quinta-feira, 15 de abril de 2021

Bordado de Castelo Branco - 1

Fiz uma série de três podcasts sobre o bordado de Castelo Branco, para a Rádio Castelo Branco, que estão agora a ser transmitido. Aqui vos deixo o texto do primeiro deles.

O bordado de Castelo Branco é feito a fio de seda natural sobre pano de linho. Originário do século XVI, terá tido o seu período mais fecundo no século XVIII, beneficiando da criação de manufaturas de seda e da obrigatoriedade do plantio de amoreiras.

Este artesanato decaiu no século XIX, devido às doenças que afetaram o bicho da seda e à concorrência dos produtos industriais, então uma novidade.

O bordado de Castelo Branco renasceu nos inícios do século XX, pelas mãos de Maria da Piedade Mendes, natural do Estreito, que herdou um conjunto de colchas de linho bordadas a seda, as quais lhe serviram de modelo para os trabalhos que desenvolveu ao longo da vida e que inspiraram outras bordadeiras.

Em 1939, o Centro n.º 2 da Mocidade Portuguesa Feminina do Colégio de Nossa Senhora de Fátima dedicou-se à confeção deste bordado, em Castelo Branco.

No ano de 1941, a Junta da Província da Beira criou uma Escola de Bordados.

Entretanto, o Liceu e a Escola Industrial apostaram no ensino do bordado, na disciplina de “Lavores Femininos”.

Em 1956, a Mocidade Portuguesa Feminina criou o Centro de Indústrias Regionais, dedicado ao bordado de Castelo Branco.

Nos anos 60, o Museu Francisco Tavares Proença Júnior abriu uma seção expositiva de bordado e na década seguinte criou uma Oficina-Escola do bordado de Castelo Branco.

Atualmente, a produção pública de bordado encontra-se centrada no Centro de Interpretação do Bordado, que a Câmara Municipal abriu, em 2017, no bairro do Castelo.


José Teodoro Prata

domingo, 11 de abril de 2021

Estamos sempre a aprender

 A pandemia tem destas coisas. Já praticamente esgotara o que ler, quando descobri, de entre os livros da minha filha, um sobre as origens das atuais grandes religiões do Mundo. É curioso que todas elas definiram os seus princípios-base na mesma época, séculos VII a IV antes de Cristo, período designado por Era Axial.

Em cada capítulo apresenta-se a evolução ideológica de cada religião, todas asiáticas exceto uma, curiosamente a única laica: a filosofia grega. Na ânsia de perceber muitas coisas, apenas li as partes referentes ao judaísmo e à filosofia grega, mas no final fui presenteado com uma síntese de todas as grandes religiões, curiosamente quase iguais umas às outras.

Houve momentos traumáticos, como aquele em que descobri que os hebreus eram semitas autótones da Palestina e não originários da cidade de Ur, no sul do atual Iraque, de onde partira o patriarca Abraão. E não é que os hebreus nunca passaram aqueles séculos no Egito, de onde foram resgatados por Moisés? Os egípcios oprimiram-nos, sim, mas porque conquistaram a Palestina e a governaram durante muito tempo. Num caso e no outro, os livros de História continuam a contar histórias aos alunos...

A coisa boa foi a recuperação do Sócrates como o grande pensador dos valores da civilização dita ocidental. Afinal aquele homem humilde, feio, mal vestido, valeu muito mais do que o seus grandes discípulos Platão e Aristóteles. O Platão estragou logo tudo ao separar as ideias da realidade concreta, o que veio a provocar muitas desgraças e sofrimento à Humanidade.

Deixo-vos a imagem da última página:


José Teodoro Prata

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

Francisco Domingos Martins

Francisco Domingos Martins nasceu a 27 de Novembro de 1891, no Casal dos Meios (hoje abandonado e chamado A.º de Meios, nas margens da ribeira do Mourelo, na estrada entre a Partida e o Violeiro, a chegar a este lugar). Era filho de Domingos Martins, proprietário, e de Joaquina Maria. Ficou órfão de mãe ainda não tinha feito 2 anos. O pai voltou a casar passado pouco tempo, mas também ele veio a falecer em 1903, tinha Francisco 11 anos.

