quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Vicissitudes de uma comunidade

Naquela época, na diocese, existiam muitos padres; como a oferta era muita, o bispo colocava-os nos mais recônditos lugares; era o que acontecia na paróquia vicentina; o coadjutor raras vezes vivia na vila, a aldeia da Partida, a maior da freguesia, sempre soube receber de braços abertos o senhor padre, por esse motivo construíram uma residência paroquial, nos nossos dias muito degradada. Naquele tempo o padre residente chamava-se Manuel, o povo gostava muito dele, fazia actividades com as crianças, adolescentes…; a igreja aos domingos enchia-se para escutarem a Palavra, o padre Manuel era estimado por todos.
Certo dia recebe uma comunicação superior, tinha que deixar o rebanho de pessoas simples, humildes, trabalhadoras, com muita fé nos evangelhos. O padre Manuel dava voltas à cabeça, não sabia como havia de transmitir ao seu povo aquela decisão diocesana.
Os mais expeditos notavam que não andava bem, até que alguém lhe perguntou:
- O senhor padre sente-se bem?
Na missa dominical, à hora da homilia, anunciou aos fiéis o teor daquele documento; viam-se lágrimas nas faces enrugadas das mulheres, iam ficar novamente sem padre, não podia estar a acontecer. O bom padre Manuel partiu.
Corações contritos, alguns homens bons imploraram ao senhor bispo a ida de outro prior para a aldeia, mas a partir daquela altura as funções religiosas passaram a ser exercidas pelo pároco da freguesia, o padre Branco.
Sacerdote na flor da idade, cheio de garra, possuía um jeep que o levava aos locais mais esconsos da paróquia. O povo da Partida não o aceitou e durante algum tempo boicotaram a ida à missa, os funerais eram feitos sem o acompanhamento do vigário, o templo ficava vazio durante as celebrações. Totalmente? Não.
Havia uma senhora, sem o povo se aperceber assistia à santa eucaristia. Maria dos Prazeres Fernandes, assim se chamava, escondia-se por detrás das talhas que guardavam a água benta; nem o senhor vigário sabia. Cumpria o preceito dominical conforme manda a santa madre igreja.
A mãe do senhor Augusto Carvalho, já velhinha, faleceu; este contactou o senhor vigário, o povo que não… insistiu, teimou e a mulherzinha “avó do Hermínio” foi acompanhada pelo pároco até à sua última morada. Para que não acontecessem cenas desagradáveis, certamente o senhor vigário ou a família requisitaram uma patrulha da GNR
Aos poucos as coisas voltaram à normalidade, o templo voltou a encher-se de fiéis e o padre Branco, que ainda está entre nós; deixou saudades entre todos os paroquianos.
Nos nossos dias, um padre tem a seu cargo duas, três ou mais paróquias, a seara é grande, os segadores, poucos…
Eram muitos os chamados e poucos os escolhidos, actualmente são poucos os chamados, e muito menos os escolhidos.
Sinais dos tempos.

JMS                                                

domingo, 16 de outubro de 2016

Nas férias grandes

As férias são um tempo extraordinário na vida dos trabalhadores, amarrados semana a semana, mês a mês, a um horário de trabalho de que não há escapatória. Bem, nos trabalhadores dos nossos tempos, que o direito a férias é coisa recente, legalmente consagrado em 1937, em Portugal. E o que foi preciso lutar para o alcançar!
A dimensão que trago aqui hoje à baila é a da disponibilização do trabalhador com vista à sua participação social e cultural (palavreado legal), que quer dizer, ao reencontro e socialização com familiares e amigos que, devido a distâncias e outras circunstâncias, só na altura das férias (grandes) podem com vagar matar saudades, trocar experiências, passear juntos e sonhar.

