segunda-feira, 27 de maio de 2024

Conta-me histórias, 3

O “Vermelho” 

A Rua Nicolau Veloso terá sido, desde sempre, uma das mais importantes vias de entrada e saída de São Vicente. No tempo em que os meus pais lá moraram continuava a ser ainda das ruas mais movimentadas da Vila. Desde madrugada ao sol-posto, rua abaixo, rua acima, não se esvaziava de gente: homens e mulheres a caminho das hortas, da ribeira ou dos pinhais; crianças para a escola, logo ali na Praça; quem chegava ou partia na camioneta da carreira, sempre motivo de curiosidade. Nas noites de verão enchia-se de vizinhos que fugiam da calma dentro de casa e vinham respirar o ar fresco soprado da serra. Para nós, os mais novos, era o mundo inteiro naquela rua.

Mas havia dias (diziam os mais velhos que era nas voltas de lua) em que esse mundo era perturbado por um homem que morava numa casa, mesmo ao fundo da rua. Chamávamos-lhe o “Vermelho”. Assim que o víamos debruçado à janela, a “pregar”, de braços levantados, tal e qual um padre nos sermões dos dias de festa, já não saíamos de casa; se andávamos na rua, corríamos a esconde-nos na primeira porta que encontrássemos aberta. De vez em quando espreitávamos, porque enfrentar o medo nos dava também algum prazer e transformava em quase heróis.

Mais ou menos por essa altura os meus avós moravam numa casa do Casal da fraga. Foram tempos bons, os que lá passei, principalmente durante as férias grandes, quando vinham também os meus primos da Covilhã. Trabalhávamos muito, em tudo o que havia para fazer em casa ou na horta, mas tínhamos tempo de sobra para brincar. “Brinquedos” também não faltavam porque tudo nos servia. Alguns dias, já mais pela fresca, a minha prima Nela e eu íamos à Senhora da Orada com a nossa avó, que trazia sempre alguma novena em atraso e aproveitava os dias grandes e alguma companhia para as cumprir.

Num desses dias, íamos já quase ao cimo da barreira, reparámos que andava um homem a roçar mato do lado de baixo da estrada. Reconheci logo o “Vermelho” e assustei-me, mas a minha avó tranquilizou-me: «não tenhas medo, filha, que ele não faz mal a ninguém», e continuámos o caminho. Daí a pouco sentimos que vinham a seguir-nos. Olhámos e era ele, de passo acelerado, a clamar, com o podão no ar, ameaçador. A minha avó, que deve ter sentido medo por nós, mandou-nos correr, mas nós, uma de cada lado, demos-lhe a mão e ajudámo-la a subir. Ela só dizia: «Nossa Senhora da Orada nos ajude! Nossa Senhora da Orada nos ajude!...» entremeando com Ave-Marias.

Passado algum tempo sentimos que já não havia ninguém atrás de nós. Olhámos, ainda com medo, e vimos o “Vermelho” a andar calmamente, estrada abaixo, o podão às costas, como se não fosse nada com ele. Nós continuámos o caminho até à capela, mas, pelo sim pelo não, à vinda metemos pelo caminho velho. Cruzámo-nos com ele, escondido debaixo de um molho de mato, já a caminho da Vila.

A minha avó contava esta história como mais um dos muitos milagres que a Senhora da Orada lhe fez. De vez em quando ainda me lembro dela como um dos maiores sustos que apanhei na vida.

 Nota: o “Vermelho”, que na verdade se chamava João, era o terror das crianças do meu tempo. Pelos vistos sem razão, porque o único perigo que constituía era ele achar que era médico e autor das cirurgias mais esquisitas que se possam imaginar. Dizem que ficou assim depois de, um dia em que teve que abrir uma sepultura para enterrar outro defunto (era coveiro), se ter deparado com um cadáver quase intacto. É possível que esse incidente também fosse fantasia, ou, a ser verdade, tenha potenciado o despoletar de um quadro de doença mental que, visto à distância de tantos anos, poderia ser algum tipo de esquizofrenia.   

M. L. Ferreira

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Conta-me histórias, 3

 Um vaso, com o nome do artista e uma data

O objecto que aqui me traz é um vaso.

