domingo, 5 de junho de 2011

O nosso falar: burrada

No passado fim de semana, fiz uma burrada.
Tinha umas cerejeiras bravas ou de qualidade inferior e enxertei-as. Algumas pegaram e os rebentos já atingiam dois palmos de altura.
Notei que estavam a ficar estranguladas com o aperto da ráfia, na zona do enxerto, e cortei a ráfia. Durante a semana, a ventania atirou os enxertos ao chão. Um ano perdido!
Fiz burrada, como diria o meu pai.
Burrada vem de burro, tal como o seu sinónimo asneira, que vem de asno, outra palavra que designa burro.
Mas as palavras burrada (de burro) e asneira (de asno) não fazem justiça a animal tão dócil e resistente.
Tive um burro, alentejano de Alpalhão, grande companheiro de canseiras! Sabia sempre para onde é que eu queira ir e também em que situações eu o ia sobrecarregar com pesos e trabalhos. Nessas alturas, deixava de ser dócil, não parava quieto e até se desviava por caminhos mais fáceis.
Num início de Verão, o meu pai decidiu que a malha seria no Ribeiro de Dom Bento, onde havia uma seara, embora a maior seara estivesse na Tapada de Baixo, mas sem eira para malhar. Eu e o Pardal lá tivemos de acarretar os molhos de trigo pelo caminho para as Quintas. A certa altura, o burro cansou-se de tantas vezes subir o caminho do Pinheiro e, quando chegava ao portão da Quinta, no fundo dos Carqueijais, virava sempre para a Tapada, que ficava muito mais perto. Era um monte de trabalhos obrigá-lo a seguir pelo caminho para as Quintas!
Como se vê, nesta questão da enxertia, não estive ao nível do nosso Pardal!
Também se pode dizer borrada, significa a mesma coisa, embora a origem da palavra seja diversa. Vem de borra ou de borrar, coisas que não prestam, mal feitas.


Cerejas da Gardunha: Esta burrada vai-me custar mais um ano de espera!

sábado, 4 de junho de 2011

A fonte antiga


A Fonte Velha é filha de uma fonte do século XVI.

Entre 1767 e 1785, a Câmara Municipal de São Vicente da Beira realizou o inventário de todos os bens concelhios, fossem terras, casas, fontes ou objetos. Este tombo foi coordenado pelo Doutor Casimiro Barreto Ferrás de Vasconcellos, juiz de fora, com funções equivalentes ao atual presidente da Câmara. O escrivão era então Joam Barata de Gouvea. O poder real, como parte interessada, pois recebia parte das rendas das terras, foi representado pelo procurador Claudio Antonio Simoins.
A medição da fonte fez-se, logo no primeiro ano, em 1767.

«E sendo por eles medida, principiou a medição pela parte do poente, à esquina da fonte, pegada à parede do quintal dos herdeiros de Luis de Pina da vila da Covilhã, para a parte da estrada que vai para São Sebastião, até aonde está um batório, aonde se põem as talhas, tem de medição cinco varas e uma sesma de uma vara. E da ponta do dito batório pela parte do norte, rosto ao nascente, até ao cimo do dito batório, tem de medição três varas e meia. E do dito batório, pela parte do nascente, rosto ao sul, até arrumar à parede do dito quintal, tem de medição quatro varas e meia. E da dita parede, partindo com o dito quintal pela parte do sul, ao poente, até aonde principiou esta medição, tem na mesma quatro varas menos uma sesma de uma vara.
E a dita fonte é toda feita de pedra de cantaria, coberta de abóbada da mesma pedra, com um mármore no meio da parte por onde se tira a água da dita fonte, que é da parte do norte e para a parte do poente. No frontispício da dita fonte se acham, em uma pedra esculpidas as armas reais e por cima destas armas uma coroa, em outra pedra, com dois letreiros em duas pedras, um de uma parte e outro da outra.
E no mesmo frontispício está um chafariz, aonde algum dia e hoje cai água de um cano, que vem da parte da quelha da eira. E defronte do balcão das casas dos herdeiros de Luis de Pina se acha uma pedra de cantaria, que tem uma letra que diz Arean(?), por onde vai a água para o cano. E no mesmo chafariz está um cano, por onde sai a água da fonte e para a mesma vem também a água por um cano junto do solo da dita fonte, da parte das casas dos sobreditos herdeiros de Luis de Pina.
E sendo medido o dito chafariz, pelo comprimento tem de medição duas varas e meia e de largura uma vara.»



