sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Pistotira

O vulto negro descia pelo caminho do Cabeço do Pisco. Mal se enxergava*, naquele entardecer enevoado. Chovera sem parar desde que deixara o palheiro onde pernoitou. Acima da barragem, longe das vistas, era o melhor que se podia arranjar, nem sonhar com uma casa quente no Casal da Serra.
Ao fim da tarde, felizmente, estiou*, mas vinha todo encharcado e a noite voltava a cair. Nos eucaliptos, cheirou-lhe a fumo e ficou esperançoso. Andou mais um pouco, sempre a tentar descortinar alguma coisa naquele breu. Desceu para o cruzamento e parou. O cheiro vinha da esquerda, mas não conseguia ver. Subiu pelo outro caminho e um pouco à frente avistou a casa. Tinha de tentar a sorte. Vinha todo molhado e, com a Vila já perto, podia não ter outra oportunidade.
A casa tinha um postigo que dava para o caminho. Era a cozinha, pelo fumo nas frestas das telhas. Chegou à porta e bateu. Veio um garoto.
“Santas noites, meu menino. O teu pai está?”
“O meu pai não está, mas vem já. Ó mãe!”
Apareceu uma mulher, com o candeeiro na mão.
“Boas noites, minha senhora, pela alma dos que lá tem, deixe-me entrar para me enxugar ao lume, estou todo encharcado.”
Silêncio, depois a mulher respondeu, com um aperto na voz:
“O meu homem foi à Vila, mas não demora. Pode vir.”
O estranho entrou e seguiu-a para a cozinha. Pendurou o casaco numa ponta do caniço* e sentou-se no banco. As samarras* molhadas deitavam mais fumo que calor, um lume miserável. Mas desenrascava, que remédio.
A dona da casa veio à rua espreitar a vereda para a Vila, na esperança do homem dela não demorar como nas outras noites. Estava ralada*, com medo, assim, sozinha com os pequenos. O estranho ainda não tirara a mão direita do bolso. E se fosse o Pistotira? Tinham-lhe contado que ele nunca mostrava essa mão, porque a tinha aleijado e o denunciava.
Avistou a cunhada Cecília, de regresso a casa, findo o dia de trabalho, no irmão João. Graças a Deus! Desceu ao seu encontro e segredou-lhe:
“Ó Cecília, tenho um homem em casa, ao lume, e estou cheia de medo que seja o Pistotira, porque tem a mão direita sempre escondida. Por amor de Deus, vai lá chamar o teu irmão.”
“Onde é que ele está?”
“Vai todas as noites para a taberna do Arrebotes, a jogar às cartas.”
A Cecília voltou para trás e chegou num instante à Praça. Entrou na taberna e o irmão lá estava, sentado à mesa, com as cartas na mão.
“Ó Zé Maria, tens o Pistotira em casa. A Jú pediu-me para te vir chamar, porque o homem já está há um bom bocado ao lume e ainda não mostrou a mão direita. Anda depressa.”
“A minha mulher o que quer é mama, o que me quer é em casa, com medo que eu me embebede!”
Não havia nada a fazer, tão cedo não largaria as cartas e os copos. Voltou para a Tapada e encontrou a cunhada cá fora, junto à presa*, a falar baixinho com a Palmira.
“Ele não acreditou. Disse que tu queres é apanhá-lo em casa.”
“Eu vou lá buscá-lo e tu vais para casa, porque a mãe e o pai já estão ralados com a tua demora.”
A Palmira desceu quase a correr para a Vila e chamou à porta da taberna.
“Ó Zé Maria, chega aqui.”
“Isto hoje está animado. Não posso jogar em paz?”
“Olha que é verdade que o Pistotira está na tua casa. Vem depressa!”
“A tua cunhada é uma medricas. O Pistotira é um grande amigo meu, andámos a trabalhar juntos na barragem do Casal da Serra. Foi lá que deu cabo da mão. Ele nunca ia fazer mal à minha família. A Maria de Jesus ouve as histórias que se contam e fica cheia de medo.”
E voltou ao jogo. A Palmira desistiu e subiu a rua, desanimada, sem saber como acudir à cunhada. Por sorte deu com o irmão Zé, a sair da casa da moça.
“Ai Zé, foi Deus que te pôs agora aqui. A nossa cunhada Jú tem um estranho em casa e está cheia de medo, porque desconfia que é o Pistoria. Eu fui chamar o Zé Maria e a Cecília também já lá foi, mas ele não quer vir.”
“Onde é que ele está?”
“No Arrebotes.”
“Vai para casa que eu vou buscá-lo. Há-de vir a bem ou a mal!
O Zé Maria era forte, mas o irmão Zé era ainda mais alto e entroncado. Chegou à taberna e atirou:
“Não és homem, nem és uma trampa.”
“A minha o que tem é medo!”
Um dos parceiros da jogatana, o Zé Pedro, de alcunha o Zé Gato, virou-se para o Zé Maria e disse-lhe:
“Sabes que tens o homem em casa e não vais? Agora vou eu contigo!”
Levantaram-se e saíram, subiram a rua e depois a quelha quase a correr, com os pés a tactear o chão. Ao mesmo tempo, na Barroca, a mãe Ana acabava de ouvir o que se passava da boca da Cecília. Ficou com o coração apertado, por mor da nora e dos netinhos. Pôs o xaile na cabeça e saiu a correr, com um filho atrás, sempre pela vereda estreita da regadia. Os pés descalços do Luís davam topadelas* nas pedras e ele não conseguia acompanhar a mãe. Ela pegou-lhe ao colo, na ânsia de chegar e com medo que ele caísse da vereda do rego para um leirão. Chegaram a casa ao mesmo tempo, da taberna e da Barroca. O Zé Gato deu uma sapatada na porta e entraram de rompante.