Uma vez que a segunda mulher de seu pai não quis ficar a tomar conta dos enteados, Francisco foi criado pelo tio paterno, Augusto Martins, do Ninho do Açor. Posteriormente, passou a viver com outro irmão de seu pai, João Martins, no Juncal do Campo. Por fim, foi morar em casa de uma irmã da sua mãe, no Padrão, onde ficou até se emancipar.

Segundo consta, chegou a estar algum tempo no Seminário de Cernache do Bonjardim, onde outro tio paterno, o Padre José Martins, seria director (esta informação de o Padre José Martins ser o diretor do Seminário não está confirmada).
Assentou praça em 21 julho 1911, então com 19 anos. Foi presente no Grupo de Baterias de Artilharia de Montanha, sendo incorporado no batalhão, em 13 de janeiro de 1912. Passou ao Regimento de Artilharia de Montanha, em 1 novembro de 1913, e foi destacado para a província de Angola, para onde seguiu a 3 dezembro 1914, fazendo parte da 1.ª Expedição enviada para aquela colónia portuguesa em África. Terá participado nas ações de defesa e recuperação dos postos invadidos pelos alemães a partir da Namíbia. Embarcou de regresso à Metrópole, a 21 outubro de 1915, chegando a Lisboa em 4 de novembro.

Francisco Martins veio a casar com Maria de Jesus Freire, natural de Almaceda, no dia 8 de Fevereiro de 1917. Logo após o casamento, foi novamente mobilizado para África. Ainda partiu para Lisboa, mas não chegou a embarcar e regressou a Almaceda, ficando aí a viver até cerca de 1930. Terá sido perto desse ano participante activo na Junta de Freguesia de Almaceda, embora se desconheça o cargo que desempenhou. Foi já durante esse tempo que se mudou para o Mourelo, onde chegou a ser Regedor/Cabo de Ordens e onde passou o resto da vida.

Não falaria muito dos tempos que passou em África. Segundo o bisneto Hugo dos Santos Gomes Martins, falava apenas dos animais exóticos que viu em Angola, principalmente dos crocodilos, dos quais tinha muito medo, e de uma ou outra escaramuça pontual, sem mais detalhes.


Do seu casamento com Maria de Jesus nasceram oito filhos, seis dos quais morreram ainda crianças.

Sobreviveram:

1.    Emília Martins, que casou com António Martins e tiveram 1 filha;

2.    Maria Joaquina, que casou com António Martins dos Santos e tiveram 2 filhos.

Francisco Martins faleceu no dia 18 de Março de 1973. Tinha 81 anos.

Está sepultado no cemitério de São Vicente da Beira, onde ainda se encontra a sua campa.

(Pesquisa feita com a colaboração do bisneto Hugo dos Santos Gomes Martins)

Maria Libânia Ferreira

Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"

Nota: Alterado após o comentário do Hugo Martins

domingo, 4 de abril de 2021

O abastecimento de água

 Aqui vos deixo o texto do podcast transmitido pela Rádio Castelo Branco esta semana.

José António Calmeiro, antigo diretor dos Serviços Municipalizados de Castelo Branco publicou, no jornal Reconquista, um artigo em que faz a história do abastecimento de água a esta cidade.

A falta de água foi sempre um problema de Castelo Branco e por isso surgiu um primeiro projeto de abastecimento de água, em 1895, o qual não se concretizou, tendo o dinheiro sido gasto em algumas obras na cidade.

Em 1932 voltou-se ao projeto, sem qualquer apoio do Estado, com a construção da barragem do Penedo Redondo, próximo da nascente da Ocreza, no Casal da Serra.

As obras foram concluídas em 1945, sendo presidente da Câmara Augusto Beirão, que criou os SMAS (Serviços Municipalizados) e nomeou Salles Viana para os gerir.

Mas esse ano de 1945 teve uma pluviosidade anormalmente baixa e abastecimento iniciou-se com cortes de água.

O problema persistiu nos anos de maior seca e por isso se construiu a barragem do Pisco, na Ribeirinha, em São Vicente. Mas também esta solução de 1966 se revelou insuficiente, pois a cidade não parava de crescer e foram construídas redes de distribuição de água a todo o concelho, nas décadas de 70 e 80. O ano de maior carência foi o de 1981, em que a água só correu nas torneiras 3 horas por dia.