O local da primitiva fonte está assinalado a amarelo.

Notas:
1. As casas e quintal de Luis de Pina, da vila da Covilhã, eram as que depois formaram a Casa Cunha, fundada pela filha de Claudio Antonio Simoins. Este era filho de Manoel Lopes Guerra (Rua Manuel Lopes), de S. Vicente da Beira e de Marianna Garcia, de São Romão (Seia). No dia 14 de Maio de 1769, casou com Dona Rita Thereza Feyo Lemos de Carvalho, filha de Manoel Rodrigues Feyo e de Feleciana Thereza de Carvalho, ambos de S. Vicente da Beira. O casal vivia na casa do tio(?) Manoel Simoins (Rua Manuel Simões). A sua filha Maria Benedita Simões Feio de Carvalho casou, a 8 de de Março de 1788, em S. Vicente da Beira, com João António Robalo da Cunha Pignatelli da Gama, da vila da Guarda.

2. A medição fez-se com um cordel de linho, com 12 varas de comprimento. Uma vara equivalia a cinco palmos, que correspondiam a 1,1 metro (110 centímetros). Uma sesma era a sexta parte da vara.

3. A fonte localizava-se no espaço atualmente murado, em frente à casa da família Cunha. Estaria sensivelmente no local onde depois foi plantada uma palmeira, ainda existente na segunda metade do século XX. A frente da fonte estava virada para norte e poente, aproximadamente para a atual abertura no muro. As traseiras da fonte encostavam à parede do quintal.

4. A água para a fonte e para o chafariz vinha do quintal de Luis de Pina, embora o texto não seja muito claro. Deve ter sido essa a razão porque, em 1854, a Câmara decidiu fazer uma mina na Rua da Costa, pois não podia explorar a água dentro da quinta da Casa Cunha.

5. Os dois "letreiros" em pedras integraram depois a nova fonte, em 1854. Eles documentam que a fonte foi mandada construir pelo rei D. Sebastião, em 1578 (Ver publicação “Fonte Velha”, de 13 de Maio de 2011). A nova fonte integra, igualmente, as armas reais e a coroa que estavam na fonte antiga.

6. O chafariz era pequeno. Na época, foi publicada uma postura municipal que condenava a 8 dias de cadeia os pais dos garotos que sujassem a água do chafariz!!!


As armas reais e a coroa transitaram da antiga para a nova fonte.

sábado, 28 de maio de 2011

O nosso falar: porteiro

Nos séculos passados, a Câmara Municipal de São Vicente da Beira tinha um funcionário designado por porteiro, à semelhança das outras câmaras.
O porteiro anunciava as decisões camarárias, apregoava avisos, licitava, na praça, as arrematações que a Câmara fazia, aceitando o melhor lanço.
Nas suas deslocações pelo concelho, o juiz de fora, mas tarde designado por Presidente da Câmara, era sempre acompanhado pelo porteiro e pelo escrivão. Este registava tudo a escrito e o porteiro fazia os contatos com a população.
Poteiro talvez por apregoar nas entradas (portas) das povoações, nos locais onde melhor se fazia ouvir.

Até há poucos anos, desconhecia a existência deste funcionário camarário, mas sempre soube o que era um/uma porteiro/a: alguém que fala muito alto, desnecessariamente; uma criança ou adolescente com um choro berrado, sem haver justificação para tanta gritaria.
As mães ou os irmãos mais velhos punham água na fervura com a humilhação:
"Cala-te, seu/sua grande porteiro/a!"
"Fala baixo, seu/sua porteiro/a!"
"És um/uma porteirão/porteirona!"