O grupo dos amigos da Praça, como invariavelmente acontece todos os agostos, lá voltou a reunir, só que em vez de se por a sonhar com projetos incapazes de ganhar quaisquer simpatias, como dar uma demão de tinta à Casa Paroquial, coisa que ela nunca viu desde que nasceu, ajardinar o Quintalinho que lhe serve de logradouro (com plantas e flores oferecidas pelos Vicentinos), manter as fachadas que dão para a Fonte Velha apresentáveis, este ano repensou a estratégia e virou-se para outros lados. Cultura e desporto.

Vai daí, organizou um passeio pedestre às antenas, onde seria comida uma bela merenda, com a reconstituição da batalha da Oles, pelo meio, embora deslocada para um sítio em que a vitória nos fosse garantida, tendo-se apresentado como sítio ideal a fraga escarpada sobre o Louriçal.

Armámo-nos de varapaus e cachaporras e, à medida que as cabeças dos infiéis apareciam por trás das pedras, era cacetada no toutiço até o diabo dizer bonda. Eram seguramente dez vezes mais que nós, mas os apedrejadores dizimavam-nos lá do alto, a rolar penedos enormes para cima deles, com a ajuda imprescindível do bom gigante, que veio da Terra dos Francos fazer a cobertura do evento e mesmo com pedradas certeiras que eram como balas. Os que fugiram iam tão acagaçados que só se atreveram a olhar para trás depois de passar a Soalheira.

A vitória esmagadora foi efusivamente festejada, como testemunha o retrato com os vencedores ufanos, de armas no ar. Admiravelmente poucos, para tão enorme tarefa. Descontando o narrador, temos o repórter vindo da Terra dos Francos com o seu irmão e outro combatente. Assim: João e Tó Passaraço; Chico Pinheiro e o cunhado Tó, que é como irmão, nunca o deixando combater sozinho, dadas as mazelas da coluna; o Zé Barroso e o Daniel, aguerrido combatente das serranias.


Para nos recompormos do esforço da luta, fomos presenteados pelo Chico Pinheiro com uns belos quadrados de chocolate preto do bom, 80% de cacau, no final da bucha, devorada no miradouro sobre Castelo Novo. Depois, uma pequena pausa onde se fizeram os necessários curativos e se retemperaram as forças. A batalha passou à história, como sabem.

O grupo seguiu animadíssimo, serra acima. Aliás, viajar com o Zé Barroso é sempre um prazer incalculável, quer seja a pé, quer tenha sido naquele calhambeque, em que há muitos anos atrás se faziam os arraiais das redondezas, que qual jumento adorava ir à berma da estrada abocanhar um bocado de carqueja ou giesta tenra e que ele sistematicamente repreendia, com demasiada altivez, dizendo: mato, mas tu queres mato?

O Daniel, meu sobrinho, teve como companheiro privilegiado o Tó Passaraço que lhe foi mostrando a vastidão do território calcorreado vezes imensas com 12, 13, 14 anos, a colher resina no Rolão Preto, com o avô Joaquim Barroso e, no próprio local da batalha, com o ti Zé Candeias, numa das voltas mais difíceis da região. Explicou-lhe as voltas, área geográfica correspondente a um dia de trabalho, a colha, que consistia em retirar a resina das tijelas para o caldeiro, que depois de cheio era despejado no barril. O caldeiro de chapa de zinco, com uma cinta no fundo, que tinham de encher de madeira ou cortiça para não se enterrar nos tenros ombros da sua adolescência. A merenda invariavelmente de pão e conduto. Os acidentes do território, fragas ruins de escalar. A sede em certos dias abrasadores sem fontes por perto. Uma lição de vida.

E assim fomos subindo, subindo, parando por vezes para que o João mantivesse o batimento cardíaco dentro da guide line, fixada pelo seu cardiologista. Ao chegarmos ao planalto que antecede a última e mais agressiva subida às antenas, aconteceu algo deveras surpreendente.
Avistámos um ancião de cabelo branco, que não veria tesoura há anos, junto a uma charca a admirar um bando de perdizes que ali matava a sede e que se tentou enfiar numas giestas mal  nos pressentiu. Como o chamámos, parou e caminhou ao nosso encontro.