O meu pai, João Teodoro, em certa altura, começou a fazer vasos em cimento, revestindo os lados com tiras de azulejos. Ficavam bonitos, com flores, partilhando o espaço com canteiros de flores na parte fronteira da casa de família. Alguns conservam-se ainda, mormente um, em minha casa, em Almada, de outro feitio, um paralelepípedo há mais de 30 anos habitado pela mesma sardinheira.

Este mesmo objecto me liga à Senhora da Orada, de que o meu pai era devoto, acreditando nas virtudes benfazejas da água daquela fonte. O vaso e a Senhora da Orada dão corpo a esta memória, que também mete o Seminário do Tortosendo, minha escola durante quase 5 anos, dos meus 11 a 16 anos de idade, onde se apurou a qualidade da vocação, sob o número 217.

Esta memória tem data, registada no fundo de um vaso feito pelo meu pai.

Na qualidade de seminarista, e bom cantor, uma competência que se esfumou com o tempo, eu participara, com outros potenciais futuros padres, na missa da festa da Senhora da Orada, no Maio do ano anterior - um acontecimento com nota pessoal negativa, uma vez que o coral do Seminário do Tortosendo, finda a missa da Senhora da Orada dali arrancou, sem participar no "festival merendário" que por aqueles leirões se celebrava depois da missa e da procissão - outro compromisso canoro havia a cumprir pelos infantes cantores, se não me engano em Peraboa,  Covilhã, creio na "missa nova" de um recém-ordenado-padre da terra, que (por sinal) terá deixado de o ser poucos anos depois.  

Um ano passado, nem tanto, eu já não integrava aquele "exército seminarial". Não por vontade própria, para que se saiba.

Aconteceu que, pelo Carnaval (Fevereiro ou Março), eu tinha sido expulso do Seminário.

Razões? Ao Prefeito (uma espécie de ministro do Interior, ou da Administração Interna do Seminário do Tortosendo), de seu nome José G., terão ouvido dizer que, ao praticar-se tal acto (a expulsão, entenda-se) se tinham visto livres de um "cabecilha". Nunca consegui entender o porquê do cognome, nem como adquirira eu a tal dignidade, mas, enfim, que remédio!, arquivei.

Pretexto: uma carta por mim escrita, dirigida a uma hoje senhora que todos conhecemos (com quem, por sinal, pouco ou nada tinha falado, porque Deus me fez sobremaneira encolhido, esclareça-se, aflitivamente tímido e envergonhado!) acho que, a tal carta, contendo umas parvoíces carnavalescas, achada pelo padre-Prefeito entre outros papéis, na minha mesa da sala de estudo, na casa, numa operação de vistoria do reverendo, como agora se diz à procura de indícios - de quê, não sei, nem se visou apenas um ou mais residentes.

Num dos dias seguintes, lá veio a ordem de expulsão, sem conversas e sem apelo possível, irrevogável portanto. Na mesma "encomenda", sem culpas próprias atribuídas, o mano Artur, também estudante no mesmo Seminário, do 2º ou 3º ano, igualmente expulso. Portadores, ambos, de declaração de frequência, com aproveitamento, do último ano de estudos na instituição.

E é aí que começa a história do tal vaso, que tem uma data escrita por baixo.

À surpresa do acontecido, pai e mãe procuraram ser práticos. Fundamental era assegurar que não fossem para o lixo os quase três anos de estudos do filho-cantor, o tal "cabecilha", que assim seria se não fizesse, três meses volvidos, os exames de conclusão do Secundário (o então 5º ano, o 9º de agora). Uns quinze dias passados, se tanto, o ex infante-cantor subia na carreira da Auto Transportes, no Casal da Fraga, rumo ao caminho-de-ferro, em Castelo Branco, tendo Lisboa como destino. Uma viagem que tinha associada uma promessa do pai a Nossa Senhora da Orada.

Esqueçam-se os pormenores do ínterim; no derradeiro do mês de Julho do mesmo ano, realizado na véspera, dia do funeral do dr. Oliveira Salazar, o último exame do Secundário no Liceu Camões, em Lisboa, voltei para S. Vicente; dali a poucos dias, pai e mãe sabiam que havia uma promessa a ser paga a Nossa Senhora da Orada.