“Ó malandro, então estás aqui, hoje?”
“Você conhece-me de algum lado?”
“Eu sei bem quem tu és!”
O estranho ergueu-se do banco e estendeu a mão esquerda ao Zé Gato, mas ele recusou-a. O Zé Maria perguntou-lhe:
“O que estás a fazer na minha casa?”
“A aquecer-me, mas o lume de samarras não aquece.”
O Zé Gato empunhou uma cavaca* que tirou do caniço e sentenciou:
“Daqui já não sais sem ser algemado.”
Era preciso ir chamar o cabo de ordens*, para trazer as algemas, mas o dono da casa discordou:
“A melhor algema é o cinto.”
Ataram-lhe as mãos atrás, nas costas, com outro cinto a apertar o tronco e os braços. Trouxeram-no para a rua e desceram a quelha com ele de costas, a arrastar. O Zé Maria ia à frente, com os pés do Pistotira na cintura, atrás vinha o Zé Gato, a pontapear o bandido sempre que ele tentava levantar a cabeça. Depois da quelha, desceram a rua até à Praça.
As pessoas vinham às portas ver que alarido era aquele e seguiam o cortejo, desejosas de verem mais. Na Praça, já havia um ajuntamento, pela notícia da saída dos homens da taberna, para irem buscar o Pistotira. O cabo de ordens chegou, levaram o bandido pelo balcão da Câmara acima e deixaram-no no chão do corredor. Revistaram-no: uma pistola descarregada e várias sovelas*, o suficiente para tirar o pio a uma criatura de Deus. As algemas substituíram os cintos, por serem mais conformes com a lei.
Os homens mandaram vir um garrafão de vinho e foram para a sala do lume a festejar. Era obra apanhar um criminoso daqueles, ladrão e matador como poucos. Vinham mulheres a dar fé do bandido e a elas pediu ele uma manta para se resguardar do frio da noite, pois estava muito dorido e enregelado. O cabo de ordens autorizou e deu-lhes um cobertor que por ali havia, agasalho dos que costumavam lá passar a noite, a olhar por algum preso, quando calhava.
Pouco a pouco, a Câmara sossegou. Os curiosos voltaram a suas casas e a porta foi fechada à chave. Os homens continuavam na sala da lareira, a conversar e a virar copos. De manhã, os cabos de ordens tinham de ir levar o preso para Castelo Branco. A pé até ao apeadeiro da Soalheira e depois no comboio.
O Pistotira achou-se sozinho e começou magicar na maneira de sair dali. Sorte o cabo de ordens ter substituído os cintos pelas algemas. Quase metade da palma da mão aleijada ficara-lhe naquela maldita rebentação das obras na barragem. Com um pequeno esforço, tirou a mão da algema e ficou livre. Agora, por onde sair? Pela porta, impossível. No fundo do corredor, os homens aqueciam-se ao lume, de porta aberta, mas já quase esquecidos dele. Rastejou para fora do cobertor, fez-lhe uns altos para simular um corpo e colocou-se a uma das portas da esquerda. Esperou, os homens continuavam entretidos. Abriu a porta e atravessou a sala até à janela, que se adivinhava por uma ténue claridade na parede. Abriu a janela e sorriu, não era preciso saltar para a rua de tão alto, pois havia uma latada. Alçou-se para fora, pendurou-se nas varas e saltou para o chão. O tombo foi curto e depois correu pela rua abaixo. Ao fundo, galgou um muro. Sempre a correr, entre oliveiras, a saltar paredes de leirões, só parou quando o coração lhe queria saltar pela boca e a distância percorrida já lhe dava tranquilidade. Deixou-se cair no chão, ofegante. Chegou-lhe o toque dos sinos a rebate e teve de voltar a correr. Seguiu um caminho, meteu-se na água da ribeira e continuou, encosta acima, até penetrar bem fundo num pinhal. Atirou-se para o chão e descansou. Mas o corpo começou a gelar e teve de erguer-se e caminhar.
Andou como um bicho, acossado pelos montes. Dormia em palheiros e passou fome de cão. Ao terceiro dia, encontrou um pastor. Mostrou interesse pelo gado e lamentou-se da sua vida: a infância no Souto da Casa, aquela burrada* de vender algumas cabras do pai e gastar o dinheiro todo, a expulsão do lar paterno, a vida sem eira nem beira, o acidente com dinamite na barragem, a dificuldade de trabalhar com a mão aleijada e muita, muita fome. E os de São Vicente nem o deixaram aquecer-se!
“Eu também já fui pastor e, se o senhor é um pastor verdadeiro, deve trazer consigo uma lima, com que possa cortar-me a algema.”
O outro tinha uma lima e restituiu-lhe a liberdade. Andou por esse mundo e foi ter a Lisboa. Arranjou trabalho no quintal de um casal, a troco de comida, uns trocos e dormida na arrecadação anexa. Era uma vida boa.
Passados uns tempos, os donos deixaram de ser vistos e os vizinhos estranharam.
“Foram visitar uns parentes longe e deixaram-me a tomar conta da casa.”
Mas tardavam. Alguém sentiu mau cheiro, vindo do quintal, e avisou a polícia. Encontraram os corpos enterrados debaixo do loureiro, junto ao tanque.
Esteve preso sete anos, a comer por um cano, com água pelas pernas, na maré cheia. Mas conseguiu partir os grilhões e fugiu a nado. Chegou ao paredão e subiu-o de arrastos, tolhido das pernas. O sol quente, uma coisa tão boa! Passou o barco patrulha e soou um tiro. O corpo rebolou e voltou à água.

