhe os amigos, a mangar e com uma pontinha de malícia!
— Tende lá tento na língua rapazes, que eu bem sei o que vos vai nessa mente corrupta! — ripostava sem se abespinhar. — Mas perdoe-vos Deus metade da vossa maldade, almas do dialho, que eu vos perdoo o resto. Não quero, um dia, ser responsável por entrardes com a consciência pesada na eternidade! — disse-lhes.
Mas o tempo fora-se, impiedoso! D’abanão, mal deu por ela, encontrava-se ele nos bancos da praça, no lugar da provecta gente de outrora.
— Cá na vila, já não há velhos como dantes! — mal se ouvia dizer no soalheiro.  
— Ele há coisas! Criaturas com a maluqueira que o tempo apenas vai fluindo para o vizinho!
Parecia-lhes que os velhos eram sempre os mesmos que por ali costumavam ver sentados nos bancos. Na verdade, todos tinham cabelos já muito ralos e brancos. E ostentavam, na face, profundas gaivas, que os tornavam semelhantemente uniformes para a morte! — Como diz o santo a respeito do pecado: “Veem o argueiro no olho do próximo mas não veem a tranca no seu próprio olho!” Se calhar é por não terem ângulo de visão! — riam.
Esperem-lhe pela volta!
— Não há velhos? Há sim senhor! Então, os velhos agora somos nós! Nós é que vamos ocupar os bancos da praça onde eles se sentavam antigamente! — sentenciavam. E com razão!
— Cada um tem que estar onde manda a idade! — falava a experiência pela boca de Bernardo Garrancho que, entretanto, interviera na conversa. A alcunha deste, vinha-lhe de ter o dedo indicador direito curvado em gancho. Devido a um ferimento, em consequência de um acidente de trabalho, o dedo sarara naquela posição e não mais voltara a endireitar-se!   
— É assim mesmo! — ripostaram-lhe.
Fossem lá pedir agora ao Chequim da Oles, para cavar um bocado de vinha! É o cavas! Já não tinha genica nenhuma! Isso era dantes! Ah! caraças! Levantava-se de manhãzinha, ia cortar um molho de mato, ougava-o, trazia-o às costas para a furda e traçava-o, tudo em menos duas horas! Outros tempos!
Mais tarde, já casado, a família crescera, a vida, graças a Deus, melhorara e pôde atirar-se, a custo, à compra de um carro e uma junta de bois, com que passou a ir ao mato e à lenha, acompanhado dos dois filhos mais velhos. Duas sonaves que alto lá com eles, como se podia ver pelos ombros forçudos e pela grande chave das mãos de que, na vila, poucos se podiam gabar.
Mas Chequim tinha trazido à conversa, naquela tarde, um pensamento:
— Farto-me de matutar por que raio teriam eles tirado o concelho à nossa terra?! — disse, esclarecendo, enfim, a curiosidade dos circunstantes. — É o demonho duma pergunta que fiz toda a vida!
Para onde fora a câmara, o tribunal, o notário-tabelião e os registos, que cá estiveram tantos séculos e que tanta falta nos faziam?!
— Dizem que os ricos não queriam cá o concelho porque, quando quisessem tratar dos seus assuntos bem podiam fazê-lo, indo de charrete, refastelados, a Castelo Branco! Gente rica! Vai lá, vai… É mais fácil passar um camelo…
— Ah! Finalmente percebe-se a tua inquietação e compreendem-se agora as tuas perguntas! — declarou Adelino Cansado que até ali estivera sem bulir um som.
Ao contrário de muitos dos do seu tempo, Chequim da Oles sempre tivera o bichinho de se incomodar com os caminhos que ia trilhando a comunidade vicentina. O que nos reservava o futuro com os dias cada vez mais sombrios que se atravessavam. O assunto, achava ele, devia interessar a todos! Mas era como clamar no deserto! Não compreendia por que é que os seus companheiros de ajuntamento não se interessavam por coisas tão importantes.
— Cedo percebi que fomos uma terra de grandes pergaminhos. A nossa vida, no correr do ano, estava cheia de datas assinaladas!
Ah! Caramba, havia grandes acontecimentos nas Festão de Verão, no Natal e na Páscoa. Enormes procissões do Senhor Santo Cristo e do Enterro do Senhor. O pálio estava reservado aos homens mais importantes da vila! Hoje andam ó tio, ó tio, a perguntar quem lhe quer pegar! — disse para o adjunto. Não teve repercussão naquelas cabeças toscas.
— Tinham alguma consciência coletiva ou andavam no mundo por ver andar os outros?! — intrigava-se. E começou a vociferar:
— Vocês destas coisas não querem saber! Só vos interessa as vossas leiras e beber copos na taberna! Do resto não vos acusa a consciência! — continuava no seu solilóquio. — Por isso chegámos ao que chegámos!