Alguém perguntou – É muito parecido com o Gandalf, da Terra Média, o nome diz-lhe alguma coisa? Ao que respondeu – Desconheço tal personagem.

- Afinal quem é o Senhor e o que faz aqui? - Perguntámos impressionados pelo seu ar altivo e olhar perturbador.

- O nome não importa, mas a minha função é a de guardião do Portal da Senhora da Penha, - virou-se para nascente e apontou com o indicador direito - além naquela fraga, milenar local de culto, que alguns querem que caia no esquecimento. E perguntou de seguida – E vocês quem são e que procuram?

- Um grupo de amigos com laços familiares, que vivendo separados, se junta em agosto para matar saudades e por a conversa em dia, que decidiu dar um passeio ao cume da Serra. – Dissemos.

- Sinto que estão ligados por uma energia positiva e que são pessoas de bem. - Fez uma pausa e pediu para que nos sentássemos um pouco, que os anos dele e o nosso cansaço o mereciam e continuou – Não sei se já ouviram falar de mim, porque raramente sou visto e peço sempre para omitirem estes encontros. É que, infelizmente, não há muita gente preparada para eles. E eu como guardião dum local privilegiado de comunicação entre o Profano e o Sagrado sei isso muito bem.

Olhámos uns para outros a tentar perceber o impacto daquelas palavras e pergunta o Zé Barroso, com uma desenvoltura que me impressionou, mas habitual nele – Mas afinal que conversa é essa, onde é que o Senhor quer chegar?

Ele olhou-nos com o seu olhar profundo e, com voz que irradiava uma paz absoluta, continuou – A humanidade parece andar distraída, mas há milhares de anos que alguns homens sabem que o alto das montanhas são locais ideais de comunicação com a Divindade. Aliás, um dos pilares da vossa cultura, o Livro, refere-o imensas vezes. Todos já ouvistes falar que foi numa montanha como esta, bastante longe daqui, chamada Sinai, que a Divindade entregou a Moisés um código de conduta, bem pequeno, comparado com os de hoje, claro, unicamente com 10 artigos, mas que raros homens são capazes de cumprir.

Fez uma longa pausa e diz – Quando toda a humanidade agir segundo aquelas normas, que não são para católicos, como pensais, mas servem toda a humanidade, a terra fundir-se-á com o Céu e a humanidade passará a viver uma paz e felicidade permanente. Então, eu e outros guardiães deixaremos de ser necessários. - Calou-se e argumentámos, - Mas isso são balelas, não passa de um mito!

Encarou-nos um a um e disse serenamente – O ser humano é conhecido pela sua tradicional falta de fé. É velh,a mas bem significativa a frase do Homem Divino que por cá passou há dois mil anos «se tiveres fé como um grão de mostarda, poderás mover montanhas». O caminho é longo e difícil, mas homens santos e sábios conhecem os desígnios do Alto. Os Mais já o sabiam há séculos e eram chamados primitivos pelos espanhóis. Sabem que eles já tinham conhecimento que em 2012, se iniciaria uma nova era cósmica em que a materialidade começaria a ceder terreno à espiritualidade e ao sentimento geral de fraternidade?

Aqui não me contive e argumentei – Como é que acha isso se o planeta continua a viver tragédias terríveis por todo o lado? A guerra da Síria, as mortes de refugiados no Mediterrâneo… Não sabe o que se passa, certamente!

Olhou-me tranquilo e disse – A evolução é demasiado lenta para o vosso tempo de vida, mas os sinais são animadores e visíveis aos mais atentos. Reparem na quantidade de grupos que têm surgido para defesa ambiental, preocupados com a saúde do planeta, grupos pacifistas que arriscam a própria vida pela segurança dos outros e as ondas de solidariedade que surgem, cada vez com maior frequência, para salvar um ser humano, vítima de um terrível infortúnio.

