sábado, 25 de abril de 2020

25 de Abril


Catarina, filha de Salgueiro Maia e defensora das mulheres de limpeza do Luxemburgo

Faz no sábado 28 anos que morreu o herói do 25 de Abril. No meio da pandemia, a filha, Catarina Salgueiro Maia, defende agora os direitos das mulheres de limpeza no Luxemburgo, suas camaradas de labor há três anos. Nessa luta, presta também homenagem à memória do pai. Uma reportagem exclusiva do Jornal Contacto.
Ricardo J, Rodrigues/Especial jornal Contacto
05 Abril 2020

Tinha voo marcado para Lisboa em abril, que neste ano dia 25 calha a um sábado e isso permitia-lhe aproveitar a folga para viajar. "Sinto-me estranha se não descer a Avenida nesse dia, se não prestar homenagem aos militares que lutaram pela nossa liberdade e ao meu pai em particular", diz Catarina Salgueiro Maia, 34 anos, filha do capitão que em 1974 tomou o Largo do Carmo e com isso ofereceu a Portugal um dia inicial, inteiro e limpo.
Em 2019 não pôde mesmo ir, o trabalho apertava e a efeméride comemorava-se durante a semana. "O meu marido encomendou um ramo de cravos vermelhos, que não são nada fáceis de encontrar no Luxemburgo, e ofereceu-me. Compensou um bocadinho as coisas, mas decidi que em 2020 não cometeria o mesmo erro. Só que agora, pronto, já se sabe." Veio o coronavírus, os aeroportos foram encerrados e o desfile está cancelado. Pronto, já se sabe.
Catarina vive desde 2011 em Esch-sur-Alzette, a segunda maior cidade do grão-ducado. É funcionária de limpezas num lar de terceira idade e, desde que a pandemia de coronavírus tomou o país, ela tornou-se a voz incontornável na defesa das mulheres que estão na primeira linha de contágio, mas a quem não são dadas as devidas condições de segurança.
"Comecei a protestar com os patrões, não só pela minha dignidade, como pela dignidade de todas as minhas companheiras", diz. São as máscaras que lhes prometeram e nunca chegaram, as luvas que se rompem por tudo e por nada, é terem de limpar os quartos de doentes infetados sem recomendações de segurança. "Estamos num tempo de emergência e temos uma missão para cumprir", explicou aos empregadores. "Nós estamos dispostas a fazê-lo. Mas não podemos ser carne para canhão."
Assumiu-se delegada sindical na sua empresa. Trabalha para a Dussman, uma prestadora de serviços com mais de duas mil funcionárias como ela. "Mulheres mal pagas, algumas com filhos em casa, outras com doenças crónicas, que estão a trabalhar no duro mas também têm direito a preservar a sua saúde e a dos seus familiares." Esta luta, diz Catarina, é pela decência. E essa é uma lição que aprendeu do pai.