Em 1986 arrancaram as obras da barragem de Santa Águeda, na Ocreza, que resolveram definitivamente o problema do abastecimento de água ao concelho e à região, pois o sistema de distribuição foi alargado aos concelhos do Fundão, Idanha e Vila Velha de Ródão.

José Teodoro Prata

terça-feira, 30 de março de 2021

Castelo Branco, Cidade: 250 Anos

 

Os 250 anos de elevação de Castelo Branco a cidade (em 1771) foram assinalados com várias iniciativas, entre as quais a publicação deste livro de muitos autores: vários da cidade, dois de Alcains e um de cada freguesia do concelho. 

Fui convidado pela nossa Junta de Freguesia para escrever sobre nós. Tentei retribuir esta honra com um texto que nos dignificasse e penso que o consegui: na apresentação fui um dos autores destacados pelo apresentador (Dr.º João Ruivo) e a Paula Reis, do Louriçal, antiga presidente da Junta e cronista do Reconquista, escreveu no último número do jornal uma crónica a partir de ideias lançadas no meu texto, reforçando-as (a crónica intitula-se Gardunha 2021).

Só muito recentemente me apercebi da responsabilidade que carreguei aos ombros e por isso o que atrás deixei foram meros rebuçados que me deram alguma tranquilidade. Escrevi primeiro um texto histórico, mas após um dia de trabalho concluí que não era isso que nos interessava. O passado tinha de constar  para explicar o presente e projetar o futuro. O espaço era limitado e houve aspetos que ficaram necessariamente de fora. Mas penso que ficámos bem representados e que o texto reflete o que somos e mostra as nossas potencialidades.

O livro é uma coletânea de textos, a maioria muito bons. Estará certamente à venda na Biblioteca Municipal de Castelo Branco. Aqui vos deixo o texto que nos representa:


Viver com qualidade em São Vicente da Beira

A freguesia de São Vicente da Beira é terra de transição entre a Gardunha, o campo albicastrense e a charneca encravada no arco que a serra faz para sudoeste. Abundam os vestígios arqueológicos que comprovam a presença humana nos últimos três milénios antes de Cristo e nos séculos seguintes, até à fundação da nacionalidade. De realçar, o topónimo Paradanta (Pedra de anta), uma aldeia de montanha; o Castelo Velho, num penhasco alcantilado por cima do Louriçal, com quem o partilhamos; inúmeros vestígios arqueológicos romanos no sopé da serra, entre a Ocreza e a Ribeirinha, sobretudo na zona das Vinhas.

Conta a lenda que, em meados do século XII, os moçárabes desta zona ajudaram D. Afonso Henriques contra os muçulmanos, na batalha da Oles, limite entre São Vicente e o Louriçal. Em agradecimento, o rei autorizou-os a fundar uma povoação, a que deu o nome de São Vicente, ofertando-lhes algumas relíquias do santo, cujos restos mortais acabavam de chegar a Lisboa, resgatados do Promontório Sacro, ainda sob domínio dos infiéis.

Este território vicentino foi depois delimitado pelo foral concedido por D. Sancho I, em 1195. Na doação que seu pai fizera da Herdade da Cardosa à Ordem do Templo ficara de fora o território da margem direita da Ocreza e nele o rei traçou os limites do novo concelho: os cumes da Gardunha, a norte, a ribeira de Almaceda, a oeste, e a ribeira da Ocreza, a sul e a este.

Destes anos primordiais serão as ermidas de Santiago, junto à Partida, e da Senhora da Orada, já dentro da serra, junto à via romana.

Os anos finais da Idade Média e o alvorecer da Modernidade foram fecundos por aqui. Datam deste período a maioria dos templos da freguesia e um rico património artístico, quase na totalidade de caráter religioso.

Outro período marcante foi o século XVIII, que constituiu o culminar deste mundo antigo a que se convencionou chamar Antigo Regime. São Vicente da Beira tinha juiz de fora licenciado; era terra de chegada de um importante fluxo migratório com origem na zona interior do reino entre o Zêzere e o Douro; as filhas da elite local de médios lavradores e rendeiros casavam com os filhos de elites de outras zonas; a Vila tornou-se um dos principais polos industriais do atual concelho de Castelo Branco, beneficiando da ligação com a Real Fábrica de Panos da Covilhã.