Os outros nada opinaram sobre o assunto que há muito o afligia. Lá lhe pareceu que estavam desatentos, talvez a pensar nas vindimas do fim do verão que se aproximava, que era o que concretamente mais lhes tocava. Vai daí, arreliou-se:
— Mas, que diabo! Ninguém quer falar da nossa terra? Vocês parece que estão mortos! Mortos!
— Ali o Tonho Insonso só dorme! — e apontou para a extremidade do banco. — Já parece o Tonho da Lija que tem a doença do sono! Ó Tonho picou-te a mosca ou estás a remoer as couves?!   
Com a algazarra, o Tonho Insonso, acordou! Cerrou as mãos em punho, meteu os indicadores dobrados nas covas dos olhos e esfregou-os! Estava modorrento e como não discernia muito bem, Chequim da Oles atirou de través, entre dentes, aos companheiros de conversa, como quem lança um osso a sete cães:
— Este alma de chichentes faz justiça à alcunha que lhe puseram! Parece que não tem sal! Sim senhor! Ora com fêto! Se calhar, por isso, é que nunca arranjou mulher!
Todos gargalharam com a tirada. Mas ele ainda ouvira parte do comentário. E a zombaria era como se esses cães o mordessem, fundo, no ego!
— O que foi?! Que berraria é esta?! — disse, finalmente, confuso, o pobre homem. Tinha a certeza que chasquearam dele e que lhe tinham chamado ruminante. Mas, optou por nada dizer, que era homem cordato e boa pessoa, lá nisso todos concordavam!...
João Jerolme, outros dos presentes, que tardava em se juntar à conversa, aproveitou um avo de compasso de espera e retomou o assunto do Chequim da Oles:
— Não te assanhes, ó Chequim! Se bem estou a perceber, estás a meter-te em política! — disse. — Olha que isso, nestes tempos, não é coisa boa, meu homem! — confidenciou-lhe, paternalmente, como mais velho do grupo. Ele sabia a rês que estava a governar em Lisboa por aqueles tempos!
— Não me meto em política! O que ninguém pode é impedir-me de querer saber das coisas que se passam na minha terra! Se isso é política!... — replicou Chequim da Oles.
— Tu lá sabes. Mas não te adiantes muito nos condutos. Às duas por três, podes ter que ir parar a África à força, se é que, pelo caminho, não vais mas é servir de comida aos peixes e nunca mais se ouve falar de ti! Não te metas com políticos que é má gente! E lá dizia o outro que a ignorância se manifesta pela política!
Chequim da Oles, feito um exame de consciência, concordou com o amigo. E, embora a contra gosto, aceitou o seu conselho. Por uns tempos prometeu não maçar a reunião de comparsas com as questões da política!
João Jerolme era o mais instruído dos do grupo. Pela idade e pelo saber. A sua família, mais abastada, tinha-lhe permitido frequentar um colégio de jesuítas por alguns anos.
Muitas vezes, nas tertúlias, se falava do tempo. Como é que andava, como é que não andava, se ia bom para as colheitas, se não ia. Se chovia ou fazia sol para medrarem as árvores e as searas e darem boas colheitas!...
Bernardo Garrancho, cuja escola tinha sido a terra, o campo, a chuva com muitas molhas e o sol com escaldões, animais e plantas, sabia bem ler-lhe as aparências. Se uma nuvem grossa e escura aparecia, no horizonte, a ocidente, ao fim da tarde, ajuizava:
— Ó rapazes, há uma barda além por cima do Ingarnal. Amanhã chove pela certa! Assim eu tivesse a certeza de entrar no reino dos céus!  
João Jerolme, mais pensador, percebia os efeitos do tempo, mas não podia compreender que ímpeto da natureza era aquele. Apenas sabia que fora essa força imparável que o relegara para o banco da praça ou para o balcão da taberna. Era quando, amiúde, erguia o copo de vinho na mão, já trémula, declarava, simplesmente, para o círculo de amigos, como um presságio:
— O tempo! O tempo! …
E, fosse ou não o efeito do vinho a subir-lhes às cachimónias, o que é certo é que alguma coisa ali parecia pairar. Por instantes, todos os da roda quedavam. Enquanto os olhos da sua natureza rude aparentavam alcançar alguma luz por entre a escuridão. Eles bem compreendiam o Jerolme: o tempo era, afinal, o grande mestre que tudo ensina, tudo cura, tudo faz esquecer, tudo cria e tudo destrói!
Tinha sido o tempo, esse mesmo, esse vilão, o que eles não podiam nem sabiam qualificar, que lhes roubara as suas vidas!

Nota: Neste texto foram utilizados termos regionais ou locais, incluindo nomes de pessoas, que não se encontram na ortografia e dicionários oficiais.
                                                

José Barroso