O estado a que isto chegou
A notícia de que uma portuguesa de cabelos vermelhos andava a organizar uma revolução pela dignidade das femmes de ménage começou a correr pelas despensas do Luxemburgo, rápida como o vento. "Desde que foi declarado o estado de emergência recebo dezenas de e-mails, mensagens de Facebook e telefonemas por dia", diz Catarina. "Não só da minha empresa, como de outras. Há muitas dúvidas e abusos continuados dos direitos. E eu respondo a toda a gente."
Os casos que não sabe atender encaminha-os para a OGBL, a maior central sindical do país. Mas revolta-a a forma como milhares de mulheres estão a ser deixadas à sua sorte. "No outro dia aconteceu no meu lar. Estávamos a lavar a loiça do almoço de mãos, pratos, talheres, restos de comida e tudo. Depois reparei num tabuleiro que era de um utente do lar que estava infetado com covid e que acabou por morrer na passada quarta-feira. Então não selaram, nem nos indicaram nada?"
Armou um pé-de-vento, claro. Por sorte o tabuleiro com a comida não tinha chegado a entrar no quarto, garantir-lhe-ia horas depois a enfermeira da casa de repouso. Reiteraram-lhe pedidos de desculpa - o pessoal médico e os seus chefes - mas ainda não aprendeu a viver com o medo.
"As pessoas habituaram-se durante anos a não nos ver, a não olhar sequer para nós. Somos uma classe invisível que agora as pessoas perceberam que se tornou essencial", diz agora à porta de casa. "Limpamos os hospitais, os lares, expomo-nos ao perigo para ganhar meia dúzia de tostões. Então, caramba, já basta de sermos tratadas como ralé."
Ali, no lar de Esch, há mais de 200 velhotes, uma morte e duas infeções confirmadas, mais a expectativa de um foco de contágio nos próximos dias. "Costumamos ser 26 mulheres, agora estamos dez porque muitas tiveram de ir para casa tomar conta dos filhos. Ou então não podem vir porque têm pais a cargo."
Não se queixa delas, compreende os seus problemas. Diz que muitas delas tinham oficialmente apenas meios horários, apesar de cumprirem tempo integral. "O resto era pago em horas extraordinárias pela empresa. Por isso estas minhas colegas estão em casa a receber o subsídio especial do governo, sim, mas apenas referente a metade daquilo que trabalham."
O esforço das que permanecem é redobrado. Antes do coronavírus, cada mulher limpava sete quartos, agora limpa 24. A lavagem da loiça, dos 200 utentes do lar mais 600 velhotes que recebem apoio domiciliário, é agora cumprido a seis mãos, em vez de 12. "E no meio disto tudo o que me dói mais é não poder dar um beijinho aos velhotes, que são aqueles que nos apreciam realmente. Não pode ser, eu sei. Mas custa."
Os dias fizeram-se cheios como nenhuns outros desde que chegou ao Luxemburgo. É que, além de andar a duplicar os turnos no lar, Catarina tem quatro filhos - uma rapariga de 16 e um rapaz de 10, mais uma menina de 6 e uma bebé de 1 ano. "O meu filho tem asma, sei que corre riscos por isso. Tento precaver-me para que não lhe aconteça nada mas todos os dias chego a casa de coração nas mãos."
Podia ter parado, como tantas colegas, mas não o quis fazer. "O meu marido trabalha nas obras, que agora pararam, e então ele pode tomar conta da miudagem. E não é só isso. Num período destes temos de fazer a nossa parte para que o mundo seja mais justo ou mais livre. Se as limpezas acabassem, os hospitais não podiam funcionar, os velhotes ficavam ao abandono. Nunca saberia viver com isso."
Então desdobra-se. Mãe e mulher, amiga e sindicalista, cozinheira, arrumadora de quartos, lavadoura de loiça. À vizinha do rés-do-chão, que já passou os 80, faz as compras todos os dias. Prepara exercícios e jogos para os miúdos à noite, que depois imprime e deixa na caixa de correio para que outras colegas com filhos pequenos possam passar e apanhar. Mas o que mais lhe rouba o tempo, admite de caras, é a luta que se predispôs a fazer durante a pandemia.
"Penso muito no meu pai, por estes dias. De como seria estranho para ele, que combateu pela liberdade, ver como uma doença obrigou o mundo a cessar a democracia." Emociona-se ao falar de Salgueiro Maia. "Eu só espero que ele, esteja onde estiver, tenha orgulho da filha. Não estudei nem tenho nenhum cargo importante, mas decidi lutar por alguma coisa que considerava justa e acho que seria isso que realmente importaria para ele."
Catarina tinha 6 anos quando o pai morreu, foi a 4 de abril de 1992. As memórias que guarda são as de um homem doce, que lhe cantava antes de adormecer A Samaritana, um fado de Coimbra. "Lembro-me de irmos com ele ao quartel e eu pensar que ele não se ria tanto quando estava na tropa, era mais sério. Mas comigo e com o meu irmão, que é quatro anos mais novo, ele derretia."
Nunca se irritou por crescer sob a asa de um herói, ser filha de Salgueiro Maia foi orgulho em todas as fases da vida. "Sinto que os políticos não o trataram bem, mas o povo amou-o sempre. E foi também isso que aprendi com ele, mesmo depois de ele já não estar comigo." Se um grupo de capitães conseguiu depor em 1974 uma ditadura, se conseguiram cumprir uma revolução praticamente sem sangue e envergando cravos nas espingardas, "então o que conta é o que somos e o que fazemos, não a posição que detemos".
Ela tem orgulho na sua aventura. De como se meteu à estrada para o Luxemburgo há nove anos com o marido, com uma miúda de 7 e um bebé de 1 ano nos braços. Não fugiam de nada, só queriam uma vida melhor. Trabalhou durante seis anos em cafés e um dia não aguentou mais. "Estava em processo de divórcio e passar o dia a conviver com pessoas parecia-me uma ideia insuportável."
Há três anos entrou para a firma de limpezas. Apaixonou-se novamente, agora tem mais um bebé, não canta A Samaritana à filha mas conta-lhe como o avô, aquele do retrato grande da sala, fez um país inteiro livre. "Foi a fazer limpezas que eu recompus a minha vida e que reencontrei a felicidade. Tenho muito orgulho na minha profissão. E isto eu sei: hei de lutar sempre contra quem não a respeitar." Então podem os dias ser duros, sim, que ela tratará de continuar a fazê-los livres. Falou Salgueiro Maia.