Só então eu soube que, por cima do cano da água da fonte, ia ser colocado um vaso, feito em cimento pelo meu pai, decorado lateralmente com pedaços de azulejos, fabricado, por devoção, para aquele fim. Por baixo, o homem que não sabia ler e somente sabia "fazer" o nome, escreveu as iniciais do seu nome,  J. T., e por baixo, uma data, 1970. 

José Miguel Teodoro

 (Escrito em 19 de Maio de 2024, enquanto decorria, na Senhora da Orada, a 3ª sessão de "Conta-me histórias", onde eu iria contar esta história. Concluído às 17:35H).

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Conta-me histórias, 3

 A romaria da Senhora da Orada

Este local mítico e sagrado, principalmente para nós vicentinos, é um espaço de que todos nós temos uma história para contar.

Recuo 60 anos atrás e revejo-me, juntamente com os meus irmãos já nascidos, atrás da minha mãe e do meu pai, ela com o cabaz à cabeça e ele com o garrafão na mão. Vimos caminhando pelo Cimo de Vila, passando pelo Ribeiro Dom Bento, em direção à Senhora da Orada. Revejo a alegria de outras famílias que encontramos pelo caminho, com a filharada atrás, rumando todos no mesmo sentido.

Mas antes, na véspera, estou a rever a minha mãe na preparação da merenda: fritar o frango (ainda hoje sinto esse cheiro), os bolos de bacalhau e os ovos verdes; na parte da doçaria, fazer os esquecidos, os bolos de azeite e pão-leve; no dia a seguir, de manhã cedo, fazer o arroz-doce e meter tudo no cabaz. O meu pai pega no garrafão de vinho e cá vimos nós todos contentes em direção à ermida.

À chegada, vamos à procura de um lugar onde todos, os de casa, os meus avós, os meus tios do Casal e primos, confraternizamos alegremente.

Com o tempo, tudo mudou e ainda bem. Hoje vimos de carro e foram feitas instalações modernas, sendo o principal mentor o Zé Pasteleiro, que pelo seu empenho e interesse de renovação lhe deixo aqui o meu elogio. Tem-nos oferecido no sábado, véspera da romaria, uma noite agradável, com música acompanhada do frango assado (infelizmente este ano substituído pela jardineira) e outras iguarias.

João Maria dos Santos

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Oração

 Oração a Nossa Senhora da Orada

Do vosso andor, juncado de rosas e de outras variedades de flores, formosa como a aurora e brilhante como as estrelas do céu, Senhora da Orada orai por nós. Lançai o maternal olhar, guardai e protegei os devotos presentes e ausentes, e muito particularmente todas as mães da nossa querida pátria e do mundo, porque em vós confiam como mediadeira de todas as graças e de perdão de misericórdia junto de Deus.

Contada por Celeste Dias e recolhida por Maria João Jerónimo Matias, que a publicou no trabalho escolar manuscrito “São Vicente da Beira”

José Teodoro Prata

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Bichos de estimação

 À falta de uma horta de que me possa gabar, delicio-me com os bichos que habitam, camuflados, o meu quintal:

Aranha com uma cruz às costas. No último verão apareceu quase todos os dias, este ano ainda não dei por ela, mas ainda tenho esperança…


Um melro acabado de sair do ninho, ainda sem asas suficientes para voar;


Acho que é uma espécie de salamandra, que no Outono aparecem com manchas alaranjadas, mas nesta altura veste-se assim. Será para se protegerem?


Já conheço este sapo há vários anos. Às vezes fica desaparecido tanto tempo que penso que pode ter morrido;


Mas depois aparecem outros mais jovens, talvez seus filhos, que me deixam mais tranquila e esperançada. 

ML Ferreira

terça-feira, 14 de maio de 2024

Histórias na Orada

 

Domingo, na Orada, para partilharmos histórias da Senhora e do lugar.

José Teodoro Prata

domingo, 12 de maio de 2024

Cultivos de outono, 2

 
Já vos mostrei os meus alhos porros deste ano, plantados em outubro.

