sexta-feira, 17 de agosto de 2018

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Os mimos do meu pai


Quando o meu irmão Zé nasceu era eu ainda muito pequeno, mas lembro-me como se fosse hoje. Era de verão e acordei com uns barulhos estranhos dentro de casa. Ainda fiquei um bocado à escuta, mas depois levantei-me, meio estremunhado, e fui ver o que era. Quando entrei na cozinha encarei com uma mulher, nossa vizinha, com um menino ao colo. O cachopinho berrava que nem um desalmado, e ela nem deu logo por mim. Quando me viu disse-me assim:
- Olha aqui um menino tão lindo que vós cá tendes. Achei-o ali no meio das batatas e vim a ver se o queríeis, que eu já lá tenho que chegue.
Nisto entra o meu pai na cozinha com uma galinha na mão.
- Então não havíamos de querer o cachopinho, bonito com ele é?! E com os bofes que tem, come pão, não tarda! Anda-me cá a ajudar a despenar esta galinha para a metermos na panela.
Enquanto depenávamos a galinha, a mulher tratou do menino, deitou-o na cama da minha mãe e abalou, mas à saída ainda disse para o meu pai:
- Olha que tu não metas a moela nem os fígados na canja, que secam o leite às mulheres paridas.
- Esteja descansada, que até já sei quem é que se vai arregalar com eles.
Depois de meter a galinha na panela, sentou-se ao pé do lume, puxou umas brasas para o lado, pôs a moela e os fígados em cima e chamou-me:
- Assenta-te aqui ao pé de mim, que vais comer uma coisa tão boa que até vais lember os beiços.
Sentei-me no chão, no meio das pernas dele, e a água a crescer-me na boca só com o cheiro que vinha do lume. Passado um pouco pegou na navalha que trazia no bolso, tirou o fígado das brasas e começou a corta-lo. Cortava um bocadinho, metia-mo na boca e ficava a olhar:
- É bom, filho?
Eu mal podia responder, ansioso por mais. Depois fez o mesmo com a moela. Quando chegou ao fim ainda era de noite. Mandou-me mais um bocado para a cama, que ele tinha que ir cortar um molho de milho para as vacas.

Naquele tempo não nos sentávamos à mesa para comer. Quando era de verão comíamos por lá, nas hortas, ou no balcão da casa, sentados no chão ou em cima duma pedra e o prato no colo. No inverno sentava-se a gente num banco, à roda do lume, e às vezes até comíamos todos do mesmo caçolo. 
A mim, até uma certa idade, nunca me deram um prato; comia do do meu pai. Ele sentava-se sempre no mesmo canto e chamava-me logo para o pé dele. Pegava em mim, sentava-me na perna esquerda e punha o prato em cima da outra. Depois era uma colher para mim e outra para ele. O comer era quase sempre sopa de couves, batatas ou feijões pequenos, o mais das vezes estremes, mas, quando havia conduto, andava sempre à procura da lasca do bacalhau ou dos bocadinhos da morcela ou farinheira para mos dar a mim.

Então trabalhava para um dos homens mais ricos lá da Senhora da Orada. Ele era agarrado como o diabo, não dava nada a ninguém, mas a mulher era boa pessoa e tinha sempre um agrado para os trabalhadores. Quando era à noite, que o meu pai largava, chamava-o e dava-lhe sempre uma fatia de pão com uma talhada de queijo ou um bocado de chouriça e um copo de vinho.  
O meu pai pegava na fatia de pão e dividia-a em duas. Uma das partes cortava-a às sopas pequeninas com a navalha e ia comendo, devagar. No fim bebia o vinho por cima. A outra metade da fatia e o conduto escondia-os no bolso, enrolados numa folha de couve ou num bocado de papel de cartuxo que trazia com ele, já de propósito. Quando chegava a casa punha o que quer que levasse em cima da mesa, e com a navalha cortava-o em três bocadinhos: um para a minha mãe e os outros para mim e para a minha irmã (naquela altura ainda éramos só dois a comer pão). Ele ficava a olhar, consolado só de nos ver a comer aquele mimo como se fosse a melhor coisa do mundo.