Publicado em Portugal, no Diário de Notícias
José Teodoro Prata

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Remoer pecados velhos


Os meus padrinhos resolveram pôr-me o nome de Idalino Justo.
Fruto dos anos que Nosso Senhor me deixou acumular até hoje, a lista de memórias enche já uma arca grande das antigas e dou comigo a vasculhar lembranças e a remoer pecados velhos.  
Ora, existiu em tempos um rapaz — não haveria entre as nossas idades uma diferença de metro — que, de seu próprio nome, se chamava António e nascera de família Assunção.
Se não podemos escolher os nossos vizinhos ou os camaradas de trabalho, logramos, pelo menos, eleger os nossos amigos. Porque nascêramos na mesma terra, éramos genuinamente afeiçoados, mas um poucochinho mariolas. Um poucochinho é favor, embora — creio eu, que sou suspeito — não tivéssemos, propriamente, um ruim caráter. Enfim, possuiríamos aquilo a que um outro companheiro nosso costumava chamar “velhacaria boa”.
Coisas da idade!
Aos domingos à tarde, no verão, sendo propício, aventurávamo-nos à marouva, mas deitávamos os olhos por largo, não fossem os donos estar de vigia; ou podíamos optar por nos divertir a esconder as fatiotas dos que nadavam, em pelote, no açude do Plome. O pior era se a roupa pertencia a alguns dos mais taludos que já exibiam no púbis excrescências filiformes porque, nesse caso, corríamos o risco de pagar o atrevimento com um bom caldo no pescoço. E bico calado!    
Muitos chamavam ao moço António, o “Picado”, por mor de algumas marcas no rosto deixadas pelas bexigas negras. Aquelas a que os estudiosos das moléstias chamavam varíola.  
Chegaram-lhe em pequeno. Esteve às portas da morte e, por isso, muito perto dos pórticos dourados do paraíso. Um lugar que ninguém quer antes de tempo, por mais idílico que no-lo pintem! Escapou!
Propalava sua mãe que o pequeno se livrara da terrível doença, por intervenção miraculosa de S. Sebastião. O santo e valoroso militar sacrificado a mãos ímpias que, no coro dos eleitos, tem o particular crédito de afastar as pragas.
Pelo menos ela assim acreditava, no fundo do seu coração de mãe. Pois que, muitos foram os infetados por aquela enfermidade que acabaram por perecer, mas mais ainda foram os que sobreviveram. Bem precisávamos agora do santo. É uma questão de o invocarmos, porque lá diz o Mestre nos Evangelhos: “Pedi e dar-se-vos-á.”   

