sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O Guimarães

Mais coisa menos coisa, andar-se-ia pelos idos de 1930. Por esta altura ainda Salazar não tinha tido tempo de impor a ordem no Retângulo da Europa, quanto mais no império que lhe restava, ilhas e além-mar, da África à Índia e a Timor! Mas já conjeturara a lição que iria dar aos iletrados portugueses, que ficaria para a história!
Neste Portugal europeu, rural, pobre, alegre e simples, tal como o governante o imaginara, deambulavam malteses de pau e manta, vagabundos, pequenos ladrões, malfeitores de pouca monta (mas havia alguns perigosos que podiam matar!), pedintes e zés-ninguéns esfomeados! Em suma, miseráveis de toda a condição! A faixa da Beira-Serra, por alturas da Gardunha, não fugia à regra.
Nas cidades e vilas mais importantes da região já havia pequenas guarnições do corpo da Guarda Nacional Republicana, como acontecia no Fundão. Onde pontificava o austero sargento Silva, nascido na vila de S. Vicente da Beira, irmão do ti’ António da Silva, alfaiate, com atelier posto na rua Manuel Mendes e pai das manas “Silva” que moraram nesse mesmo local até há pouco tempo.
Na vila, porém, apenas o Regedor e a força de Cabos de Ordem tentavam suster o freio à vadiagem e manter a legalidade, como o sherife, com os seus ajudantes, num qualquer western americano.
Há muito que o sargento Silva esquadrinhava a serra da Gardunha e arredores, com a sua gente, na peugada de delinquentes como o Pistotira, o Cireneu ou o Tonel, considerados pelas autoridades como perigosos e, que se sabia ou se presumia, andarem pelas bandas da vila.
De entre os vários e conhecidos bandoleiros que varriam a região, havia um que dava pelo nome de Guimarães. Não se sabendo se de seu nome de batismo, se por ser oriundo da cidade berço. Eventualmente, andaria fugido às autoridades do norte, tendo vindo parar a estas terras beirãs por mero acaso ou estratégia de fuga. Apesar de ser um marginal e homem de porte atlético, capaz de bater qualquer um que lhe fizesse frente, não era, pelo menos por aqui, considerado dos mais temidos. Fosse porque, pelas dificuldades de comunicação, não se sabia do seu currículo, fosse porque ainda não tivera tempo de fazer desacatos, por estes lados, dignos de assinalar! Mas em todo o caso, já sinalizado como marginal de furtos menores!
Um dia — possibilidade sempre à espreita dada a sua atividade de risco, como assaltante — foi preso por vários vizinhos que, discretamente, se reuniram, na Oles, lugar em que se tinha aventurado à cata de galinhas para matar a fome. E onde foi encurralado, apesar da sua estrutura física de meter respeito! Mas, afinal, que faria ele contra vários homens decididos a guardar o que era seu, que tanto trabalho lhes custara e que era o seu próprio sustento e das suas famílias?! Quando se viu acossado, calculou as suas probabilidades. E entendeu que, sozinho, nada podia contra eles. Pois apercebeu-se que os vizinhos estavam firmes, para fazer justiça por suas próprias mãos, se resistisse. Ele bem sabia como a justiça, nestes casos, pode ser muito dura e pouco proporcional ao ato criminoso! Nem era pelo valor dos animais roubados, se bem que isso já fosse um prejuízo, mas pela violação da paz e sossego do lugar e pelo medo e inquietação causada. Estando ele apenas munido da faca com que degolara as aves que já levava debaixo do braço, pensou que o mais certo era algum dos do grupo que o cercava trazer o canhangulo, arma de fogo que, mais ou menos clandestinamente, quase todos tinham em sua casa, naquele tempo, com que matavam um ou outro coelho ou perdiz e que também os podia defender de maus encontros. Ora, duas ou três galinhas não valiam a sua vida! Por isso decidiu não oferecer resistência e rendeu-se.
Era já noite e os homens, após lhe terem atado as mãos, muniram-se de duas lanternas e cada um pegou em seu varapau para defesa contra imprevistos do caminho. Iniciaram a marcha para o levar à vila, a fim de o entregar às autoridades locais. Subiram a estrada de macadam desde o fundo da barreira da Oles até ao cruzamento com a Cascalheira, onde descansaram um pouco. E continuaram pela mesma estrada que os havia de levar à entrada da povoação, por S. Sebastião, Fonte Velha, rua do Beco, até à praça, em direção ao edifício da antiga câmara municipal.
Ao passar pelas tabernas que havia neste percurso, que ainda se encontravam abertas, aquele tropel de transeuntes levando um prisioneiro, não podia deixar de despertar a curiosidade de alguns basbaques que vinham à porta, com o copo de vinho na mão, meio bebido, a dar fé do que se passava. Uma ocorrência como aquela não era vista todos os dias. Muitos dos presentes deixaram a taberna, seguindo a turba até ao edifício da antiga câmara, a espreitar qual seria o desfecho daquele inusitado caso.     