Neste século XVIII, que também foi marcante para a vila de Castelo Branco, cuja elevação a cidade, em 1771, evocamos na passagem dos 250 anos, assistiu-se a um reforço da ação governativa. São Vicente da Beira tinha Castelo Branco como centro regional. A supervisão do concelho vicentino era feita pelo corregedor da Comarca, pelo provedor da Provedoria e pelo bispo da nova diocese, sediados em Castelo Branco. Pela nova cidade passava tudo o que ultrapassasse a esfera concelhia.

Em 1807-12, as Invasões Francesas foram o princípio do fim deste Antigo Regime, pela desorganização política, económica e social que trouxeram ao reino de Portugal. Em 1820, chegou o liberalismo, a que se opôs quase toda a elite política, económica e religiosa da região e consequentemente também a de São Vicente da Beira. No nosso caso de forma mais gravosa, pois a família dos Condes de São Vicente, grandes proprietários absentistas, integraram o exército miguelista, na guerra civil

Uma vez consolidado o liberalismo, os médios proprietários e rendeiros apossaram-se das terras comunais e compraram as da Igreja e dos proprietários absentistas, fortalecendo as emergentes casas agrícolas (visconde de Tinalhas, da Casa Cunha e da Casa Conde).

Mas o antigo mundo da autossuficiência agrícola e artesanal estava a mudar: a indústria recentrou-se na Covilhã e as grandes rotas comerciais passavam no campo, tal como mais tarde a linha do caminho de ferro. Por isso o concelho de São Vicente da Beira foi extinto em 1895, no contexto de uma reforma administrativa do reino.

Hipólito Raposo escreveu que a extinção foi a contento dos comerciantes de Castelo Branco e de facto parece que ficámos zangados por umas boas décadas, embora a cidade tivesse continuado a ser o nosso centro administrativo.

O dinamismo industrial dos anos 70 do século passado, no eixo Alcains-Castelo Branco, recentrou-nos a sul, num tempo de desaparecimento do mundo rural, que na Vila significou o fim das grandes casas agrícolas e o reencontro com nós próprios.

Estas últimas décadas têm sido de afirmação de uma nova identidade vicentina que ainda não sabemos muito bem como é (porque em constante construção). Deixo algumas ideias-força que nos definiram no passado e podem ajudar-nos a contruir o futuro.

A serra da Gardunha como unidade orgânica de plantas, bichos e homens, o habitat a que pertencemos, desde sempre, inscrito já no nosso código genético. Falta-nos um projeto integrador para as três freguesias serranas (Louriçal, São Vicente e Almaceda), em articulação com o que se faz na vertente norte, concelho do Fundão.

As albufeiras do Penedo Redondo, Pisco, Santa Águeda e no futuro talvez Barbaído, todas alimentadas na totalidade ou em parte pelas águas que escorrem da Gardunha, na nossa freguesia. Enriquecem-nos a fauna e a flora e constituirão um entrave à desertificação futura.

O Castelo Velho, a escassos metros da rota da Gardunha do Geoparque NaturTejo, é um património histórico e natural incontornável. Nunca estudado, continua a esconder os segredos da civilização castreja que ali floresceu e o papel que desempenhou durante a Reconquista, juntamente com os seus filhos, o Castelo Novo e a Torre do Louriçal.

O caminho de Santiago, percurso de ares e águas frescas e saudáveis. Seguia de Castelo Branco, por Cafede (ponte e ermida de Santiago), Freixial, em linha reta para o Mourelo, Partida (capela de Santiago), subindo para a Paradanta até à portela que corta a serra ao meio e é a sua travessia mais baixa, continuando depois pelo vale da ribeira das Ximassas até ao Castelejo, rumo a Compostela.

A ermida da Senhora da Orada, num recanto acolhedor da Gardunha, junto à estrada romano-medieval que seguia do campo para a Beira, local ideal para o viajante descansar e se refrescar, antes de subir para a Portela de São Vicente, hoje Alto da Portela. No século XVI, ainda o povo se juntava e ali vinha fazer novenas, proibidas pela Igreja. Alberga hoje o retábulo policromado da igreja do extinto convento das religiosas franciscanas, em adiantado estado de degradação. Nas imediações, são exploradas as águas Fonte da Fraga.