As nossas famílias eram oriundas de um maciço granítico com penhascos nos pontos mais elevados, próximo dos lugares onde acabava a cordilheira central da Meseta Ibérica. Se se olhasse a montanha lá de baixo das fitas das estradas que serpenteavam na planura, podia destrinçar-se na bruma azulada e leitosa dos serros, o alvejar das casas dispersas pelas clareiras, como peças de roupa branca a corar na relva das margens do Açude das Passadouras.  
No chão hostil se fixaram gerações de camponeses. Muito sangue celta e lusitano haveria por ali! Não conheciam outra forma de sobreviver que não fosse o cultivo da terra. Arrostar com as dificuldades dos trabalhos do campo na paisagem inóspita serrana, requeria homens e mulheres de grande têmpera, endurecidos aos sóis dos séculos.   
Neles, certamente, se terá inspirado o poeta:
“Eu nasci na Beira,
Sou homem pequeno,
Sou como granito,
Bem rijo e moreno.” (a)
Gente que foi capaz de colocar em alerta a própria Roma invasora, que pagou caro o seu atrevimento; e que só por meio da vil traição levou a cabo os seus intentos de conquista. Para submeter os bravos monteses, foi necessário que se desonrassem os Césares!  
António era o mais serôdio — terá mesmo vindo a destempo — com relação aos outros irmãos, cinco rapazes e duas raparigas, todos sãos e perfeitos, que os benzera Deus. Compunham a prole de Maria José e Manuel Assunção.
Chegada que foi a idade, António iniciou a frequência escolar. Poder aprender, era um sinal dos tempos. Não passou, porém, essa época sem que houvesse grandes inquietações para o pai, dadas as exigências que estavam a nascer, que vinham ao invés dos costumes que sempre vigoraram naquelas regiões. Entre filho de lavrador e filho de peixe há apenas a diferença do meio. Tudo apontava, portanto, para que o pequeno seguisse as pisadas do pai. Não era fácil modificar as costumeiras regras de séculos. Mas com a alteração da política no país, sentiam-se ventos de mudança. Valha a verdade — que deve estar sempre nos espíritos bem intencionados — o rapaz começou a achar-se descontente.
Andava farto de guardar cabras, lavrar a terra e carregar molhos de mato. E competia às gerações mais novas mudar alguma coisa. Da cidade capital, os ecos eram de que o país deveria progredir; queriam a mocidade nas escolas. Dantes, as leis nem chegavam à serra. Todavia, algo parecia estar a mudar e já não era como no tempo da Patuleia — rolara entretanto uma rima de anos — em que cada um fazia o que queria. Passou a ser um caso sério não acatar as ordens de quem mandava.
Então, o moço principiou a ler os livros e a cursar as aulas, em alguns dias da semana, mas de forma, por enquanto, muito pouco regular. Tinha que trabalhar nas terras do pai, uma fazenda que ainda era coisa que se visse!
Mesmo nos dias em que dava um salto à escola, o progenitor não o dispensava de ter que ajudar. Assim que regressava a casa, o pequeno pegureiro via-se obrigado a atirar a bolsa dos livros para um canto e toca de ir guardar o rebanho ou auxiliar os irmãos mais velhos na lavoura. Não podia fazer os deveres nem estudar a lição.
Manuel ainda não tinha assimilado os novos tempos e fora a mulher, a Maria José, quem primeiro trouxera a novidade. Tinha sido chamada por causa do filho e o recado que lhe dera a Zita, a contínua da escola, era que o garoto mais novo, o António, ainda em idade escolar, andava a dar muitas faltas e isso não podia continuar!  
— O governo quer que os catraios vão à escola todos os dias, Manuel. Há ordens! — dizia ela para o marido, à noite, quando todos estavam reunidos a cear. Contando as mulheres dos filhos mais velhos e os netos, ainda pequeninos, ao todo, eram doze à volta da enorme mesa de carvalho da ampla cozinha.
Estava visto que o Manuel não podia andar com tibiezas em relação ao filho mais novo que, uns dias ia à escola, outros não. Não podia fazer o que fizera com os outros que nunca aprenderam a ler que prestasse. Aquilo agora era a sério!
— Por modos — continuou a mulher — querem dar algumas letras aos mais novos para o país avançar! Sendo assim, por mais que te custe, homem, agora não é como dantes. O nosso António tem que ir à escola todos os dias. Tens que meter isso na cabeça de uma vez por todas! Não vão eles meter-nos por aí em trabalhos! 
Eles, eram os do governo.
Foi só então que o Manuel tomou verdadeira consciência do caso. As palavras da mulher, ditas daquela forma tão clara e aberta em frente de toda a família, estouraram que nem um foguete de tiro em casa do Assunção.  
E não era tudo. A professora mandava mesmo avisar, pela boca da Zita que, caso as ordens não fossem cumpridas, se preciso fosse, a Guarda Republicana se encarregaria de passar lá por casa e depois logo se veria...! O mais certo era o Manuel ter que pagar a multa de oitenta mil e quinhentos.
— Isso pode lá ser! Quase três semanas de trabalho de um homem! — vociferava, tonto de todo.
— Atreve-te, Manuel, e verás! — insistia a mulher. — Pagas a multa e, no fim, sempre tens que abrir mão do António.  
— Ir todos os dias para à escola! Ora essa! — contestava o agricultor num misto de irritação e lamento.
— Não há dúvida! Isso é para os ricos! Que rendimento é que dá a escola? Ná! Quem pode trabalhar, tem que trabalhar…! Na fazenda há que fazer para todos! E na minha casa não há lugar para figurões!
O caso não era de morte, mas parecia. Em tantos anos, nunca houvera razão para que se visse o homem tão altercado! Ele que até tinha fechado os olhos naqueles raros dias em que o rapaz fora à escola. Mas, quererem impor-lhe um preceito como se põe um barbilho a um chibo, deixava-o das avessas!
— Ora uma destas! Quererem pôr-me o rapaz todos os dias à boa vida, sentado num banco! Se já se viu isto! Tenho um rebanho de mais de oitenta cabeças de gado para guardar! Quem é que me resolve a minha vida? O governo sabe lá o que anda a fazer! — bradava o Manuel Assunção; e retornava:
— Homessa! Levarem-me o moço para a calhandrice, a aprender coisas que não fazem falta nenhuma…! Letras são tretas! — lastimava o velho lavrador.