Chegados ao local, um dos homens que trazia o delinquente foi dar parte da situação ao Regedor, que logo mandou chamar os Cabos de Ordem, enquanto os outros ficaram na praça velha, junto à porta que nos fica à mão direita quando observamos lateralmente o edifício desde essa praça.      
Aí se situava a cadeia. Mas também se recorria muitas vezes, como prisão improvisada, ao antigo coreto, entretanto demolido, existente na grande praça, ao lado do pelourinho, cuja construção assentava numa base sextavada, robusta, construída em pedra, com dois metros de altura. Tinha porta forçuda, numa das faces, a abrir ao nível térreo e dois estreitos óculos para entrada de luz e ar a meio de duas das outras faces. Esta base era coberta por uma laje de alvenaria e ferro. De cada um dos seis cantos desta laje, partiam altas colunas em ferro e uma ao centro, sobre as quais assentava uma cobertura em chapa de metal vigoroso, a tapar o coreto. A ligar as colunas em todo o perímetro da laje, uma grade de proteção em ferro de um metro de alto, com uma abertura a meio de um dos lados. Acedia-se ao coreto por essa abertura, através de uma escada metálica amovível que se colocava nos dias de concerto da banda. Era, aqui, por baixo, no coreto, neste autêntico forte de pedra, que se encarceravam os prisioneiros.
Foram convergindo, paulatinamente, para junto do edifício da câmara, onde se encontrava o adjunto dos vizinhos com o prisioneiro, o Regedor, os Cabos de Ordem e muitos mirones que deram pelo sururu e que tinham vindo das tabernas próximas.
Acontece que estava ocasionalmente em S. Vicente da Beira, por esses dias, o sargento Silva, na sua missão de tentar capturar os malfeitores que andariam aqui pela Gardunha, segundo informações que haviam chegado ao Posto da GNR do Fundão.
Os marginais, quando eram capturados pelos vizinhos, uma espécie de milícias, como aconteceu com o Guimarães, estavam inevitavelmente sujeitos à exposição pública. Após serem amarrados, dados como inofensivos e submetidos à irrisão popular, desencadeavam na massa popular vários tipos de sentimentos contraditórios e mudanças repentinas de humor e agressividade coletiva. Certamente dependentes do caráter e da forma como cada um entendia as ofensas destes agentes do desassossego. Mas a maioria do povo assanhava-se muito contra eles, não tanto pelo que roubavam, como já se referiu, mas porque perturbavam a pacatez das suas vidas e eram, muitas vezes, uma ameaça séria para as pessoas, não hesitando em fazer sangue, se fosse caso disso. Pois, como muito bem se sabia, um ladrão acossado é como fera brava enjaulada. Torna-se furibundo e, no seu próprio desnorte, é capaz de matar e chacinar seja quem for que se atravesse no caminho da sua fuga.
Chegara, entretanto, à praça, o sargento Silva porque ouvira dizer que o Guimarães tinha sido preso por vários homens que já lá se encontravam e onde também já estavam o Regedor e os Cabos de Ordem. Vinha munido da competência e da legalidade que a farda da GNR lhe conferia. E diz ao prisioneiro do alto da sua autoridade, agarrando-o pelos colarinhos:
— O que te vale a ti, meu sacana, é não seres quem eu procuro!
É que o sargento Silva, como já se referiu, investigava, na altura, na vila, o paradeiro do Pistotira, do Cireneu ou do Tonel para lhes deitar a unha, o que, até então, ainda não tinha sido possível! 
Dito aquilo e, num assomo de fúria e gesto súbito, rápido como um raio que rasga o horizonte, atirou contra a face do prisioneiro um molho de chaves e algemas que trazia. E logo o sangue na sua fronte se soltou abundantemente!
O sargento talvez tivesse percebido, por momentos, que se tinha excedido no seu zelo e competências! Pois o homem permanecera, até ali, calado e aprisionado! Mas o tempo já era de repressão como preconizava o novo governante de Lisboa! Começava a faltar o respeito e dignidade pelas pessoas!
Com este passo, porém, a turma agitou-se e manifestava-se com grande algazarra:
— Ponham o homem na enxovia!
— Prendam-no e levem-no a tribunal!
— Deem-lhe umas valentes chicotadas no lombo!
— O que ele precisava, sei eu! Era ser metido num barco e levado para o degredo para as colónias de África! — diziam vários dos presentes.
— Mate-se já aqui este bandido! — gritava alguém mesmo ali ao lado do prisioneiro! 
— Escache-se agora este ladrão! — berrava o mesmo indivíduo!
O Guimarães, com a face cheia de sangue, olhou para ele. Não o conhecia! Mas era da vila! Era o Zé Parrito!   
Ao cabo de um bom pedaço nesta giga-joga, espécie de vindicta de rua, foi então que interveio o ti’ Zé Pedro, homem respeitado em toda a vila e arredores pelo seu caráter e pulso, talvez o único que se podia bater, mano a mano, com o possante Guimarães.