Olhámos uns para os outros com ar de assentimento. Ele olhou-nos, sorriu pele primeira vez e continuou – A mudança mais profunda começa no interior de cada um de nós. A conquista de nós próprios é a chave. Continuem a cultivar a amizade que se sente em cada um de vós, a alegria e a paz, e atendendo ao lugar santo a que vão subir, recolham-se por um momento no vosso íntimo e ofereçam à Divindade a graça da saúde que tem recebido e vos permite ainda subir a este lugar, do amor que respiram nas vossas famílias e da amizade que vos une. São valores muito importantes, mas ao mesmo tempo tão frágeis.

Subitamente sentiu-se uma ligeira brisa, a luz pareceu vibrar com mais intensidade, talvez pelo calor que começava a apertar, e o velho desapareceu sem darmos por ela.

Subimos o resto que faltava para o cume, em silêncio, sem percebermos bem o que se passara. Teria sido uma alucinação colectiva, devida à conjugação do cansaço e calor ou apenas um sonho interior ocasionado pelo ar rarefeito da montanha?

No alto comemos a merenda, admirámos a paisagem e tiramos outro retrato a comprovar a felicidade de termos chegado juntos à meta.


No regresso o calor era abrasador e, enquanto nos refrescávamos, um pouco, à sombra do mais majestoso castanheiro das redondezas, à chegada ao Casal pelo lado de Nordeste, o Zé Barroso vai de soltar uns valentes assobios, «à pastor» e eis a revelação. O encontro com o guardião não fora irreal e as coisas estão a acontecer. Pois jamais fora visto noutros tempos e não foi ilusão: três cabras aparecerem a espreitar, no primeiro andar duma casa, ao balcão.

De maneiras que foi assim…

F. Barroso
Fotos do João Craveiro (Passaraço)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Conferência das andorinhas


Fim de tarde de verão.

Depois de um dia de imenso calor, procuro o fresco do jardim.
Entre as flores e a beleza encontro a serenidade e a paz no infinito azul do céu.
Voam abelhas de flor em flor. Atarefadas nas suas missões, nem dão pela minha presença.
Enlaçam-se as flores para chegarem mais alto e mais longe e saudarem o sol a cada manhã (Bons dias).

Olho o céu.
Voam andorinhas, pardais, carriças, labrandeiras e sei lá que mais.
Inquietos os voos de hoje. Nervosos e barulhentos. Porque será?
Vou investigar, talvez descubra porquê.
Sigo-as.
Oiço o barulho que fazem, cada vez mais e mais perto.
Fios de telefone, eletricidade e beirais cheios de andorinhas inquietas.
Algumas fogem com a minha presença mas regressam novamente, outras vão chegando.
Intensifica-se o som e olho mais além e mais alto.
Não há poiso para tantas patinhas de andorinha.
Reunidas em conferência na mais alta e abandonada antena de TV. Qual “sala” mais improvisada, arejada e pequena para poiso de tantas outras que reclamavam nos fios e beirais.

Que discutiam? Que reclamavam?
Estariam só algumas em conferência, (as da antena) e as outras, (dos fios e beirais), protestando?
Que dirão de sua justiça?
Que regras terão de mudar, pela instabilidade do tempo e pela destruição humana?
De que leis terão de abdicar para continuar a seguir os seus instintos naturais e os seus voos livres?
Que liberdade terá o futuro?

Subitamente fez-se silêncio.
As andorinhas abandonaram os seus poisos e regressaram aos seus ninhos.
O sol já finda no horizonte e a noite não tarda a chegar.

É hora de regressar a casa e no aconchego dos seus ninhos, adormecerem entre penas e sonhos de liberdade.

Luzita

21/Julho/2010

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O livro em Castelo Branco



A apresentação iniciou-se com o José Teodoro a falar do processo que levou à concretização deste projeto.


