segunda-feira, 26 de junho de 2017

As mulheres da Paradanta

Vista geral da Paradanta. Foto de Carlos Matos.

As mulheres da Paradanta são o amparo da casa. Como são robustas e determinadas, as deusas primordiais admiram-nas e protegem-nas. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando, balançando as ancas cheias. E como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na Paradanta, para lhes fruírem a atividade, em vez da rigidez de antanho.
Na década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e brilhante. Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e pelo meio dos pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, abanando as ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática de igreja, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas paradantenses e, disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para abusar de alguma delas.
Na década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da Paradanta voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro. Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milhos, melancias e abóboras, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade. Extensões enormes eram calcorreadas em setembro, feijoeiro a feijoeiro, colhendo as vagens maduras para as cestas e descarregando-as no carro de vacas. Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida. A mais nova estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita. Se houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra ninguém. Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam no domingo à noite. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!
Na década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Paradanta amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas. Mesmo com poucos homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora da Orada. No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Paradanta, cantando modas menos religiosas que à ida.
Na década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a chegada do gás e da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se, nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de cinzas. As mulheres da Paradanta punham os cântaros à cabeça e percorriam distâncias até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o seu caminhar! Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.
Aos poucos, as mulheres da Paradanta, deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças. Felizmente, Hera, também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Paradanta voltaram a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso deleitado, no rosto divino.
Cariátides, na acrópole de Atenas.

Joaquim Bispo

9 comentários:

Anônimo disse...

O autor quis deixar aqui, em jeito de homenagem, um rol das dificílimas e penosas condições das nossas mulheres das últimas décadas. Louvo-o por isso. Seria assim um pouco por toda a freguesia. Ajoujavam-se ao trabalho pesado para sobreviver. Comungando essa vida com os homens! Particularmente complicadas, seriam essas condições no tempo da guerra e, mesmo, antes da revolução de abril de 74! Tempos danados! Não sabia era que ali para as serras da Paradanta também existia volfrâmio!
O autor parece conhecer bem a cultura greco-latina. Imagina uma série de deuses e faunos ali pelos pinhais da Paradanta a interferir e interagir na vida das pessoas! É, também por isso, um texto interessante e próprio. Em certas passagens é mesmo bastante humorístico. Refere várias vezes que os deuses se divertiam a ver passar as mulheres nas suas lides, meneando as ancas. E, se calhar, não eram só os deuses...

Anônimo disse...

Lindo texto, as mulheres da Paradanta e todas as mulheres sempre foram umas heroínas ao longo dos tempos; calcorrear quinze, vinte quilómetros,carregadas com um cesto ou um cabaz da merenda à cabeça não devia ser pêra doce; ir a casa sábado à tardinha, regressar para o terço domingo....
Muitas vezes via passar as terceiras na Estrada Nova meneando-se e galhofando
A monda, a sacha, a rega... esperava-as segunda-feira antes da aurora despontar. Sempre alegres e bem-dispostas, tratavam cuidadosamente dos milheirais.
No dia da Romaria assistiam à missa, participavam na procissão e pagavam suas promessas; depois, partiam alegremente para as suas casas com a certeza de regressarem no ano seguinte. A Senhora da Orada era e continua a ser o santuário agregador que atrai muitos romeiros
O despovoamento das nossas aldeias é uma realidade cruel, courelas pobres, as pessoas "fogem" para as vilas e cidades à procura de uma vida melhor.
Não sabia que nas encostas da Paradanta havia volfrâmio. Despreocupado, folgazão, andaria Pã tocando a sua flauta que era nem mais nem menos a sua amada Siringe. Sendo assim; andariam Faunos pelos montes
J.M.S

Anônimo disse...

... se não estou em erro, esqueci-me de assinar o comentário que fiz a esta publicação.
Então aí vai a fórmula habitual, que serve para esse comentário e para este aditamento:
"Abraços.
ZB".
Se assinei, esqueçam!

Anônimo disse...