— Não senhor, aqui não se mata ninguém! — disse com firmeza.
— Então vai-se matar um homem como se fosse um animal?!
— Pois enquanto eu aqui estiver ninguém mais lhe toca!
Todos recuaram um pouco na sua sanha contra o preso, não só por respeito ao homem devido à autoridade natural que infundia como também pelo seu porte físico. Todo ele se impunha pela sua honorabilidade! Salvou-se o Guimarães, desta feita, de uma possível vingança popular, pela intervenção e verticalidade deste homem.
Um a um foram-se os espectadores da assistência afastando. Voltaram às suas vidas ou regressaram à taberna para acabar o sorvo do copo do vinho que o alarido da prisão do Guimarães lhes havia interrompido.
Ficava o detido agora apenas nas mãos do Regedor que deu ordens aos seus Cabos para que o encarcerassem, justamente, no coreto da praça. Não houve outro remédio porque a cadeia da casa da câmara estava em obras! Alegava que o homem era suspeito de vários assaltos. Tendo, inclusivamente, sido surpreendido em flagrante delito, a roubar galinhas, na Oles, por vários vizinhos que se uniram para o prender. Durante a noite em que o Guimarães dormiu, preso, dentro do coreto, alguns energúmenos ainda se divertiram a meter paus compridos pelos óculos da entrada de luz e ar, na tentativa de atingir o prisioneiro!
Mas o destino destes homens fora da lei, apanhados na Gardunha, estava traçado. Eram levados, no outro dia de madrugada, a pé, para a Soalheira. E dali, de comboio, até Castelo Branco, onde eram entregues às autoridades concelhias. Foi o que também aconteceu ao Guimarães. Uma vez na cidade e, após ser julgado e condenado pelos atos criminosos que cometera, cumpriu ou cumpria prisão — não se sabe bem porque as fontes não são esclarecedoras. Tudo aponta, porém, para a sua evasão da cadeia de Castelo Branco. O que se sabe, com certeza, é que o Guimarães tinha voltado à liberdade, pelo menos por uns tempos. Mas não mais se esqueceu daquela sua detenção na Oles, da prisão, por uma noite, no coreto de S. Vicente da Beira e das injúrias, afrontas e agressões de que então foi alvo!   
Sucede que, à época, havia bastante comércio de madeiras entre os proprietários dos pinhais da serra da Gardunha, designadamente, da freguesia de S. Vicente da Beira e os empresários da construção civil da cidade de Castelo Branco que crescia a olhos vistos! Como é bom de ver, os transportes rodoviários de camioneta não existiam ou eram incapazes. O transporte da madeira era então efetuado quase exclusivamente por carros de bois. Era vê-los, numa azáfama, a carregar madeira por esses pinhais! E juntarem-se depois, em fila, estrada abaixo, tão ronceiramente como vagarosos eram os bois, a caminho da cidade! Iam pelo escuro da manhã e estavam de volta à noite!
Ali pela estrada nacional, sensivelmente próximo de Alcains, costumavam parar a marcha para a bucha e descanso de pessoas e animais. Só se pondo em andamento após recobro de energias que bem precisas eram.
Os carros formavam-se numa grande fila, bem encostados ao longo de um dos lados da estrada, enquanto durava a pausa da fatigante caminhada. Eis senão quando aparece o Guimarães que então gozava tempos de liberdade fosse ela definitiva ou precária. O que é certo, é que ele ali estava, alto e garboso, junto dos ganhões de S. Vicente da Beira, com redobrada pujança e renovada energia. Ora, o Zé Parrito era um dos ganhões mais assíduos no transporte das madeiras, atividade com que ganhava a vida. O Guimarães tinha-o visto apenas daquela vez na praça em S. Vicente da Beira e não conseguia identificá-lo. Apenas se informara que ele costumava fazer o transporte da madeira por aquele trajeto, juntamente com os outros ganhões. Por isso, deveria estar por ali. O antigo prisioneiro do coreto da vila acercou-se, pois, do adjunto dos transportadores de madeira que ali se encontravam a repousar da jornada — e se eles eram muitos! E sem medo ou receio algum — que ele era um homenzarrão! — berrou, destemido, alto e bom som para que fosse bem entendido pelos presentes:
— Onde é que está aqui aquele que em S. Vicente da Beira, quando lá estive preso, disse: “Mate-se já aqui este bandido!” e “Escache-se agora este ladrão!”. Se o apanho, quem o mata já aqui sou eu!
Os presentes ouviram e calaram! O Guimarães apenas veio a saber, junto dos transportadores de madeira, por este e por aquele, por entre dentes que, nesse dia, o Zé Parrito, vá-se lá saber porquê, não fizera o transporte da madeira como era seu assíduo costume!
E foi assim, por um acaso da fortuna, que o Zé Parrito escapou a uma morte quase certa!
Outros tempos!