Prometi então mostrar-vos as minhas cebolas, também cultivadas no outono, e elas aqui estão. Cada vez valorizo mais as sementeiras e plantações de verão e outono, destinadas a produzir no inverno e primavera. O exemplo das couves, que nos deixaram os nossos antepassados, é a prova disso. Mas, tal como as couves, que devem ser plantadas nos finais de agosto, também os cultivos de outono precisam de apanhar sol e calor, para vingar. Por isso têm de ser plantados antes de novembro e dezembro, pois, sem o calor anterior, apodrecem ou não se desenvolvem. Por outro lado, pela minha experiência, aprendi que estes cultivos devem ser plantados em alto, no cômoro, caso os terrenos não sejam arenosos, devido à possibilidade de períodos longos de chuva, antes do calor de março. Já faço isso com os alhos, há anos, com excelentes resultados! Em outubro, vou fazer com as cebolas.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Conta-me histórias, 1

Esta história, da primeira tertúlia, na Casa do Povo, não chegou a ser contada, por falta de tempo. Como estava feita, aqui a deixo para que a conheçam.

A dobadoira

Esta dobadoira era da minha mãe e terá sido feita pelo irmão José ou pelo pai João Prata. Ambos eram carpinteiros, tal como o irmão António, que, por ser mais velho, já não vivia em casa dos pais quando a minha mãe Maria da Luz preparou o enxoval para se casar, em 1950. Dobadoira e tear, um deles foi de certeza feito pelo irmão José Prata, já não me recordo qual, talvez até os dois.

A casa dos meus avós maternos, João Prata e Doroteia dos Santos, era quase autossuficiente. Produzia todos os produtos agrícolas necessários à alimentação da família e ainda o linho para tecer, no tear da loja, o enxoval das seis filhas. Com três carpinteiros em casa, eram eles que fabricavam todos os móveis e utensílios de madeira necessários à vida doméstica. Pouca coisa tinha de ser adquirira fora, como o calçado que era feito por um grupo de sapateiros que uma vez por ano passava lá por casa, onde comiam e dormiam, até fazer calçado para toda a família. O dinheiro para lhes pagar e para outras despesas vinha da venda de azeite, sobretudo das oliveiras dos Canavéis, cujas oliveiras bicais davam um azeite especialmente fino e por isso bem pago.

Mas voltemos à dobadoira. Tinha-a em minha casa há demasiado tempo, pois levei-a para mandar restaurar a parte inferior, mas fui adiando e só neste inverno fiz o que combinara com a minha mãe. Agora volta à casa da família.

A dobadoira serve para transformar as meadas de lã em novelos. Às vezes a nossa mãe metia a meada nos braços de um dos filhos mais crescido, mas a certa altura os braços doíam e tinha de nos aturar as queixas. Por isso usava sobretudo a dobadoira, procurando a ponta do fio de lã e começando a enrolar em novelo, com a dobadoira a girar. Na parte inferior há quatro divisões, onde se colocavam os novelos já feitos ou a meio, se a dobagem tivesse de ser interrompida.

E ela ensinava a lengalenga aos filhos: Doba, doba, dobadoira, / não me enleies a meada. / O novelo é pequeno, / já tenho a mão cansada. / Doba, doba, dobadoira, / não me enleies o novelo. / Doba, doba, dobadoira, / as tranças do meu cabelo. Nós bebíamos-lhe estas palavras que agora recordamos.

A nossa mãe fazia todas as camisolas de lã para a sua casa de muita gente. Algumas eram verdadeiras obras de arte. Fez isso ainda durante toda a década de 70, quando as minhas irmãs mais velhas começaram a comprar camisolas de lã industriais, para elas e para os irmãos mais novos. Nos anos 80, fazia tapetes também tricotados a lã, ainda tenho um em minha casa.

O trabalho em linho e lã tinha grande tradição em São Vicente da Beira. Durante o século XVIII, sobretudo na segunda metade, a Vila foi um dos maiores centros industriais de lanifícios da Beira, a sul da Gardunha. Nos inquéritos industriais pombalinos, de 1758, são referidos como grandes centros industriais Alcains, Castelo Branco, os Montes(?) e São Vicente da Beira. Em 1779, a Real Fábrica dos Lanifícios da Covilhã colocara aqui, para ensinar os trabalhadores, um espanhol mestre da roda de fiar e dois portugueses mestres dos teares. Na fábrica-mãe trabalhava o espanhol João António Robles, de Béjar, Espanha, cujo filho veio casar a São Vicente, com uma Ribeiro, dando origem à família Ribeiro Robles. Em 1790, havia 177 cardadores e fiadeiras (estes totais seriam de todo o concelho). Um relatório militar de 1804, elaborado por August du Fay, coronel do Estado Maior do Exército Português, refere as localidades onde seria conveniente criar armazéns se abastecimento das tropas, em caso de invasão estrangeira. Aponta V. V. de Ródão, C. Branco, S. Vicente da Beira e Fundão. Aqui havia casas, capelas, um convento e uma fábrica onde se podiam fazer armazéns. Neste mesmo ano, trabalhavam 2349 pessoas para a manufatura da Covilhã, sendo 1930 destes trabalhadores das 8 escolas de fiação a ela associadas: Alpedrinha, Casteleiro, Castelejo, Penalva, Penamacor, São Gião, S. Miguel d´Acha e S. Vicente da Beira.

José Teodoro Prata

domingo, 5 de maio de 2024

Conta-me histórias, 3

 

Participação livre de todos os intervenientes na visita.
Penso que não há condições para organizar um almoço-convívio: pilates de manhã, missa às 12.30-13:30h e merendas no domingo seguinte, o da romaria.
Agradeço divulgação nas redes sociais frequentadas por cada um.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Conta-me histórias, 2

 Este objeto com história não foi apresentado na segunda tertúlia do Conta-me histórias, realizada a 28 de abril, sob o tema 25 de Abril. Como animador das sessões, tenho de ter sempre algo na manga e este objeto não saiu da minha pasta porque nesta tertúlia as duas horas foram bem recheadas de histórias de tantos participantes.

Aguardo o envio dos textos dos intervenientes nesta e na primeira tertúlia, para os dar a conhecer, aqui, a quem não esteve presente.


O (meu) Capital

Este é o 1.º volume do livro I de O Capital, de Karl Marx. O preço marcado a lápis parece indicar 25 escudos. Está rubricado e datado por mim: 23-Agosto-1974.

Comprei-o na Papelaria Central do Tortosendo, situada no largo central desta vila. Pela data, foi durante a minha habitual ida ao seminário, a meio das férias grandes. Eu tinha então 17 anos e frequentava o Seminário do Verbo Divino, no Tortosendo, uma vila operária com grandes tradições de luta contra o regime ditatorial que governara Portugal cerca de 48 anos.

Os padres do seminário, formados em universidades da Alemanha e dos Estados Unidos, eram adeptos da democracia, mas não faziam abertamente campanha, junto dos alunos, contra o regime que vigorara até ao 25 de Abril. Prova disso é que só há três anos soube a razão porque pessoas da povoação nos perguntavam pelo padre Jerónimo, pois o queriam no comício do 1.º de Maio, que antecedeu o desfile até à Ponte Pedrinha, onde milhares de pessoas se espalharam pelas margens do rio Zêzere, partilhando as suas merendas. Ele tinha direito a honras de palanque, a que se esquivou, porque em finais de 1973 escrevera no Jornal do Fundão um longo artigo advogando a democratização do país.

Sabíamos dos presos no 1.º de Maio de anos anteriores, trabalhadores que faltavam ao trabalho nesse dia e se juntavam debaixo de uma latada a petiscar e a beber uns copos, mas a meio da tarde eram levados pela GNR, pois logo de manhã os patrões tinham comunicado à PIDE quem faltava ao trabalho. Mas no ano seguinte, lá teimavam eles em comemorar o dia do trabalhador!

Eu frequentava o 6.º ano, atual décimo (na época, o ensino secundário tinha a duração de dois anos e não três, como atualmente). Por serem mais velhos, os alunos do secundário tinham direito a uma noite de televisão por semana, à sua escolha. Nesse ano letivo, mas ainda antes da revolução, o padre Vaz, nosso prefeito, deu-nos uma noite extra para ouvirmos as Conversas em Família do presidente do Conselho, Marcelo Caetano. Recusámos, mas ele disse-nos que para vencermos um inimigo tínhamos primeiro de o conhecer bem. Foi em vão, preferimos ir para a cama, às 21:30h.

Um dia, num passeio ao entardecer, o mesmo padre Vaz, pessoa bastante conservadora, partilhou comigo e com o meu colega José Antunes a história do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que escrevera uma carta a Salazar, criticando a sua política e aconselhando-o a iniciar um processo de democratização. Salazar castigou-o com o exílio, por 10 anos (1959-69).