Tudo isto, porque o/a berrão/berrona parecia o porteiro da Câmara, a gritar.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A mina da fonte de 1854

Como vimos na publicação "A fonte de 1854", do passado dia 14 de maio, vários moradores da Vila compareceram na sessão da Câmara de 6 de Agosto de 1854. Queixavam-se da falta de água na fonte. A vereação decidiu então fazer uma fonte nova.
Mas a obra não calou as reclamações dos moradores:

«Que tendo se concluido a obra da Fonte publica desta Villa aqual foi ordenada em Sessão de 6 de Agosto ultimo mas sucedendo ter faltado a agoa na dita Fonte do que se tem seguido aos habitantes desta Villa e que podendo haver algum incendio e não haver meios de o atalhar e tomando a Câmara em concideração as justas reclamações dos habitantes desta mesma Villa deliberou que se fizesse uma mina na rua da Costa ou em outra qualquer parte mais comoda e que seja indicada por pessoas inteligentes para deste modo se evitar as graves vexames que esta Povoação esta soffrendo com a falta d´agoa e que esta obra se puzesse a lanço (...) a sua despeza no orçamento.»
(Arquivo Distrital de Castelo Branco, Câmara Municipal de São Vicente da Beira, Actas, Sessão de 12 de Novembro de 1954, Livro 1850-1859, Maço 5)

O povo pedira água, deram-lhe uma fonte nova (embora seca), e ainda reclamava!!!

A obra da mina foi finalmente arrematada, no primeiro de Janeiro de 1855.
Ficou com a obra Manoel Francisco Junior, pelo valor de 850 réis ($850), tendo como fiador o porteiro da Câmara Manoel Francisco. Seria o pai do júnior?
Segue-se o auto de arrematação da mina da fonte. Clicar na imagem, para ler.


(Arquivo Distrital de Castelo Branco, Câmara Municipal de São Vicente da Beira, Termos de Arrematação, Livro 1848-1855, Maço 10)

Ainda é esta mina que alimenta a Fonte Velha. Começa a meio da rua da Costa e vai até sensivelmente à Corredoura. Tem uma entrada, na vertical, no alto da rua, quase na esquina da última casa, à esquerda de quem sobe.
O valor da arrematação da mina foi muito baixo para uma mina tão comprida. É provável que ela tenha sido prolongada mais tarde.

domingo, 22 de maio de 2011

Na romaria da Orada


A ermida, com a casa do ermitão mais acima.


A Senhora engalanou-se para a sua festa.


Matando a sede, numa pausa da dança.


As cantadeiras do rancho, em plena função.


Ainda há Nossas Senhoras de açúcar!

sábado, 21 de maio de 2011

O nosso falar: emborqueiro

Emborqueiro vem do verbo emborcar: virar de borco, virar do fundo para o ar, de cima para baixo.
Assim, o emborqueiro é aquele que se nega com o que combinou. De certa forma, ele vira a situação: do que está estabelecido para o contrário.
Um emborqueiro ou uma emborqueira não são de fiar, estão sempre a voltar atrás com o que combinaram.
Por exemplo: decidiram ir todos à Senhora da Orada, combinou-se a merenda, iriam a pé, como antigamente, mas à última hora não lhe apetecia e não foi. É um/uma emborqueiro/a.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A lenda da Orada

A lenda da Senhora da Orada foi contada a Frei Agostinho de Santa Maria, pelo ermitão da capela, antes de 1711, data em que a publicou na obra Santuário Mariano. Publiquei-a nos Enxidros, em 2009, nas palavras do Ti Joaquim Teodoro. Ele não leu o Santuário Mariano, nem Portugal Antigo e Moderno, onde Pinho Leal repetiu a versão escrita por Frei Agostinho. O Ti Joaquim Teodoro sabia-a por ouvir contar, chegou-lhe de boca em boca, contada durante centenas de anos.
A lenda que se segue é uma versão semelhante. Foi escrita, certamente, por um membro da família Robles, pois foi esta família que a deu ao GEGA.
Talvez tenha sido José Ribeiro Robles, o avô de Robles Monteiro, um homem de letras que desempenhava o cargo de escrivão da Câmara Municipal de São Vicente da Beira, em 1854.
O texto foi actualizado, na ortografia e na pontuação, para facilitar a leitura.



A Senhora da Orada, na romaria deste ano.
Foto da Sara Varanda.