E continuou com a leitura de algumas das histórias que selecionámos…


…acompanhadas pelo coro do nosso rancho, na parte das cantigas.


Dois dos alunos do Agrupamento de Escolas José Sanches e São Vicente da Beira explicaram o processo de ilustração de algumas das histórias do livro. 
Fizeram-no lindamente!


Finalmente, as individualidades convidadas (representante da RVJ editores, Presidente da Junta de S. Vicente da Beira, Vereador da Cultura da C. M. Castelo Branco e Diretora do A.E. José Sanches e S. Vicente da Beira) falaram da participação de cada uma destas instituições neste projecto. 
Salientaram sobretudo a importância que iniciativas como esta têm na preservação da nossa identidade cultural e na passagem de testemunho às gerações que nos sucederem.


A plateia não estava cheia, mas estavam certamente os melhores!
Para a semana iremos às escolas de Alcains e São Vicente e, no dia cinco de novembro, ao Pequeno Lugar, na Partida.

Até lá!

M. L. Ferreira

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Estivemos no Lar

Fomos ao nosso Lar conviver com as pessoas que ali vivem. E levámos o coro do Rancho Folclórico Vicentino para cantar alguns poemas integrados em histórias do livro. Cantaram a nossa Paixão, é lindíssima!
Foi muito bom. Faço minhas as palavras que a Luzita Candeias me enviou:

Gostei da tarde de sábado, entre Crescidos com tantas histórias vividas e por contar.
Gostei de ver os sorrisos deles, os olhos a brilhar a quererem que as histórias e canções se prolongassem pela tarde.

Têm de voltar outra vez, ouvir e contar novas histórias e cantar outras cantigas.
Pode ser?
E como é que aparece uma burra assim? ["...forte como uma mula, elegante como uma égua e muito mansa."] É isso que vamos ver. Há 60 anos havia uma família cigana no Cimo de Vila, que morava numa casa hoje em ruínas, que era do Tonho Russo e portanto vizinhos do meu avô Bernardo.
Num inverso particularmente agreste, a vida não estaria a correr muito bem ao Chico Cigano que, com a casa cheia de filhos a chiar de fome, lá se encheu de coragem e foi pedir ao meu avô um conto de réis para relançar o negócio. Que lhe pagaria pelo São Miguel.
Dos Enxidros aos casais: histórias e gentes de São Vicente da Beira, "A Preta", 
de Francisco Barroso, pp. 64 e 65.
Ilustração dos alunos do 2.º ciclo do Agrupamento de Escolas de José Sanches e São Vicente da Beira

Amanhã estaremos na Biblioteca Municipal de Castelo Branco...

