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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A Malha



O mangual, com pormenor da ligação entre as duas peças.


As espigas do trigo vergavam com o peso. A ceifa teve de se fazer com cuidado, para não se perderem os grãos. Nada melhor que ceifar bem cedo, começar ainda antes do nascer do sol e já ter acabado quando aquecesse. O trigo já no chão, em paveias, aguardava pelo dia seguinte.
Depois fomos fazer os nagalhos, com o atado de palha alta de centeio mergulhado na água do açude, onde o meu pai plantara a nogueira que trouxe de Aldeia de Carvalho. Uma mão cheiinha de palha de centeio, mais outra porção e atámo-las uma à outra. Mais uma terceira mão cheiinha de palha, atada com um nó à segunda e tínhamos nagalho. Fizemos os necessários para os molhos que calculávamos para o trigo ceifado e deixámo-los amontoados na borda da água, tapados com umas sacas, para não secarem,nem os roubarem.
A manhã estava ganha e ala para casa, a ver do almoço. No dia seguinte, o sol já nos apanhou a juntar as paveias em molhos e a atá-los com os nagalhos. Depois, com o burro, acarretámos os molhos para a eira, sempre com muito cuidado, pois os grãos estavam desertos para cair.
Era na eira do Sr. José Gomes, por baixo do pinhal que encosta ao Ribeiro de Dom Bento, mesmo na orla com a fazenda. A minha mãe já limpara o chão da caruma e das pinhas e dava-lhe agora uma varredela com uma vassoura que eu fizera de giesta branca.
Espalhámos o trigo, com as espigas de uma camada em cima dos caules da camada anterior. Trabalho acabado e fomos comer para a sombra dos eucaliptos. Depois estendemo-nos no chão e dormimos uma sesta. Entretanto, na eira, o trigo crestava à torreira do sol. Quanto mais quente estivesse, melhor soltaria os grãos.
O meu pai acordou suado, com um raio de luz que se infiltrara pela ramagem. Mediu a altura do sol e o relógio confirmou o que ele já sabia, eram horas de começar a malha.
Eu fui com ele. A malha era um trabalho violento, para homens, mas eu já era forte. Tínhamos dois manguales e pedi ao meu pai para malhar também. Ele autorizou, com aquela calma que sempre punha nas coisas. Deu-me dois conselhos: cuidado com as cabeças, a minha e a dele, e levantar a vara, ao alto virar a mais curta no ar e depois deixá-la cair sem fazer força.
Fomos malhando, lado a lado. O sol abrasava e o suor escorria-me pela cara e no tronco, do calor e da atrapalhação de quem aprende. Parecia fácil não fazer força quando o mangual descia, mas os braços não obedeciam à cabeça. Parti logo o pau mais curto e largo do mangual
O meu pai passou-me o dele e foi arranjar um pau novo. Eu continuei a malhar. Quando já tinha batido todo o trigo, virei a palha, por causa das espigas que estavam por baixo. Fui-lhe apanhando o jeito, mas ainda me enganei as vezes suficientes para ter o outro mangual partido quando o meu pai chegou com o novo. A malha estava quase feita. Peguei nele e acabei. Na outra ponta, o meu pai ia levantando e juntando a palha com a forquilha, enquanto a minha mãe varria o chão de grão e pragana com a vassoura de giesta, formando um monte.
O sol já começava a abrandar. Fomos comer uma bucha à sombra fresca das mimoseiras do ribeiro, junto à bica do tanque. E descansámos, à espera do vento da tarde.
E com ele limpámos o trigo, lançando-o ao alto, com uma pá, e desviando a pragana, no chão, com um ramo de giesta. Já limpo, a minha mãe passou-o pela joeira, para tirar as impurezas mais finas, e meteu-o na saca, pronto a entregar ao moleiro.
Entretanto, eu e o meu pai atámos a palha em faixas, com os mesmos nagalhos, novamente molhados para serem flexíveis e resistentes. E o burro ajudou-nos a levá-las para o palheiro. O trigo regressou connosco a casa e ficou na arca, à espera que o moleiro da Torre passasse pela Tapada.




Estas duas fotos "pedi-as emprestadas" à página do GEGA «SÃO VICENTE DA BEIRA: a Terra, as Gentes, as Tradições». Depois de entrar, clique em "Tradições" e verá um conjunto de fotos que documentam todo o processo de fabrico dos nagalhos. O artista é o Sr. Emílio Francisco do Caldeira. As fotos são certamente do Tó Sabino.


A joeira, para limpar o cereal das últimas impurezas.



A dedeira de cabedal que os ceifeiros usavam na mão esquerda, para a proteger dos cortes da foice. O ceifeiro metia na dedeira dois ou três dedos. Segundo o meu tio Joaquim Pedro Nicolau, os ceifeiros que não tinham uma dedeira destas enfiavam os dois dedos de baixo numa cana, para os proteger.