Fonte: História ficcionada que teve por base algumas passagens narradas pelo ti’ Albino Moreira.
Nota: Ressalva-se o eventual emprego, no texto, de alguma palavra regional ou local com grafia não oficial.


José Barroso   

4 comentários:

Anônimo disse...

Esta história remete-nos para muitas coisas que não cabem num comentário. Ainda assim: Sabem-se lá as razões do Guimarães e tantos outros vagabundos que andavam por aí, provavelmente vítimas da miséria de um país quase sempre tão pobre e tão desigual. E como se isso não bastasse, eram também vítimas daqueles que, sendo tão pobres como eles, se achavam com direito a fazer justiça e os humilhavam. Talvez por isso, enquanto estava a lê-la, veio-me à ideia uma canção do Jorge Palma que diz que «Imperdoável é pisar quem já está no chão…». Grande verdade!
E porque tem a ver com pobreza, generosidade e morte (tema da publicação anterior), um lamento pela morte de Bruto da Costa. Uma vida dedicada à luta contra a pobreza e a marginalização dos mais desprotegidos. Acho que agora o Papa Francisco fica um pouco mais sozinho, e a humanidade muito mais pobre.

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

O sargento Silva era um homem austero aos olhos das pessoas parecia que tinha cara de mau; "quem vê caras, não vê corações".
Meu pai também trabalhou algum tempo nas minas da Panasqueira, "lavaria" quando terminavam os turnos alguns trabalhadores eram revistados pelos guardas. Certa vez coube a sorte ao meu pai, a certa altura mandaram-lhe descalçar as botas, o guarda bateu-as no chão, não gostou "as botas eram novas" empurrou o guarda, levaram-no ao sargento Silva que comandava o posto do couto mineiro. Perguntou-lhe porque é que estava ali; explicou-lhe tim, tim; por tim, tim... deu um raspanete ao guarda "não tinha nada que bater com as botas daquela maneira", mandou o meu pai em paz
Ai do mineiro que fosse apanhado com volfrâmio o sargento Silva era implacável
Era assim; recto, e sério.
O senhor Aurélio Moreira também me contou esta história, o Zé Parrito nesse dia não foi, sorte a dele.
J.M.S

José Teodoro Prata disse...

Bom texto do Zé Barroso de mais um fora de lei.
Qual a relação deste Zé Parrito com a Céu Parrita, era pai?

Anônimo disse...

Mais uma bela história para memória futura no estilo do Aquilino Barroso, com queda para o tratamento da marginalidade.
É caso para dizer: a vida no fundo é isto.
FB