Nota: Este conto baseia-se em fatos reais que me foram narrados, oralmente, por Luís Rodrigues, naquela época com 7 anos e que foi com a mãe Ana ver se era verdade que o Pistotira estava em casa do irmão Zé Maria.


Vocabulário:
Burrada - Asneira, erro.
Cabo de ordens - Homem com funções de policiamento, subordinado ao regedor.
Caniço - Estrutura formada por varas finas e juntas, colocada por cima do lume, para secar as castanhas lá espalhadas.
Cavaca - Pedaço de madeira resultante de um tronco rachado(cortado pelo interior) em partes.
Enxergar - Ver.
Estiar - Parar de chover.
Ralada - Preocupada.
Presa - Maneira local de dizer represa. Em geral, tratava-se de uma construção no leito de um ribeiro, destinada a prender e acumular a água. Também de fazia no local de uma nascente, à maneira dos atuais tanques, para acumular a água que ali emergia. No caso deste conto, a presa, em forma de tanque, mas de terra e pedra, detinava-se a acumular as águas que vinham das regadias da Barroca, para regar noutra hora e sobretudo para aproveitar os restos, as corredouras, que já não davam para regar. Também acumulava as águas das chuvas.
Samarras - Cascas secas dos eucaliptos.
Sovela - Instrumento com que os sapateiros e os correeiros abrem os furos no cabedal. É formado por um arame encabado e afiado, com cerca de 13 centímetros de comprimento (cabo e arame).
Topadelas - Choque dos dedos descalços dos pés, nas pedras do caminho, de que resultavam feridas, quase sempre.

domingo, 9 de janeiro de 2011

História da Filarmónica

A Sociedade Filarmónica Vicentina encerrou as festas do seu centenário, com um concerto e o lançamento de um livro e um DVD, na Igreja Matriz, a 26 de Dezembro, como noticiei aqui, nos Enxidros.
O Tó Sabino colocou, no Youtube, uma amostra do DVD, que vos deixo, para vosso deleite.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Albano Mendes de Matos


Albano Mendes de Matos é natural do Casal da Serra e vive em Oeiras.
Antropólogo de formação, este investigador fez uma vasta recolha das tradições da sua terra natal que são comuns a toda a nossa freguesia e a outras circunvizinhas.

Desde criança, no Casal, aprendeu a conhecer e a distinguir os cogumelos. Tornou-se um estudioso, um especialista.
De cogumelos conversámos, na última vez em que estivemos juntos, lembrando aqueles castanhos grandes e carnudos que ele ainda há pouco tempo apanhou debaixo de castanheiros, nas Lameiras.
No seu blogue plantifungi.blogspot.com, tem publicado a informação e a documentação que vai reunindo sobre os cogumelos da Gardunha.

Uma outra área do seu trabalho são as lendas da nossa serra que desde garoto ouviu da boca do seu avô José Mendes Junior (1864-1960). A Universidade do Algarve está a publicá-las, no site "lendarium.org/new". Também as podemos pesquisar através do nome Albano Mendes de Matos.