O património artístico gótico-manuelino e renascentista é outra das nossas potencialidades. Pinturas e esculturas integrarão o futuro museu de arte sacra, sendo algumas obras de proveniência estrangeira. A família Costa, daqui originária, que desempenhou o cargo de Armeiro-Mor do reino, nos séculos XVI a XVIII, detinha a comenda de S. Vicente da Beira da Ordem de Avis, cabendo-lhe administrar a Igreja. Foi a esse título que terá adquirido algumas destas obras de arte, assim como outras incrustadas nas paredes das capelas e de casas particulares.

A religiosidade popular, que tem como momentos altos as romarias de Santiago e da Senhora da Orada, a Semana Santa, a Procissão dos Terceiros e a festa do Santo Cristo.

A singularidade das nossas terras. Nas aldeias, habitações, templos, fontanários, fornos, e moinhos de um tempo que persiste na memória. As nossas aldeias de montanha, Vale de Figueira, Paradanta e Casal da Serra, tão em harmonia com a paisagem como as da Charneca (Tripeiro, Mourelo, Violeiro, Pereiros e Casal da Fraga). A seguinte frase do ti Meguel Jerolme diz tudo sobre as suas gentes: «Nunca te preocupes, filho. Aqui, na Charneca, há sempre uma mesa com qualquer coisa para comer e uma cama, se for preciso, nem que seja uma faixa de palha». E a Vila, a lembrar o urbanismo romano: a grande praça com o seu pelourinho manuelino, ladeada pela Igreja, Misericórdia e Casa da Câmara, e depois as ruas em quadrícula.

E a terminar, as nossas gentes, desde os mais ilustres, que se foram da lei da morte libertando, aos mais humildes, todos nos deixaram por herança este chão onde só queremos ser felizes.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 25 de março de 2021

Os Médicos do Partido e outras medicinas

Viajar pelos registos paroquiais da freguesia tornou-se um hábito/prazer quase diário, principalmente pela quantidade de informação que nos dão sobre as gentes que fizeram estas terras que nós pisamos agora como se sempre tivessem sido assim.

Por estes dias tenho andado nos anos 20 do século XVII e uma das coisas que me despertou alguma curiosidade nos registos de batismo, foi a referência a Manuel António Falcão, referido como médico do partido, padrinho da criança batizada. No Google, num fórum de genealogia encontrei o seguinte:

«Caros,
Meu heptavô Manuel Antonio Falcão (nascido na Guarda) foi médico do partido de São Vicente da Beira. Seu filho, meu hexavô José de Mena Falcão, conforme indicado no "Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil Existentes no Arquivo da Marinha de Ultramar", desistiu da sua pretensão ao partido da Praça da Colónia do Sacramento em carta datada de 21 de setembro de 1734.
Cordiais saudações
Marcello Borges»

Encontrei depois registos de batismo de vários filhos deste médico e de Joana Barata, natural de São Vicente, com quem se tinha casado em 1721. Na altura Manuel António Falcão já era viúvo de Brites Gonçalves, natural de Tinalhas, de quem tivera outros filhos, entre os quais o referido José de Mena Falcão.

Este registo do filho António, nascido em 20 de fevereiro de 1722, dá-nos informação importante sobre este médico. A mais interessante será talvez a de que era filho de Manuel Falcão, Prior duma igreja do Fundão, e mais tarde Deão da Sé da Guarda. A mãe era Maria Francisca, solteira, também natural do lugar do Fundão. E é interessante esta informação porque vem confirmar que a paternidade dos padres, na altura, era frequente e encarada e assumida com alguma naturalidade. Confirma também a ideia que temos de que os filhos dos padres eram pessoas que adquiriam um grau de instrução e estatuto social mais elevado do que o resto da população.