Mas, lei, é lei e pronto! O Manuel nada podia fazer. Por jeitos, até lhe soara que o homem que governava em Lisboa não era lá muito bom de assoar! E não teve outro remédio senão deixar ir o filho diariamente à escola como mandavam as normas. Bem lhe custou!
Então o António lá ia todos dias de manhã, a pé, da fazenda até à escola — e se aquilo era um esticão! — aprender as letras, os números e a história de Portugal. A sua vida foi andando desta forma durante alguns anos. Quando chegou a altura, foi à cidade, com os outros, fazer o exame. Em simultâneo com a escola, fizera também a catequese e a comunhão. Para o pai terminara o pesadelo. Precisava do filho e este, finalmente, estava liberto. No entanto, não era tudo. Este filho mais novo reservava aos progenitores outras surpresas.      
O pequeno medrou, fez-se rapazote e trepou a mocetão desempenado. Na idade própria foi às sortes e calhou a livrar-se da vida de soldado. Subiu a homem casadoiro. Porém, desde que espigara, crescera nele a curiosidade. A escola ajudara-o a espertar. A vontade de saber coisas novas e perscrutar outros horizontes estava bem viva no seu pensamento. 
Cedo principiara a ouvir falar os irmãos mais velhos do tempo da tropa passado em Lisboa e a vida na grande cidade. Onde as ruas fervilhavam apinhadas e as turbas se contorciam; os elétricos e os automóveis faziam elevar no ar a troada dos seus motores e os estrépitos das buzinas. Ansiava caminhar nas largas avenidas de traçado retilíneo, com áleas de árvores intermináveis! O mar a entrar pelo Tejo, os grandes edifícios a ladear as alamedas, lojas, teatros, cinemas, restaurantes e monumentos históricos. Os homens sempre engravatados e as mulheres a passear-se pela rua ostentando belos vestidos da moda, lavados e bem cheirosos.
Até então, ele sabia apenas o que era andar com cabras e ovelhas e com a burra pela trela, a picar os bois presos ao carro ou ao arado; jornadear descuidado, a olhar o horizonte, o sol e os fragmentos de nuvens brancas no azul claro do céu; admirar as copas verdes das árvores, a floração variada e as cores dos frutos maduros; ouvir os sons campestres dos pássaros a gorjear desde manhã cedo, compondo uma sinfonia inimitável; chapinhar nas mansas e claras águas da ribeira onde os peixes lhe fugiam por entre os dedos ou desafiar, no inverno, as fortes correntes que desciam da serra e saltavam das cascatas, desfazendo-se em espuma; apanhar chuvadas e escutar o vento nas ramadas, a sibilar nos telhados ou a assobiar nas frestas das portas!
Tinha afeto às coisas, pessoas e lugares da sua infância, o que o fazia agarrar fortemente ao pedaço de terra que o vira nascer. Conhecia cada bloco de granito do muro da praça e do pelourinho, a musicalidade lamurienta da fonte antiga, velha de séculos, de bicas a correr incessantemente, onde bebia água ainda que não tivesse sede. Sabia de cada pedra da calçada, onde passara mil vezes a caminho da escola, gravando numa delas, a riscos de tijolo, o termo mais custoso da tabuada 8x7=56, para o decorar!