Eram boas as relações do Seminário com o Unidos do Tortosendo, um clube operário que se dizia ser dirigido por comunistas. Ficou até célebre, e com direito a retrato para a posteridade, a informação que o padre Garibaldi, um missionário brasileiro do nosso seminário, deu a um governante do Estado Novo, que, cerca de 1971, foi ao Tortosendo conhecer o projeto da nova sede para o Unidos. Tão bem falou da coletividade que o Governo abriu os cordões à bolsa e a obra fez-se.

Ainda representámos teatro na antiga sede: O Lugre de Bernardo Santareno e O Assassínio na Catedral, relativo à morte do bispo católico Thomas Becket, na Inglaterra medieval. Havia no clube um senhor já idoso que todos referenciavam e que sempre cumprimentava os seminaristas com especial simpatia. Era o senhor Ribeiro, soube anos mais tarde, pelo Jornal do Fundão, quando foi homenageado no Tortosendo. Depois do 25 de Abril, também se falava muito de um preso, não comunista, que fora libertado. Então pensei que fosse do MRPP, que na altura tinha alguma expressão na Vila, mas soube há poucas semanas que era da LUAR e se chamava Ramiro Raimundo.

Aqui chegados, pode o leitor ser levado a concluir que nós, os seminaristas, éramos muito politizados. Não, vivíamos numa bolha, que apesar de tudo nos abria horizontes para a existência de pessoas que pensavam de forma diferente e para a necessidade da democratização do país. Mas só isso. Desconhecíamos partidos e ideologias, como quase todos os portugueses.

Voltando ao objeto deste texto, o meu O Capital está forrado com um cartaz lindíssimo de cravos em fundo negro, com a foice, o martelo e a estrela sobrepostos, em amarelo. Roubei-o ao Partido Comunista, no outono de 74. Estava afixado no lagar dos Garret, à beira da estrada, a meio caminho do cruzamento do seminário com a povoação. A altura de 3 metros não foi para nós, jovens adolescentes, um obstáculo. Um colega meu, menos pesado, trepou por mim acima e, com os pés nos meus ombros e uma mão encostada à parede, com a outra arrancou o cartaz, que já estava pouco seguro e nem se rasgou.

No verão de 75, a minha prima Carmita, já estudante universitária, então nas habituais férias em São Vicente, questionou-me sobre as minhas leituras (ou eu falei no assunto, para me gabar, não me lembro bem). Disse-lhe e a quem nos rodeava que tinha lido O Capital. Ela ficou estupefacta e informou-me que O Capital de Karl Marx era uma obra vasta, com vários livros e volumes. Não, eu só lera um volume, esclareci!

A leitura não me foi fácil, pois a economia era então uma área quase não abordada nos livros de História do secundário. Mas ficou-me para sempre a questão das mais valias: o patrão cria a empresa, equipa-a, paga as matérias-primas, a luz, a água…, recebe o seu ordenado e paga os salários aos trabalhadores. Pagas todas as despesas, incluindo o vencimento do empresário, ficam os lucros, dos quais este se apodera na totalidade, embora tenham sido obtidos com o trabalho de todos. Era natural que os lucros, as mais valias, fossem distribuídos equitativamente, ficando o empresário com uma larga percentagem, para o premiar do investimento realizado e do cargo desempenhado, mas certa percentagem deveria ser distribuída pelos trabalhadores, igualmente fundamentais na criação dessa riqueza.

Por isso ninguém enriquece a trabalhar e a distância entre os rendimentos dos assalariados e os dos empresários é cada vez maior. Situação agravada quando os aumentos salariais não acompanham o aumento da produtividade, como aconteceu nos últimos 20 anos, na Europa, segundo um estudo recentemente divulgado.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 1 de maio de 2024

V.P.C

Ando a recolher a obra dos poetas da nossa terra, no âmbito de um projeto de que falaremos lá mais para diante. O Pedro Inácio Gama facultou-me alguns poemas assinados com as iniciais V.P.C., referentes a acontecimentos da década de 1950, na Vila. Alguém faz ideia de quem foi este V.P.C.?

Na época, uma das pessoas que publicava poesia, além do José Lourenço, era o professor Couto (Artur Eugénio Couto). A serem dele, as iniciais seriam A.E.C.. Ou será que ele queria ficar incógnito? Mas alguma poesia dele vem assinada...

José Teodoro Prata