Aninha-se ainda, nos corações piedosos destes povos, a crença tradicional de um invocado milagre que deu origem à edificação da capela, em que se venera a imagem de Nossa Senhora d´Orada. Remontando ao penúltimo século, o sítio em que se acha a ermida era um deserto. Por vegetação o mato, por habitantes o javali.
A natureza mostrava-se ali em toda a sua fereza.
No recôncavo dos vales mal se descobria a corrente de um regato que, também coberto pela ramagem dos agrestes arbustos, não suavizava a vista, nem amenizava a paisagem.
Por este tempo, um piedoso asceta, querendo empregar todos os seus dias na oração e na penitência, foi escolher para a sua habitação um sítio próximo dali. Edificou uma cabana, sustentando-se dos magros legumes que por suas mãos cultivava. Vivia simplesmente para Deus. Era um justo.
Uma tarde, quando o sol se ia sumindo no curto horizonte e o feliz anacoreta sentado em umas pedras admirava este prodígio da natureza e a Majestade Divina, viu que se lhe aproximava uma mulher, jovem ainda, mas vestida em desalinho, com o rosto turbado de angústia e sofrimento, que manifestava pelas suas lágrimas.
Chegada ao pé do padre, ajoelhou. Contou-lhe quais as suas dores, as tentações e os desesperos a que estava sujeita. Cria-se arguida, caluniada e expulsa da casa paterna por ter uma moléstia que não conhecia, mas de que a sua pureza a não acusava.
O som da sua voz e a expressão da sua pessoa tinham o quer que fosse de superior que, sem dúvida, tocavam a alma do padre.
“Ide minha irmã. Amanhã de manhã hei-de dizer missa e nela pedirei à Virgem a vossa cura. Nessa ocasião dar-vos-ei o pão eucarístico. Orai e tende fé.
Retirou-se a triste e o padre dirigiu os olhos para o céu.
Quando, porém, as brumas da noite vieram despertar o asceta da sua oração e convidá-lo ao repouso, no seu humilde tugúrio, ainda a desventurada vagueava por aquela solidão.
Cheia de fadiga, extenuada, com uma sede abrasadora, tentou dirigir-se a um regato que ouvia correr no vale. Mas, faltando-lhe de todo as forças, encostou-se ao fundo de um rochedo, elevou uma prece ao Altíssimo e adormeceu.
Quando, na manhã seguinte, o cemobito se preparava para ir à povoação cumprir a sua promessa, apareceu-lhe ela, não já como na véspera, lacrimosa e triste, mas radiante de alegria e juventude, como que aureolada de uma inspiração divinal.
O seu corpo já se não descompunha em monstruosas formas. Melgada, aprumada e linda, parecia desafiar, com a sua formosura, todas as belezas do universo.
O padre, estático, ouviu-lhe a seguinte narração:
“Mal pensava eu, quando ainda ontem ouvia as vossas palavras de conforto e de esperança, que tão depressa a Virgem se amenceasse de mim. Sim, meu padre, porque a Virgem salvou-me. Vi-a no meu sonho, além...”
“Além?”
“Sim, ao fundo daquele rochedo aonde caí desfalecida. Depois de ter vagueado pelo mato, sentindo-me opressa por uma dor imensa e com uma sede abrasadora, tentei descer ao ribeiro para refrescar o peito. Mas não pude. A dor e o cansaço prostraram-me ao fundo do rochedo. Julguei-me perdida para sempre. Parecia-me que ia morrer. Pedi então a Deus a sua Misericórdia, entreguei-me nos braços da Virgem, supliquei-lhe perdão para meus pais e adormeci.
No meu letargo, pareceu-me que estava no Céu. Vi a Virgem dourada como tantas vezes a tenho visto no altar, mas tinha vida e movimento. Eu quis beijar-lhe os pés e Ela sorriu-se. Tentei falar-lhe, mas não pude mais do que chorar. Chorei, chorei muito, e só quando aquele astro luminoso já dourava as cumeadas destas montanhas é que eu despertei.
Parecia-me que já não sofria. A meus pés deslizava uma límpida corrente. Sobre o rochedo, nos arbustos e em torno de mim, miríades de passarinhos gorjeavam alegremente. A natureza, ainda ontem tão sombria, aparecia-me hoje risonha e cheia de encantos.
Estou salva. Salva, meu padre, pelas vossas orações.”
“Não, pela vossa fé.”

Foi um dia festivo na povoação.
A nova espalhou-se rapidamente, como que por encanto, e parecia que os montes, as correntes, os arvoredos e as florinhas simples dos campos compartilhavam da alegria de todos os corações.
A expensas da família da venturosa menina, foi edificada uma capela, próximo da fonte até então desconhecida, sob a invocação de Senhora d´Orada, aonde ainda hoje se venera, recebendo uma constante peregrinação de devotos.
O padre que ali vivia, no sítio denominado Casal do Clérigo, tornou-se o verdadeiro eremita, passando para a casa que edificou próximo da capela.