sábado, 26 de novembro de 2016

Canja de cobra

O sacristão Manuel subiu as escadas da torre e encostou-se à varanda voltada para o cimo da vila, a saborear o ar fresco da manhã. De seguida pegou nos badalos e começou a badalar as ave-marias. O sol ainda se escondia por detrás da Oles, mas aos poucos inundou toda a vila e campos em redor. Camponeses, jornaleiros e proprietários iam a caminho das hortas para iniciarem mais uma jornada de labor.
O portão do quintal da casa do César abriu-se e o ganhão Dionísio à frente do carro de bois seguiu pela rua das Laranjeiras, em direção à Fonte Velha, a caminho da Tapada do João Gago. Todos os ganhões; “e eram muitos” seguiam cada um sua vida. Alguns dirigiam-se aos pinhais carregar lenha para os fornos comunitários…
Jornaleiros trabalhavam de sol a sol.
Antes de partirem para os trabalhos campestres muitas pessoas assistiam à missa da manhã.
Quando os homens trabalhavam perto da vila as mulheres levavam-lhes o café “por volta das dez da manhã fazia-se uma pausa”. À uma hora, ao toque das trindades, jornaleiros paravam os trabalhos, jantavam e dormiam a cesta. À tarde, nova paragem para se merendar: Um naco de pão com umas azeitonas, uma fatia de queijo…
Naquela época um novo prior tinha chegado há poucos meses à vila, depressa granjeou a simpatia do povo, sempre bem-disposto, comunicativo, mestre-escola…
Ao novel hospital chegavam doentes de toda a freguesia e das freguesias vizinhas para encontrarem a cura dos seus males. Em frente situava-se o tronco do senhor Bonifácio, quando não havia alimária para ferrar ele e o seu ajudante Joaquim da “burra” faziam ferraduras e canelos. Joaquim da “burra” de vez em quando gritava, rebolava no chão cheio de dores.
Meu pai dizia que lhe saiam as tripas “mais tarde soube que era quebrado”.
Ciganos acampavam detrás da capela de São Sebastião e o mestre Ventura juntamente com seus filhos fazia carros de bois na oficina que ficava por baixo da sua casa. Certa vez; eu ia a passar, encaro com uma cigana a esfolar uma cobra, uma panela de ferro aquecia água na fogueira, cortou-a em vários pedaços e meteu-a na panela. Assustado, segui caminho com a cesta na mão onde ia o jantar do meu pai. Quando cheguei à Oles, contei-lhe e respondeu-me:
- As cobras fazem uma canja tão boa ou melhor que a canja de galinha
Não fiquei convencido…
Era o tempo das malhas, ganhões transportavam faixas de centeio, trigo, para as eiras.
A eira da dona Luz estava cheia de rolheiros.
Malhadores desatavam os nagalhos, estendiam as faixas, ouviam-se os manguais com cadência ritmada debulharem as espigas, a palha ia sendo retirada ficando a semente misturada com as praganas, à tardinha aproveitando a nortada, procediam à sua limpeza enchiam um meio alqueire que levantavam no ar e iam lançando a semente para a eira, o vento empurrava as praganas e as rabeiras. A semente caia em cima de umas giestas, aos poucos o monte crescia, os catxiços eram retirados e juntavam-se a um canto. A palha de centeio aproveitava-se para as enxergas, a trigueira não prestava, desfazia-se, dava-se aos animais.
O ar fresco dava lugar ao calor que se tinha feito sentir durante o dia, os notáveis, remediados e os ricos da vila reuniam-se em São Sebastião, sentavam-se nos cais que cercam a capela, cavaqueavam sobre os mais diversos temas.
Uma das pessoas habituais nas tertúlias estivais daquela época era o padre José David.
Conversa puxa conversa “são como as cerejas”; a certa altura diz:
- Meus amigos; quando cheguei a São Vicente a primeira pessoa que confessei foi uma mulher; disse-me que era bruxa, fiquei sem saber o que lhe havia de dizer, não contava com tal segredo. Absolvi-a e, como penitência mandei-a rezar cinco pai-nossos e cinco ave-marias.
Eis senão quando na estrada passa uma mulher com um cesto à cabeça cheio de hortaliças:
- Boa tarde; saiba vossa reverência que tenho a consolação de ser a primeira pessoa que vossa reverência confessou na nossa terra.
O padre ficou sem pinta de sangue, todos os presentes ficaram a saber quem era a bruxa.
Anoitecia, sacristão tocava as ave-marias. À vila chegavam os camponeses, jornaleiros… na Fonte Velha sentavam-se nos cais com a enxada ao lado, as mulheres esperavam a sua vez para encher cântaros, regadores… algumas passavam com o tabuleiro à cabeça deixando um rasto cheiroso e agradável a pão acabadinho de cozer.
Outros, entravam na taberna do João coxo e emborcavam um cajeirão.
Fiquem bem.