Sobre o papel destes médicos, um outro participante no referido fórum diz o seguinte:

«…antigamente, os cuidados de saúde eram assegurados pelos médicos municipais, também denominados facultativos do partido.
Constituíam competências dos facultativos, nos termos do disposto no artigo 125º do Código Administrativo, entre outras as seguintes:
- tratar gratuitamente os pobres, expostos, crianças desvalidas e abandonadas, presos;
- proceder à vacinação e revacinação sem distinção de classes;
- inspeccionar as meretrizes nos dispensários.
Os médicos municipais (facultativos do partido, ou simplesmente médicos do partido) eram providos em concurso público e estavam dependentes, em termos administrativos, do Administrador do Concelho.
Esta designação dos médicos municipais perdurou até à revisão do Código Administrativo (1936-1940).
O termo Partido, neste caso, assume um significado muito próximo de público. Isto porque também existia medicina privada e, tais médicos, eram designados por facultativos particulares.
Cumprimentos.
Júlio Sousa»

Pela descrição do trabalho realizado por estes médicos, parece que, de certa forma, foram os antecessores do atual SNS, pelo menos para os pobres. Os mais ricos recorriam aos médicos privados, que recebiam os clientes nos seus próprios consultórios.

Para além destes médicos, havia ainda os sangradores, que eram uma espécie de cirurgiões que não tinham qualquer tipo de formação, mas acreditavam que tinham um dom que podiam passar de pais para filhos. Em meados do século XIX, um dos sangradores identificados em São Vicente chamava-se José Patrício Leitão. Era de Alijó mas casou por cá em 1862. Mais tarde, o filho Luís Maria do Patrocínio herdou-lhe a profissão.

E quantos de nós não tivemos por primeiro dentista o barbeiro da terra? Lembro-me bem do Senhor Zé Fiambre … E os endireitas da Paradanta e do Casal da Serra que, como a água da Senhora da Orada, faziam autênticos milagres nos corpos de quem os procurava?

M.L. Ferreira

domingo, 21 de março de 2021

Travassos e o caso da gabardine

1. Sociedade curiosa, aquela em que nos criámos: as mulheres arrumadas em dois grupos, para simplificar, senhoras e plebeias – as primeiras (lembram-se?) D. Maria,  D. Zara,  D. Aldina, e as outras, a Lurdes, a Rosa, a Laura, a Etelvina, etc.; nas mais novas (é uma maneira de dizer) havia as meninas e as raparigas – Menina Maria de Jesus, Menina Nelita, Menina Isaura, Menina Belinha, e as outras, Celestes, Amálias, Joaquinas e um rosário de Marias.

Ainda em modo sociológico, mudando de género, uma amostra equivalente: o Menino Antoninho, o Menino Joãozinho, e os outros, digamos, a malta – o Baião, o Sanotes, algumas dinastias, como os Machanas e os Balaias, o Serralheiro, o Quina, o Coluna, o Aranha, o Estrelado, o Travassos, uma extensa coluna alcunhástica, que reivindicamos na lista do nosso melhor património.

2. Disciplina recente, todos sabemos, o marketing ensina-se nas universidades e anda por aí na nossa vida. Um manual da especialidade, que leva o título de Mercator, coleciona em Portugal 30 anos de sucesso em vendas.

Produtos, mercados, consumidores, comunicação são algumas coisas de que trata; diferenciação é um dos mandamentos do marketing. Do que se trata? Em termos muito simples: se pensarmos num produto, serviço ou empresa, diferenciação é a capacidade de ser percebido, pelos consumidores, como diferente dos concorrentes. Objectivamente, quem se diferencia é mais forte no mercado, tem maior probabilidade de sucesso.

3. Contemporâneos de Travassos, com ele aprendemos o poder do marketing.

Adolescente, para o baixo (estatura média-baixa, no padrão local), cabelo liso, para o magro, mas composto, fato completo com a qualidade possível, calça cingida às pernas ligeiramente arqueadas, Travassos usava por cima uma gabardine três-quartos branca.

Em S. Vicente não falhava um baile; num domingo, se não o vissem por ali, estava de certeza na localidade vizinha onde tivessem deitado foguetes de madrugada. De todo o rapazio, era um dos de maior sucesso em bailes e bailaricos fora da terra, noites inteiras de dança, sem notícia de uma “tampa”. Porquê esse registo invejável?

A memória, que tantas vezes nos engana, regista que foi o próprio a explicar; se não foi, dá no mesmo, o que conta é a lição: “Estão a ver isto?”, disse, apontando a gabardine. “Em qualquer lado, sou o único com uma peça assim, desta cor.”

Registámos, mestre, um caso prático de diferenciação!

Sebastião Baldaque, Março 2021