José Teodoro Prata

domingo, 9 de outubro de 2016

O Jareto

Uma cortina enegrecida dividia a cozinha da enxerga. O ganhão levantava-se mais cedo que as galinhas. Era uma casita pequena, o reboco há muito tinha desaparecido, grossos pregos de caibro espetados na parede seguravam os poucos utensílios existentes. Um tacho esmaltado, a candeia, um púcaro, panela de barro, trempes… a panela de ferro ficava junto ao borralho, assim como um púcaro onde havia sempre café.
Ao levantar-se do catre, o ganhão vestiu as calças de burel, calçou as botas cardadas, tirou do bolso do colete a onça de tabaco, e o livro de papel; sacou uma mortalha, nela colocou um pouco de tabaco. Com os lábios humedeceu-a, enrolou-a e acendeu o cigarro. Deu uma fumaça, pigarreou, “para sair o catarro”; de seguida pegou na garrafa da aguardente e matou o bicho.
Tirou uma malga da cantareira onde migou pão e encheu-a de café que estava dentro do púcaro de barro. Sentou-se no tropeço, mastigava e fumava ao mesmo tempo.
O galo cantou no galinheiro da dona Cidália, a alva sonolenta dormitava ainda.
Foi à gaveta da mesa, cortou uma fatia de broa e um naco de queijo das ovelhas da Casa Conde e embrulhou-o numa folha de couve; do bolso do casaco de burel tirou uma bolsa onde meteu a pitança.
Nova fungadela, desceu as escadas com algum cuidado, algumas já acusam o peso dos anos. Tirou a tranca à porta, levantou a cravelha e saiu para a rua.
Elevou os olhos para o céu estrelado, não bulia uma palha. Àquela hora da manhã, o ar já era quente. Dirigiu-se ao cabanão onde se situava a abegoaria.
Ao passar em frente à igreja da Misericórdia, tirou o chapéu e cumprimentou o Senhor Santo Cristo:
-Bons dias, Senhor Santo Cristo, já cá vou.
Homem rude, simples, trabalhador, aquela era a sua reza, não recitava o pai-nosso; se calhar nem o sabia. Com a sua rusticidade e humildade, rezava mais que muito boa gente que passava o dia a debitar pai-nossos e ave-marias. Era a sua jaculatória.
-Bom dia, Senhor Santo Cristo.
No cabanão, subiu as escadas, trouxe uma faixa de caneirões, abriu a cancela e espalhou-os na manjedoura; fez umas festas à Amarela e à Malhada.
Enquanto comiam a ração, o ganhão preparou o carro, foi buscar o aguilhão, atou a lanterna a um fugueiro, enrolou um cigarro, colocou a canga às vacas, atrelou-as e saiu. A camisa fraldejava. Desceu a rua da Igreja, a jeira ficava longe, ia preparar a terra para semear milho basto.
A aurora tinha acabado de se levantar, aos poucos o sol inundava com sua luz toda a terra, em cima do carro ia a charrua e um calabre. À noite tinha que passar pelo corte e carregar uma carrada de pernadas para o forno.
Quando chegou, desatrelou as vacas do carro, engatou a charrua e começou a lavrar. As leivas faziam-se com uma certa dificuldade, o terreno tinha muita erva, com o aguilhão destorroava os montes de terra que se iam agarrando à charrua.
Entardecia, tirou a charrua às vacas, voltou a atrelar o carro, o corte ainda ficava longe; era noite quando chegou à porta do forno.
No cabanão, desatrelou o carro, acendeu a lanterna e levou as vacas ao chafariz; enquanto bebiam, matou a sede numa das bicas da fonte velha.
Àquela hora havia mais de uma dúzia de mulheres à espera de vez para encherem os cântaros.
Os animais continuavam bebendo. De repente, duas vacas engalfinharam-se e começaram a marrar, os ganhões aflitos tentavam com seus aguilhões separá-las, parecia que tinham o diabo no corpo. A certa altura, o chavelho de uma das vacas partiu-se, os ganhões finalmente conseguiram acalmar as alimárias. O sangue escorria, as pessoas que estavam sentadas nos cais e a encher seus cântaros fugiram, não ganharam para o susto.
O dono da vaca que tinha ficado sem o chifre, no outro dia de manhã foi ao posto fazer queixa. O ganhão foi notificado para se dirigir ao tribunal de Castelo Branco. Antes de entrar na sala de audiências, alguém lhe disse o que devia dizer quando estivesse a ser interrogado.
À hora marcada, apresentou-se rubicundo e a tremer, perante o magistrado:
-Conte lá o que se passou. - pediu o juiz.
-Senhor doutor juiz, as vacas estavam a beber água no chafariz, de repente começaram a marrar. Faz de conta que eu sou um boi, o senhor é outro boi, vamos os dois a marrar, eu parto-lhe um corno, que culpa tem o ganhão?
-Tirem este homem daqui!
E assim ganhou a contenda.
- Bom dia, Senhor Santo Cristo…


JMS

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Apresentação


E amanhã, sábado, no Lar de São Vicente
No dia 19, na Escola de Alcains
A 20, na Escola de São Vicente
E na Partida, estamos a combinar...

José Teodoro Prata