J.M.S 

5 comentários:

Anônimo disse...

O JMS é muito bom a descrever o quotidiano das pessoas e é isso que prende a atenção. Depois, debita muita informação. Por outro lado, nós também conhecemos alguma da realidade da vila e podemos imaginar e inflacionar visualmente as situações descritas. Vai escrevendo, rapaz!
Já agora: a palha centeia (e não a triga) era aquela com também que se faziam os nagalhos para atar os molhos dos cereais. Os motivos dessa preferência eram os mesmos que o JMS diz no texto.
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Deve ser verdade porque a minha mãe, não me lembro se por ter provado ou por ouvir dizer, também achava que a canja de cobra era melhor que a de galinha; até porque, em tempos de fome, não há má boca…
Também me lembro do Joaquim da Burra e de dizerem que era quebrado e às vezes se lhe saíam as tripas. Visão terrível, porque o via logo suspenso pelo chambaril, pendurado na sonave da loja (é que também ouvia dizer que, por dentro, o corpo do homem é igual ao do porco…) com as tripas de fora. Os pesadelos que aquilo me provocava!
E sobre segredos de confissão mal guardados? Os estragos que fizeram!...
A propósito de toque de sinos: soube que o Pedro Inácio foi convidado para participar num evento promovido por várias entidades, entre as quais a Câmara da Idanha e a ADRACES, na qualidade de um dos melhores tocadores de sinos da região. Diz que aprendeu com o Ti António Maria.

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

1. Se a bruxa era bruxa, como é que não sabia que o padre Zé "a estava a denunciar"? Isto das bruxas é mesmo complexo...
2. O Pedro Inácio está de parabéns, mas tem andado muito pringueiro. Quando é que nos volta a brindar com os antigos toques de sinos? Vá lá, Pedro, a malta merece uma prenda na noite de Natal!

Anônimo disse...

Com esta mania de andarmos meio século atrasados o texto do Zé Manel merecia uma tradução para a linguagem hodierna, como esperará o leitor enganado, que a Libânia refere.
Admito que muita gente possa achar que o livro não passa de um conjunto de histórias da carochinha. A verdade é que elas foram engendradas pelo simples prazer da escrita e de relembrar tempos antigos. Acho que nunca esteve na cabeça dos participantes escrever um livro ou fazer história, se bem que alguns dos participantes já tenham escrito livros de grande categoria.
Por isso, aquele tipo de crítica, do crítico assanhado, não faz sentido nenhum. Felizmente que nem todos gostam das mesmas coisas.
E a vida no fundo é isto...
FB

A S disse...

postar aqui historias do antigamente ñ é termos a mania de andarmos meio seculo atrasados, uma aldeia, uma cidade ou um país sem historia ñ tem valor histórico, temos que o preservar, e é muito bom recordar, fala assim quem ñ conheceu o senhor bonifacio e o tronco, o xquim da burra, só ñ sabia que era quebrado, e outros mais que nos fazem voltar,por pequenos momentos a esse tempo, mas ñ pensem os intelectuais de hoje, que os que contam as tais "historias da carochinha"pararam no tempo, ñ, tb utilizam as novas tecnologias para receber e enviar informação, ñ são infoexcluídos, evoluímos, ñ nos envergonhemos de lembrar com orgulho o nosso passado.Disse