Igualmente realizou recolhas de literatura tradicional popular, no Casal da Serra e outras povoações da Gardunha. Tem vindo a publicá-las, no blogue "literatrad-blogspot.com".

O seu mais recente projeto na Internet é o blogue casaldaserra-varandagardunha.blogspot.com. Nele iniciou a publicação das tradições e histórias do Casal da Serra. Estava para lhe “roubar” e publicar, nos Enxidros, o texto e as fotos sobre a matação. São excelentes. Mas para quê, se os temos no seu blogue?
Recomendo uma visita aos seus blogues. Garanto-vos que vale a pena!

Nota: Aconselho a busca dos endereços sem hiperligação através do Google.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Prata 3

Os avós mais velhos

No seguimento da publicação Prata 2, com registos de batismo e casamento da parte vicentina da família Prata, apresentam-se hoje registos de batismo e casamento da família Prata da Póvoa de Rio de Moinhos e de Alcains.
Segue-se a ordem cronológica, do mais recente para o mais antigo.
Junto de cada registo, faz-se uma síntese, a partir do conteúdo do documento e de outros elementos conhecidos.
Estes são os registos que me foram enviados do Brasil, por Lourval dos Santos Silva, também ele descendente dos Prata que aqui damos a conhecer.


Antonio Prata nasceu a 17 de outubro de 1839, na Póvoa de Rio de Moinhos. Era filho de João Prata, natural da Póvoa e Joaquina do Espirito Santo (ou da Cruz). Os seus avós paternos eram Joze Prata e Victoria Maria e os maternos Antonio Martins, natural da Póvoa, e Luiza da Cruz, natural do Castelejo. Os padrinhos foram Antonio Martins, seu avô e Jozefa da Cruz, sua tia, filha do anterior.



João Prata casou, a 9 de janeiro de 1839, com Joaquina, filha de Antonio Martins Gomes, da Póvoa, e de Luiza da Cruz, do Castelejo. João Prata era filho de Joze Prata e Victoria Maria, todos naturais da Póvoa.



João Prata nasceu a 20 de abril de 1814, na Póvoa de Rio de Moinhos. Era filho de Joze Prata e Vitoria Maria, neto paterno de Thome Goncalves Prata e Domingas Maria e neto materno de Joze Lopes, natural da Lardosa, e Vitoria Pinta.



Joze Prata nasceu a 3 de janeiro de 1788, na Póvoa de Rio de Moinhos. Era filho de Thome Gonçalves Prata e do seu segundo casamento com Domingas Roque. Os avós paternos eram Manoel Gonçalves Prata e Maria Vas Mendonça e os maternos Manoel Roque, natural dos Lentiscais, e Catharina Gaspar, da Póvoa.



Thome Gonçalves Pratta, viúvo de Izabel da Conceiçam, casou, a 10 de março de 1787, com Domingas Roque, filha de Manoel Roque e Catharina Gaspar.



Manoel Gonçalves Pratta casou, a 4 de Fevereiro de 1745, com Maria Vás, filha de Pedro Vás e Maria Mendonça, da Póvoa. Manoel Gonçalves Pratta era filho de Manoel Gonçalves Pratta, natural de Alcains, e de Maria Gaspar, da Póvoa de Rio de Moinhos. Este Manoel Gonçalves Prata era um homem da governança da vila da Póvoa, pois desempenhava funções na administração daquele concelho. Também participou, como louvado (testemunha), no tombo (inventário) dos bens do Conde de São Vicente, em 1768-1782.



Manoel Gonsalves Prata casou a 16 de Janeiro de 1729, com Maria Gaspar, filha de Bras Gonsalves e Maria Martins, ambos naturais da Póvoa de Rio de Moinhos. Os pais do noivo eram Domingos Gonsalves Prata e Anna Rodrigues, ambos naturais de Alcains.



Domingos Gonsalves Prata casou, a 30 de Agosto de 1693, na Igreja de Alcains, com Anna Rodrigues, filha de Manoel Fernandes e Ana Roiz(Rodrigues). O noivo era filho de Manoel Gonsalves Semeão e Maria Martins Prata. É a última pessoa desta genealogia com o apelido Prata, pois os que se seguem são do ramo familiar de Manoel Fernandes.



Manoel Fernandes casou, a 3 de Setembro de 1670, com Anna Roiz, filha de George Roiz e Izabel Goncalves. O noivo era filho de Rodrigues Antunes e Helena Fernandes.
Rodrigo Antunes era filho de Tomás Roiz e Isabel Ferreira.
Tomás Roiz era filho de Rodrigo Tomás e de Beatriz Antunes.
Rodrigues Antunes era ferreiro, na vila de Castelo Branco, e foi preso pela Inquisição, em 1633, sob acusação de prática de judaísmo. O julgamento ocorreu em 1634 e a sentença foi a seguinte:
«Sentença - Abjure publicamente seus heréticos erros em forma e em pena e penitência deles lhe assinam cárcere e hábito a arbítrio dos Inquisidores e será instruído nas coisas da fé necessárias para a salvação da sua alma e cumprirá as mais penas e penitências espirituais que lhe forem impostas e mandam que excomunhão maior em que incorreu seja absoluto in forma ecclesia. (Fonte: Torre do Tombo)»


Nota: Clicar nas imagens, para ler os documentos.

sábado, 1 de janeiro de 2011

2.º Aniversário

E já vão dois, dois anos de vida Dos Enxidros.
Este foi o da consolidação do blogue, pelo menos a nível do seu autor, pois tornaram-se-me mais claros os aspectos em que valia a pena apostar e os que devia abandonar.
Os leitores aumentaram de número, sobretudo de fora da freguesia e até do país, embora dentro também tenha havido uma maior difusão. Em cada semana, mais de 100 pessoas consultam o blogue. O número de comentários publicados é enganador, pois muitos leitores comunicam comigo apenas através do meu endereço electrónico pessoal.
Fazer este “jornal semanal” on-line tornou-se-me quase uma necessidade viciante, embora nem sempre tivesse disponibilidade de tempo e espírito, para publicar trabalhos com o nível de qualidade que se impõe.
Para este novo ano, deixo a garantia da continuação deste contacto semanal convosco e o pedido de uma ainda maior colaboração da vossa parte.
Com os votos de bom Ano Novo, deixo-vos um trecho de uma história minúscula de Eça de Queirós, chamada “A Catástrofe”. Tem mais de cem anos, mas uma enorme actualidade, neste tempo de crise, agravada pelos especuladores mundiais e ampliada por uma comunicação social medíocre.
A mensagem, que só parcialmente pode ser captada neste trecho, aposta em cada português como forma de resolver os problemas do país. A mudança tem de iniciar-se em cada um de nós, para que o país melhore e as elites dos poderes sejam mais competentes e menos corruptas. E assim se concretizarão os votos de bom Ano Novo!

«Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquécticos! O Governo, a Constituição, a própria Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!
Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe cai feita das secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E como o governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda – é como nós acordámos com uma sentinela estrangeira à porta do Arsenal!»

Nota: Para ler a história, na íntegra, clicar no título do livro, em cima.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Venho pedir à menina…

Os rapazes trabalhavam quase todos à jorna. Depois de largarem, confluíam para a fonte e ali ficavam, em roda, enxadas e sachos de lado, a comer as merendas. Só faltavam as raparigas, a razão daquele ajuntamento. Elas chegavam, com o cântaro debaixo do braço. Vinham à água para a ceia, a mando das mães.
À passagem de uma moça, atiravam-se as boas tardes ou uns piropos, a espreitar um brilhozinho no olhar ou um sorriso reprimido. Ela não parava, direita à bica da água. O interessado seguia-a, chamava-a, na esperança de um estugar dos passos, de um virar de cabeça, de umas palavras mais. Se a rapariga dava esperanças ou porque o rapaz era dos afoitos, ele atirava à moça:
“Por que venho, venho
E porque digo, digo
Venho dizer à menina
Se quer casar comigo”
A resposta adivinhava-se pela reação da pretendida, não por palavras, que não ficavam bem, ali, a uma moça com juízo. Isso seria mais tarde, noutro tempo e noutro local, se ela aceitasse passar aos rituais seguintes.
Em terra de filarmónica, também se faziam serenatas. Músico ou não, o pretendente podia rodear-se de amigos que soubessem tocar os instrumentos da banda ou outros. À noite, em frente à casa da sua amada, cantavam e tocavam, tentando derreter aquele coração empedernido.
Com muita lábia e passadas se chegava ao namoro, se os dois estivessem para aí virados. Primeiro na rua, para se conhecerem melhor e dar tempo à vizinhança e à família. Se o amor resistisse a este primeiro teste de controlo social, o rapaz pedia licença aos pais da namorada, para começar a namorar em casa dela. Mas sempre vigiada pelos irmãos mais novos ou pela mãe. E o namoro não se arrastava até tarde, para que a rapariga não ficasse falada.
Se o rapaz fosse de fora, pagava um cântaro de vinho, tremoços e sardinhas assadas, aos rapazes solteiros de São Vicente. Fazia-se uma patuscada e o forasteiro era aceite na comunidade.
Quem namora quer casar e por isso, rapaz e rapariga, cada um por seu lado, tratava de arranjar o que era costume cada um levar. Precisava-se, no mínimo, de um ano. O rapaz tinha de poupar dinheiro para comprar as mobílias do quarto (cama) e da sala (mesa e cadeiras). À rapariga, cabia a mobília da cozinha (cantareira, bancos, masseira, tabuleiro) e o enxoval (lençóis, fronhas, travesseiros, mantas, toalhas de rosto e de mesa), com a respectiva arca.
Numa casa de lavoura, a família plantava o linho, trabalhava-o até ser fio que a noiva tecia no tear da loja. As peças de pano de linho eram depois cortadas, cosidas e bordadas. As mantas faziam-se com fitas de panos velhos, também no tear.
Cerca de três meses antes do casamento, os pais do noivo iam a casa dos pais da noiva a pedir a mão da rapariga para o filho e a combinar a boda. Quantos convidados de cada parte, que cozinheira contratar, quantas reses e aves de capoeira seriam precisos e se comprados ou de produção própria. Tudo a meias. E o local da boda, em casa de um deles, se fosse grande, ou alugada.
Os convites faziam-se um mês antes do casamento e, na última semana, as duas famílias mobilizavam-se na feitura de bolos e doces: biscoitos, bolos de leite, esquecidos, cavacas e pães-de-ló. Eram para oferecer aos não convidados (vizinhos, amigos e pessoas ricas), agregando-os também à festa. O retorno esperado eram prendas para os noivos.
E chegava o dia do casamento. O noivo, acompanhado pelos convidados, dirigia-se à casa da noiva, onde era aguardado por ela e pelos seus convidados. Depois, em cortejo, seguiam para a Igreja, ele com a madrinha e ela com o padrinho.
O noivo vestia fato preto, camisa branca, gravata cinzenta, lenço branco no bolso do casaco e chapéu. A noiva trajava de fato de saia e casaco, preto ou de outra cor, ou vestido, que não tinha de ser branco, xaile e lenço na cabeça ou véu.
A cerimónia podia incluir missa ou não, conforme fosse dia de semana ou domingo. À saída da Igreja, saudavam-se os noivos com pétalas de flores.
Seguia-se a boda e as iguarias eram de estalo:
- Canja
- Carne assada e guisada
- Bifes com batatas fritas
- Arroz com carne
- Iscas de fígado
- Pastéis de carne
- Arroz-doce
- Vinho
- Chá
- Doces
Era o tirar a barriga de misérias, em tempos de muitas carências.
E começava uma nova vida, gerando outras, muitas vidas.


A foto é de um casamento na Meimoa (Penamacor), em 1933. Embora não pareça, a noiva tinha apenas 24 anos!

Em São Vicente da Beira, os jovens já se casavam por amor, na primeira metade do século XX. Os meus pais, António Teodoro e Maria da Luz (Prata), casaram há precisamente 60 anos, tal como Luís Rodrigues (Prata) e Tomázia da Conceição e ainda Joaquim Leitão e Emília Rosalina do Casal da Serra. O dia 30 de Dezembro calhou num sábado, em 1950. Só puderam casar depois do Natal, pois no Advento não se realizavam casamentos.
Esta crónica é uma homenagem aos pais e avós que viveram os rituais de amor aqui descritos.

Texto composto a partir da recolha de Maria Isabel dos Santos Teodoro, trabalho manuscrito, Escola Secundária de Alcains, 1985.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Tradições de Natal

Em Portugal, cruzam-se as tradições natalícias do sul e do norte da Europa. Da Itália, pelas mãos de S. Francisco de Assis, vieram-nos os presépios e o Menino Jesus, trazidos pelos franciscanos. Dos países nórdicos, sobretudo da Alemanha, são as tradições do Pai Natal (chamado assim pela sociedade de consumo norte-americana, mas tradicionalmente designado por São Nicolau), da árvore de Natal e dos presentes. Estas trazidas, para Portugal, pelo príncipe alemão D. Fernando, esposo da rainha D. Maria II (1834-1853).
Tencionava escrever um texto sobre este assunto, mas encontrei, no jornal PÚBLICO on-line, um excelente trabalho sobre a origem do nosso Natal. Aqui vo-lo deixo, com votos de Bom Natal.


O nosso Natal é como o dos príncipes do século XIX
Por Alexandra Prado Coelho

Foi D. Fernando II quem, nostálgico das tradições da sua infância, resolveu um dia fazer no palácio uma árvore de Natal para os sete filhos que tinha com a rainha D. Maria II, e distribuir presentes vestido de São Nicolau. Em Inglaterra, a rainha Vitória encantava-se com a mesma tradição, trazida pelo seu marido, Alberto, primo de D. Fernando. Pela mão dos dois primos germânicos nascia a festa de Natal como a conhecemos hoje.


Gravura de D. Fernando II com o rei vestido de S. Nicolau (J. Real Andrade/Fundação casa de Bragança)

Alguns dos principezinhos espreitam por detrás de uma cortina. Um outro, mais velho, está sentado numa cadeira, rindo, com as pernas no ar. Há um que parece tapar os olhos, como quem espera uma surpresa, e as duas meninas espreitam para dentro de um dos sacos da figura vestida de escuro que ocupa o centro da gravura. Ao fundo, sobre uma mesa, está, toda enfeitada, uma árvore de Natal.

Eram assim as noites de Natal da família real em meados do século XIX. D. Fernando II, marido da rainha D. Maria II e pai dos seus sete filhos, representava nas suas gravuras e águas-fortes o ambiente familiar, com ele próprio vestido de S. Nicolau a distribuir presentes. Mas o que é significativo na imagem é o facto de, segundo se crê, ela ser a primeira representação de uma árvore de Natal em Portugal.

D. Fernando era alemão. Com o seu primo Alberto, tinha passado a infância comemorando o Natal segundo a velha tradição germânica de decorar um pinheiro com velas, bolas e frutos. Por isso, quando começaram a nascer os seus filhos com D. Maria II - a rainha teve 11 gravidezes, mas só sete crianças sobreviveram, e a própria D. Maria morreu aos 34 anos, no parto do 11.º filho - D. Fernando decidiu animar o palácio com um Natal de tradições germânicas.

A rainha ficava encantada. Nas cartas à sua prima, a rainha Vitória falava com entusiasmo dos preparativos para a festa de Natal, que seria, aliás, muito semelhante à que Vitória (que tinha casado com Alberto) organizava no Castelo de Windsor, em Inglaterra.

"Nada, nem o ar amuado de D. Pedro [o primogénito e futuro rei D. Pedro V], conseguia estragar as festas de Natal", escreve Maria Filomena Mónica em O Filho da Rainha Gorda - D. Pedro V e a sua mãe, D. Maria II, conto que escreveu inicialmente para os netos e que foi depois editado pela Quetzal. "Na Alemanha, onde havia grandes florestas, era costume montar-se, nessa época, uma árvore, enfeitada com flores, bonecos e bolas. Em Portugal, o uso era antes o presépio, com o Menino Jesus nas palhinhas. Em 1844, D. Fernando resolveu fazer uma surpresa à família. Colocou em cima da mesa um pinheirinho, pondo ao lado os presentes."

Podemos imaginar o que seriam os presentes dos príncipes graças a outra gravura de D. Fernando que mostra o príncipe D. João, pequenino, com uma camisa de noite comprida e segurando um cavalinho na mão, a olhar para uma mesa enfeitada com a árvore de Natal, e rodeado de bonecos - um tambor, um estábulo com animais, um soldado de chumbo montado num cavalo. O Natal deixava de ser apenas uma festa religiosa e passava a ser uma festa das crianças.

A vida da família real

"O século XIX é fracturante em relação ao passado na promoção de uma nova visão do convívio da família", explica Nuno Gaspar, historiador e técnico do Palácio da Pena, em Sintra, onde preparou uma visita, realizada no ano passado, que tinha como tema o Natal da família real (embora, sublinha, durante a época do Natal, os reis e os filhos não estivessem na Pena, mas sim no Palácio das Necessidades, em Lisboa). "A tradição dos presentes não existia, sobretudo nos meios mais populares. Esta associação dos presentes que são trazidos pelos Reis Magos para oferecer ao Menino Jesus não existe antes. Pôr as crianças no centro das festividades do Natal é obra do século XIX."

Ao contrário do que acontecia anteriormente, é agora evidente uma intimidade muito maior entre pais e filhos - e os ambientes domésticos reflectem isso. Sobretudo o Palácio da Pena, onde D. Fernando pôde tornar realidade o sonho de qualquer romântico, nas salas indianas ou árabes, nos salões, nos quartos ricamente decorados, nos espaços mais pequenos para as noites em família, a ler, a tocar piano ou a brincar com as crianças, nas torres e num jardim com pontes, grutas, pérgulas e fontes.

"O homem do Romantismo não gosta de grandes espacialidades, prefere espaços acolhedores, quentes, que promovam a aproximação entre os indivíduos", acrescenta Nuno Gaspar. "A Pena é a expressão de uma modernidade, um espaço que tem que se prestar a acolher o tempo íntimo da família."Nos espaços públicos também se reflecte essa relação mais próxima entre pais e filhos, e vai-se criando a imagem de uma família real igual a todas as outras. Os reis e os príncipes passeavam no Passeio Público e conta-se mesmo que, um dia, D. Maria passeava com o príncipe D. Luís no Jardim da Estrela e, perante a relutância da criança em abraçar outro menino que ali brincava, ela o terá encorajado a fazê-lo.

A educação era marcada também pelo rigor. "Os infantes e os príncipes passavam muito tempo com os preceptores, mas os pais não se eximiam da sua função de educadores", diz o historiador. "Eles [os monarcas] viviam para os filhos, mas com alguma exigência", confirma José Monterroso Teixeira, especialista em História da Arte e da Arquitectura. "O rei institui a prestação de provas públicas e impõe um currículo prussiano, com um corpo de professores muito seleccionado."

O futuro rei D. Pedro V e os irmãos tiveram, assim, uma formação muito diferente da da mãe e mesmo do avô e tio-avô, D. Pedro e D. Miguel. "Nos dois anos que se seguiram à morte da mãe, D. Fernando pôs D. Pedro e D. Luís a viajar pela Europa", porque achava fundamental que eles conhecessem o mundo, explica Monterroso Teixeira.

Filomena Mónica conta o mesmo no seu livro: "Fora do Natal, os príncipes seguiam um horário de estudo disciplinado. O pai não era para brincadeiras. Sempre que podia, dava-lhes lições, sobretudo de Zoologia e Botânica. [...] Muito estudioso, D. Pedro começou logo a fazer exercícios de tradução. Aos 11 anos, foi sujeito, com êxito, a um exame diante dos pais. Estes, e os fidalgos que estavam presentes, ficaram admirados com a forma como ele fizera uma redacção em latim."

A rainha Vitória e Dickens

Os tempos livres eram também cheios de actividades. Na serra de Sintra (D. Maria II nunca chegou a viver na Pena, porque a obra ainda não estava terminada quando ela morreu, em 1853), conta Filomena Mónica, "de dia faziam piqueniques, à noite viam fogos-de-artifício, e às vezes a rainha organizava bailes. Em meados do mês, voltavam para Lisboa".

Os nobres, primeiro, e o povo, depois, vendo os hábitos da família real, entre os quais a tradição da árvore de Natal, começam a imitá-los. O mesmo se passa em Inglaterra. Não é por acaso que se fala em Natal vitoriano - muitas tradições que ainda hoje se mantêm nasceram nesta altura.

Em 1848, o Ilustrated London News publicou um desenho em que se vê a família real em torno de uma árvore de Natal, com a rainha Vitória e o príncipe Alberto a olhar para os filhos, que contemplam, fascinados, as luzes. A publicação da imagem (que, um ano depois, chegou aos EUA) teve um efeito imediato e em muitas casas começou-se a instituir a tradição da árvore (em Portugal, o desenho de D. Fernando não foi publicado por isso o processo terá sido mais lento).

"Hoje tenho dois filhos aos quais posso dar presentes e que, sem saberem bem porquê, estão cheios de um maravilhamento feliz perante a árvore de Natal germânica e as suas velas brilhantes. [A árvore] afectou profundamente o Alberto, que ficou pálido, tinha lágrimas nos olhos e apertou a minha mão com ternura", escreveu a rainha Vitória, segundo conta Anna Selby em The Victorian Christmas.

Ao longo do século XIX, outras tradições natalícias foram surgindo. Em 1843, Henry Cole pediu ao artista J. Calcott Horsley que desenhasse um postal de Natal - o desenho mostrava um grupo de pessoas a comer e a beber em volta da mesa de Natal e tinha escritos votos de Feliz Natal e Bom Ano Novo.

Nesse primeiro ano, imprimiram-se apenas mil, mas, nas décadas seguintes, generalizou-se o envio de cartões de Natal e desenvolveu-se uma indústria de decorações cada vez mais elaboradas. Com a árvore, chegou também a figura de S. Nicolau - que Fernando II encarnava para distribuir os presentes pelos filhos. Terá sido um editor de Nova Iorque, William Gilley, quem, em 1821, publicou um poema anónimo num livro infantil que falava em Santa Claus (o nome virá do holandês Sinterklaas) e no seu trenó puxado por renas. A imagem do Pai Natal como um velhote bonacheirão de barbas brancas carregando sacos de brinquedos surgiu também no século XIX pela mão do cartoonista americano Thomas Nast. Mas quem melhor terá descrito o espírito do Natal vitoriano foi Charles Dickens - não é por acaso que ficou conhecido com "o homem que inventou o Natal". Foi ele quem, em 1843, escreveu Conto de Natal, a história do velho e avarento Scrooge, e são os livros de Dickens que instalam definitivamente no nosso imaginário a imagem da véspera de Natal como uma noite fria, com o nevoeiro a invadir as ruas, e as casas acolhedoras e aquecidas, com a família reunida à volta de um peru e da árvore de Natal - a tal inovação que tanto entusiasmava toda a Europa e que, num texto publicado em 1850, o escritor descreve como "aquele bonito brinquedo alemão".