Este comentário é já serôdio. Tudo o que aqui foi dito sobre as mulheres da Paradanta é mais que merecido e seria um deleite vê-las balancear as ancas num tempo tão moralista,numa sociedade tão fechada e sem pornografia na net. O texto enxertado com a mitologia ficou ainda mais bonito, mas esqueceram porventura uma das funções mais relevantes destas mulheres e das sua congéneres das aldeias do pinhal interior. É que a rega dos milheirais, dos batatais, dos granzoais e outros que tais era uma dos meios mais eficazes à prevenção dos fogos e ao seu alastramento.
Ora, o aumento das tragédias é diretamente proporcional ao desaparecimento do mundo rural, como nós, os mais velhos, sabemos por experiencia própria.
Acabaram as terceiras e a sua intervenção preventiva e que alternativas se apresentam?
Parece que vem aí um grande pacote legislativo. Isso é a manifestação mais evidente da biopolítica das catástrofes. Dá-nos uma sensação falsa de segurança enorme estar tudo previsto, tudo regulamentado e ficamos pasmados quando a tragédia aparece. E vem porque? Por falta de leis? Por falta das terceiras, por falta da limpeza de um perímetro de segurança nas aldeias que arderam e das que irão arder e de outras coisa que todos sabemos...
e com esta me vou.
FB

Anônimo disse...

Grande texto de homenagem às mulheres da Paradanta e, nelas, a todas as outras mulheres que foram o amparo da casa ombreando com os homens na educação dos filhos e sustento da família!
Interessante também a forma como ao longo da narrativa vai revendo e misturando um pouco da nossa história e da mitologia. Para além disto tudo, o erotismo adivinhado pela referência feita várias vezes ao balancear das ancas das mulheres, tornam esta história divinal.
E, já agora, que bom vermos aqui uma referência à Paradanta que, lá fundo da encosta da Gardunha, é uma terra muito bonita e de gentes muito generosas (fui lá aqui há tempos e, para além de uma boa conversa, vim de lá com um saco de laranjas e um pão acabado de sair do forno)!

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

O volfrâmio seria o da Panasqueira, onde trabalhava "toda" a região, para dar vazão à enorme procura dos beligerantes da II Guerra Mundial, sobretudo Inglaterra e Alemanha (o volfrâmio é matéria prima para o fabrico das armas).

joaquim bispo disse...

Obrigado pelas vossas palavras.
O texto é escrito por eu querer associar a figura das cariátides às terceiras, por tê-las conhecido sempre com pesos à cabeça. Há 50 e tal anos conheci terceiras de todas essas aldeias — Ninho do Açor, Sobral, Partida, Paradanta —, porque o meu pai tinha de renda uma exploração agrícola — uma “queijeira”, como se chamava — a sul do Louriçal.
Eu tentei dar uma imagem geral da vida das mulheres nessa zona da Beira Baixa, sempre associada a pesos à cabeça, e escolhi a Paradanta sem a conhecer. Entrei lá há um ano, já o texto estava escrito e concorria a concursos.
Terei pesquisado os aspetos que mais desconhecia — não conheço a Sra. da Orada — e terei pesquisado “volfrâmio na Gardunha”. Talvez a pesquisa não tivesse sido conclusiva, mas eu lembro-me de variadas zonas esburacadas, mesmo perto de Alcains, que me disseram ser por causa do volfrâmio, e sempre me falaram da febre do volfrâmio por toda a parte, que não só na Panasqueira. Terei arriscado alguma liberdade ficcional, nesse aspeto...
Joaquim Bispo

José Teodoro Prata disse...

Joaquim:
também no caso do volfrâmio não fugiu a realidade.
A minha dúvida é a seguinte: nos inúmeros locais onde se tentou explorar volfrâmio havia-o de facto, mesmo que pouco, ou foram só tentativas?

joaquim bispo disse...

Um primo de Alcains deu-me esta informação:
«Havia filões muito interessantes e outros locais menos. Na zona da "cabeça pelada", a meio caminho entre Alcains e Lardosa, havia boa produção. Tanto que havia um posto de recolha num local próximo da estrada que hoje é do António Batista e outro mais próximo da Lardosa. Há poucos anos, ainda lá estavam as casas amarelas.»