Quando entrei para a escola tinha que vir a pé até a Vila. De verão fazia-se bem, porque éramos uns poucos lá de cima, e às vezes até vínhamos na brincadeira uns com os outros, mas de inverno é que eram elas… Muitas vezes chovia água basta e o vento até cortava, e eu, só com uma saca de serapilheira pela cabeça a servir de capucha, ficava encharcado até aos ossos. Às vezes ainda nos abrigávamos nalgum telheiro à espera que a chuva amainasse, mas sempre com medo, que quando chegávamos à escola tínhamos o professor à nossa espera atrás da porta, e era uma reguada por cada minuto de atraso. Uma vez cheguei a levar algumas trinta.
De verão andava descalço, mas no inverno tinha umas botas para trazer para a escola. Eram de borracha, e como não tinha meias passava o dia com os pés enregelados. Uma vez, ao serão, depois de rezarmos o terço, o meu pai levantou-se e foi à loja buscar uma mão cheia de feno, daquele mais fino e começou a entrelaça-lo. Entretanto eu e os meus irmãos fomos para a cama, que se fazia tarde. Ao outro dia de manhã, quando me calcei, as botas nem pareciam as mesmas, de quentinhas que estavam. O meu pai tinha feito umas palmilhas com o feno e, antes de abalar para o trabalho, aqueceu-as no borralho e meteu-mas dentro das botas. E todos os dias de manhã fazia a mesma coisa. Quando aquelas se romperam, fez-me outras, tão bem feitas que até pareciam de compra, e passei o inverno com os pés um pouco mais aconchegados. 

Sempre foi muito amigo de ir à Igreja. De verão ou de inverno não faltava a uma missa. Aos domingos levantávamo-nos cedo e enquanto eu deitava as cabras um bocado, ele ia a regar ou a ceifar um molho de erva para acomodar o ganal. Se tinha que ir ao mato, levantava-se ainda de noite porque dizia que o sol dos domingos fazia mal (mais tarde fiquei a saber que tinha era medo da Guarda ou dos próprios donos das terras, que se apanhavam um desgraçado com um molho de mato ou de lenha às costas, multavam-no e obrigavam-no a leva-lo para casa deles). Quando chegávamos a casa, já a minha mãe tinha o comer feito e a roupa dos domingos pronta para vestirmos. Depois de comermos vínhamos todos por ali abaixo, para chegarmos a tempo à missa.
Os meus irmãos mais novos sentavam-se nos bancos, um de cada lado da minha mãe, mas eu gostava de ficar ao pé do meu pai, em pé, cá atrás. Ficávamos sempre no mesmo sítio, ao lado da coluna do lado esquerdo da igreja. Depois da missa os outros voltavam para casa, mas eu ficava com o meu pai e íamos logo direitos à Fonte Velha. A seguir íamos até ao café da Tomásia; o meu pai pedia um copo de vinho, levava-o à boca e bebia-o logo todo duma vez. Mas não bebia até ao fim, deixava sempre coisa de um dedo no fundo e dava-mo:
- Bebe, que este é do bom.
Eu bebia, todo inchado, como se aquilo fizesse de mim um homem igual a ele. Depois de um pouco de conversa com algum amigo, saíamos direitos à Viúva; era a mesma coisa. E andávamos nisto até corrermos as tabernas todas da Vila, que naquele tempo eram bastantes. Só quando chegávamos ao fim é que abalávamos por aí a cima, às vezes já a cantar a Senhora da Orada, o São João ou o Menino Jesus…
Ainda hoje, quando vou à missa, gosto de ficar no mesmo lugar onde ficava com o meu pai; sinto saudades dele e tenho pena que só passados muitos anos fosse capaz de avaliar a grandeza daqueles mimos…

M. L. Ferreira

sábado, 11 de agosto de 2018

Estar onde não estou



Encontro-me na praça, passa a multidão
mas estou só
deambulo para este ou aquele lado
ninguém me presta atenção
Sinto-me sufocado
gestos, sorrisos e eu sentado
só; grande é minha solidão

As gentes andam passo apressado
pego no megafone e gesticulando
falo para as pessoas que vão passando
estou aqui, qual miasma pasmado
passante olha com desdém mofando
carros rolam, buzinam e vão andando
Tanto movimento, mas estou só

Que saudades da minha terra
não há correrias, nem multidão
ouço as avezinhas, piu, piu…linda canção
A brisa sussurrante e o verdor da serra
água cristalina, pura, corre em cachão
o rebanho pasta no prado e ladra o cão
Quem me dera lá estar… quem me dera

À noitinha ao toque das trindades
as chaminés fumegando
com este ou aquele vou falando
ritual de todas as tardes
O pai-nosso, vou rezando
as pessoas à fonte vão chegando
convivem, falam…que saudades

Zé da Villa

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Festas, terça à noite






Os poetas e a fadista.




O rancho e o povo.


A banda. Muito jovem!

A prata (o ouro) da casa. Soube bem estar e pertencer.

José Teodoro Prata