A eira do Sr. José Gomes, no seu estado actual.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Rota da Gardunha


Foi na Primavera de 2007, menos de um ano após o grande incêndio que despiu a serra.
Participei na inauguração da Rota da Gardunha, a mais bonita rota do Geoparque, na opinião de um dos seus criadores, o geólogo Carlos Carvalho.
Ao chegar a casa, pus no papel o que me ia na alma. Aqui vai:



Louriçal do Campo, 9 horas, recinto de festas. Apresentação do Geoparque e da Rota da Gardunha e partida. Contornamos a Igreja, é de São Bento, bi ne di te, como informa a pedra com a cruz de Avis. O templo foi construído por Petrus, em 1559, segundo o Edgar Fernandes, com o latim mais fresco que o meu. Viramos a nordeste, pela Rua do Casalinho e seguimos, entre casas e hortas, com ramos floridos debruçados nos muros, a ver-nos passar.
Enfim, a serra, sempre a subir, a subir. Por entre pinheiros, tojos, carquejas, estevas e giestas. O corpo já aquece, mas a brisa arrefece à medida que trepamos.
Cruzamento para o Casal da Serra, primeiro reforço, de águas, maçãs e laranjas. E uma oportunidade a quem não quer trepar mais e segue pelo percurso alternativo.
Continuamos. Mais acima, o bosque dos cedros, onde apetece descansar e merendar. O caminho dá agora uma grande volta e na curva espera-nos a recompensa, um bonsai de carqueja, com tronco ressequico e retorcido, no alto da rocha. Seguimos até ao miradouro da Baldaia, com o anfiteatro de Castelo Novo ao fundo e em volta rochas e mais rochas, paisagem lunar que o último incêndio realçou. Mas é terrena, pois tojos teimosos exibem as suas flores e o chão já se cobre de florinhas cor-de-rosa.
A nossa direcção é o Castelo Velho e por isso viramos à esquerda. Já se avista a rocha em crista de galo, daqueles que antes se criavam para haver ovos galados para o choco. Mas ainda não vamos para lá. Continuamos em direcção ao cume da Gardunha e pasmamos com uma paisagem cravada de penedos. A alguns, o tempo cortou talhadas, a outros, esquartejou a superfície, em quadrícula arredondada. São as meninas dos olhos do geólogo Carlos Carvalho.
Cortamos a mato, para o Castelo Velho. A crista de galo, já mais perto, dá boas fotos aos caminheiros, que também levam consigo a rocha com cara em cabeça de râguebi.
Deixamos o percurso e viramos à esquerda, para o castro lusitano, em homenagem aos nossos antepassados de há três mil anos. É difícil encontrar um acesso até ao picoto. Atravessamos panos de muralha derramados pela encosta, que ninguém já reconstrói. No alto, o deslumbramento, o prémio para quem ousou. Apetece ficar, sentado na laje, a beber toda a paisagem que se estende a nossos pés. À esquerda, o cume de Monsanto espreita pela toalha de nevoeiro, em frente, dois altinhos, Cardosa e S. Martinho, ajudam-nos a localizar Castelo Branco. Em baixo, azul, no verde acastanhado, a água da Marateca.
Mas não podemos ficar. Voltamos ao caminho e descemos a serra quase a correr. Por baixo dos nossos pés, o sussurro de água. Nos anos 40 e 50, tiveram que esventrar a serra, para saciar Castelo Branco, que crescia. Até ao Casal da Serra, é como se deslizássemos dentro de uma concha, até abaixo, onde camponeses desbravaram a terra e fizeram um casal. Há uma vaca, que nos fixa com olhar calmo, mas afinal é um boi. À frente, um cavalo, na sua elegância vaidosa. Depois um sardão, daqueles grandes e verdes, que mal se vê, porque desapareceu no buraco, escaldado de maus tratos.
Enfim, a casa dos telhados em bico, que Salles Viana projectou, a pensar nos Alpes Suíços. Segundo reabastecimento. As sandes de carne assada acabaram-se, mas há um queijo fresco, grande como a roda de um carro. Atrasados, não temos tempo para ele e por isso ensarroamo-nos de fruta, prontos a saltar do colo em que a Gardunha envolve o Casal, desfiladeiro abaixo, com a Ocreza, até ao campo.
A natureza excedeu-se, aqui. Eu andava quase morto na cidade e o paraíso aqui tão perto! A Ocreza atira-se à maluca, serra abaixo, despenha-se, espraia-se em lagoas, torna aos precipícios e nós, embalados com a sua música, mas mais prudentes, vamos descendo, às vezes em três, outras em quatro, com correntes de ferro a ajudar nos sítios mais difíceis.
Entramos num moinho pelo telhado e saímos pela porta. O moleiro já cá não vem, nem há taleigas pelos cantos. Atravessamos a Ocreza para a outra margem. Cabrinhas brancas, em verde de fetos, casas e mais moinhos abandonados. Um burro espoja-se na terra e o dono diz-me que este casal é o dos Pinhões.
Mais casas e moinhos, é a Torre. Durante séculos, este vale da Torre, junto com o vale de Castelo Novo, com mais de cinquenta moinhos, mataram a fome de pão à comarca de Castelo Branco, segundo documentos antigos.
Voltamos a atravessar a Ocreza, agora em pontão de madeira, e ficamos por ali, entre o verde e a água irrequieta e pura, sem vontade de continuar. Mas são quase catorze horas. Seguimos por veredas, entre hortas. Agora chega, o corpo já pede trato e descanso. Depois da capela de S. Sebastião, rua fora e final. O almoço reconforta-nos.
E regressamos, mas ainda vamos espreitar o casarão que foi o colégio jesuíta de S. Fiel. Os portões estão fechados e, da sabedoria que aqui bebeu o nosso nobel Egas Moniz, nem sinais.
Pela estrada, que foi o caminho dos moleiros em direcção à estação de comboios da Lardosa, sinto-me como o Malhadinhas do Aquilino Ribeiro, que já com dois carros de anos em cima ainda gostava de saborear a vida.