Mas a curiosidade espicaçava-o! Num certo dia, o mano mais velho que conhecia a sua ansiedade, puxou-o para um canto da casa.
— Olha lá, moço — disse-lhe, pondo-lhe amigavelmente a mão no ombro — já sabes como é isto aqui. Se queres fugir a esta existência de canseiras, tens que te botar a Lisboa. As terras não dão para a côdea. Se tencionas governar melhor a vida, tens que te abalançar a outros voos. À espera da herança, não chegas a chambaril. Somos muitos irmãos e caberá tuta e meia a cada um. Nós somos mais velhos, arrumámos casa, possuímos as nossas próprias famílias e ligámo-nos à terra; cá havemos de nos arranjar. Mas nunca poupámos dois réis. — lamentava-se o mais velho dos irmãos.
— Tu vieste noutra época; foste à escola e encarrilhaste com as letras. O pai podia bem ter-te mandado ao latim do seminário. Sei que ele quer o bem dos filhos e da mulher, mas é de outra época e não muda. Quando casou com a mãe deu-lhe a entender que era um às de ouros; que, com os bocados que tinha, lhe proporcionava uma vida regalada: fidalga de casa, chinelinha no pé branco e criada grave! Mas qual?! Trouxe-a sempre vergada à terra! Talvez um dia, com os pés para a cova, caia nele e bata na cabeça com os nós dos dedos e não sinta dor! — dizia com tristeza. 
— Mas pode ser que ainda não se tenha perdido tudo. Vê se arranjas emprego na Carris ou nalgum grande armazém comercial. Pudéramos nós concretizar o que tu ainda estás a tempo de fazer. Assim, terás com que comer, andas sempre lavado e limpo e cai-te nas mãos um ordenado certo todos os meses sem te queimares ao sol. É melhor tratares de meter os pés a caminho. A tua parte da herança cá te ficará guardada — asseverava.
Nos olhos de António crescia um brilho límpido, diamantino. Se o irmão lhe dizia aquilo, ele que tinha andado na tropa, conhecia o mundo e tinha tantos calos nas mãos, era porque devia ser verdade.
— É melhor escreveres ao tio Liberato que anda por lá há muito tempo e verás o que ele pode fazer por ti.

Passou um bom par semanas. Ao cabo, o correio trouxe a resposta do tio ao pedido do sobrinho. Que sim, que se arranjava lá uma vaga no armazém. Depois de estar encaixado e receber a sua paga, podia depois o moço espreitar o furo e deitar os olhos por largo. Com as letras que tinha, em terra de oportunidades, sempre podia tirar as cartas e subir na vida; ou entrar para o Estado onde ganhava menos, mas era sempre certo. Que tratasse das coisas, que se preparasse e que fosse procurá-lo na morada que enviava. Até receber a primeira féria, podia ficar lá em casa; depois, que remédio, teria que se orientar e tratar de vida!
Tinha o jovem o destino traçado. Sonhava havia muito tempo com a ida para a grande cidade e tinha agora o apoio do tio.
Felizmente, tudo correou como planeado. Chegou à cidade, iniciou o seu trabalho e acomodou-se. Passado algum tempo voltou à terra e concertou o namoro com uma rapariga desenxovalhada e trabalhadeira. Muitos o viram, tão grave que parecia um doutor, de fato e gravata, barba feita, bem penteado, brilhantina e água de cheiro! Mais tarde regressou para casar e levou a Arnaldina — assim se chamava a moça — e tiveram vários filhos. Os tempos de andar de safões e de botas de pneu já lá iam. Assentaram e por lá andaram mais de 50 anos!  
António foi conhecendo o encanto dos lugares por onde andava; e o facto de já ter família própria, fê-lo pegar de estaca por outras paragens. Voltava à vila só nos verões, com a prole, a matar saudades. E quando soou a hora, teve que acompanhar, primeiro o pai e, mais tarde, a mãe, à sua última morada, nos tristes e sombrios dias das suas mortes.

Aquela tormenta de anos em Lisboa passou por António como uma brisa a dar na erva tenra dos lameiros à beira da ribeira; tão suave e ligeira que não se dava por ela a agitar as folhas de mansinho. O tempo fugiu-lhe debaixo dos pés, mais veloz que um raio a riscar o horizonte. Pouco a pouco tornou-se num homem maduro, o cabelo foi mudando paulatinamente para grisalho e os anos fizeram-no aproximar-se da idade de Manuel, o pai, quando se despedira da família para rumar a Lisboa, ao seu destino. Nunca quis ser rico porque o dinheiro ficava cá todo e na vida havia coisas mais importantes. E isso, pensando bem, era verdade, não era só retórica.
Tinha apenas o amparo da reforma, fruto de anos e anos de trabalho. Fora conseguida com o sacrifício da família de origem, longe do sol estuporado e quente, mas também afastado das frescas nascentes, a brotar da terra, onde bebia água de bruços; e distante da sombra fresca e reconfortante de uma árvore de grande copa.    
 Neste entrementes, sem o trabalho diário a que estava habituado e que lhe ocupava o espírito, António passou a refletir mais na vida do que até ali. O tempo continuava a passar por ele, impiedosamente, aos poucos, com pés de lã, a furtar-lhe a vida, o ladrão!  
E sucedeu que, não sabia muito bem porquê, parecia que lhe viera de novo a vontade de se sentar nos bancos da praça da sua vila. O apelo derradeiro de querer acabar os dias na terra que o vira crescer, a saudade ou o que quer que fosse, começaram a falar-lhe ao coração. Confessou-o à mulher que não se opôs; ela própria suportara tudo de idêntica forma. Lentamente, António foi-se habituando a aceitar a ideia de que, quando chegasse a hora, desejava, no mais íntimo de si, descansar o sono eterno no chão que lhe estava no âmago.
Os filhos achavam-se criados e arrumados. António e Arnaldina até já tinham os primeiros netos. E o mais difícil era separarem-se dos pequenos. Mas tudo se havia de arranjar. Os filhos se encarregariam de os levar de voltar à aldeia durante as férias escolares, coincidentes com as festas assinaladas.
Quando mal se precatou, estava a fazer as malas para rumar definitivamente aos velhos serros da infância. Aproveitou a época da primavera para o regresso e, em determinado dia de sol, ainda com alguns rudimentos da sua própria incredulidade, encontrou-se a descer da camioneta na paragem da vila, que em tempos o vira partir rumo ao futuro.
Tratou de se instalar com a mulher numa parte da casa do pai, