Torta com chouriça
Quando a minha irmã que no céu esteja morreu, a dona Delevina foi logo a ter com a minha mãe
para me deixar ir para o lugar dela.
- Eh minha senhora, não me leve a mal, mas a
cachopinha é tão relezita! Deixe-a lá medrar mais alguma coisa, que Deus ainda
agora me levou uma; não quero que esta me abale também.
- Não te preocupes que o trabalho não a há de matar! É
só para ir à fonte e fazer os recados, que a Antónia já está velha. E sempre
ficas com menos uma boca lá em casa.
Ao princípio não tive razões de queixa, mas passado
pouco tempo, em vez de acartar água e fazer recados, tinha que esfregar o chão,
lavar a roupa, passar a ferro; era o dia todo numa fona. E, quando me mandavam
à loja a comprar alguma coisa, encomendavam-me logo o sermão:
- Olha que tu vai num pé e vem no outro; não fiques
por lá na calhandrice com as outras!
A inveja que eu tinha quando passava na Praça e via as
cachopitas da minha idade a jogar ao paspelho ou à pela!
Depois a dona Delevina
adoeceu e ficou de cama, e fui também eu que tive que tratar dela. Quando a
estava a lavar, não se calava:
- Ó rapariga, olha que tu fecha-me bem esses os olhos,
que vais para o inferno se me vês o corpo!
Mas, não sei se era o diabo a atentar-me, quanto mais
ela clamava, mais eu olhava, curiosa, porque nunca tinha visto um corpo de
mulher feita todo encarapato. Um dia, na minha inocência, perguntei à minha mãe
se a doença da senhora era terem-lhe nascido pêlos no corpo, e se aquilo se
pegava.
- As coisas que esta mulher diz! Tu vê mas é se tens
tino e nem abras a boca para ninguém, que até é pecado falar nessas coisas.
A partir daí achei que, se queria ir para o Céu, o
remédio que tinha era andar de olhos fechados e boca calada, por isso nunca mais
falei no assunto e só abria uma fisga dos olhos quando estava a tratar da
senhora. Mas durante muito tempo não me saía da cabeça se aquela doença seria
pegadiça, que tinha medo de ficar assim como ela, cheia de pêlos.
O pior daquela casa nem era o trabalho, era a miséria
que se lá passava. De manhã só me davam uma malga de café negro com um bocado
de pão com azeitonas; ao jantar era umas batatas estremes, só com um fio de
azeite por cima; à ceia uma malga de caldo de feijão pequeno com couves. E era
todos os dias a mesma coisa. Sem ser aos domingos ou dias de festa, raramente
havia um bocadinho de conduto, numa casa tão farta de tudo: bons queijos de
ovelha metidos naqueles grandes potes; boas chouriças e presuntos; ovos;
azeite; vinho… Tudo quanto era bom, mas só para as visitas, que não saíam lá de
casa… Tudo gente rica.
Quando a patroa, morreu quem ficou a tomar conta da
casa foi a governanta. Já era velha, sempre a mancar duma perna e mouca que nem
uma porta. Uma mãos de fome que ninguém calcula. Até parece que estou a vê-la,
de saias rabudas, sempre com um molho de chaves preso à cintura, por cima do
avental. À noite, quando ia para a cama, punha-as dentro dum açafate, em cima
da banca de cabeceira, não fosse alguém pegar nelas.
Às vezes iam lá os pobres a bater à porta, a pedir
esmola. Assim que os sentia, berrava-me lá para a cozinha:
- Ó Maria, olha que tu dá só azeite do velho ou do
frito!
Mas eu, sempre que podia, pegava na amotolia às
escondidas e dava era do bom, que tinham lá muito, e os pobres também são filhos
de Deus; são ou não são?
Uma vez, só porque me viu a riscar dois fósforos para
acender o lume, fartou-se de me chamar desgovernada, e que se fosse assim
quando me casasse, havia de ser uma miserável. Eu só lhe respondi:
- Como é que quer que ateie o lume se a carqueja está
toda verde? Amanhã acenda-o vossemecê, a ver se é capaz!
Ela ficou tão danada comigo que se me agarrou ao
pescoço com tanta força que me ia atafegando. Estive mesmo para sair porta
fora, mas tive medo que quando chegasse a casa a minha mãe me desse uma sova, e
deixei-me ficar.
Às
vezes ia lá a dormir comigo uma irmã minha. Um dia, chega lá ela e diz-me
assim:
- Ai, irmã, venho cá mais desconsolada…
- Olha, dá cá a mão…
- Atão o que é que foi hoje a ceia?
- O que é que havia de ser? O mesmo de sempre.
- Com tanta coisa boa que há nesta casa e esta unhas
de fome só te dá caldo?! Deixa-a estar que a gente já a coça!
Ficámos à espera que fosse para a cama e, assim que a
ouvimos a ressonar, entrei no quarto, devagarinho, e fui direita ao açafate das
chaves. Ela, mouca como era, nem se mexeu. Depois fomos à loja, pegámos nuns
poucos de ovos, numa chouriça e numa medida de vinho, e voltámos para a
cozinha. Batemos os ovos bem batidinhos, migámos a chouriça e fizemos uma torta.
Ficou cá uma tora, mas demos cabo dela toda! No fim, até nos lambemos! Ainda
por cima com um copinho de vinho para cada uma, foi como se estivéssemos a
comer a melhor coisa do mundo!
E a ti Tonha, na cama, a ressonar; nem o cheiro a
acordou. E nós, essa noite, também dormimos mais regaladinhas…
M.
L. Ferreira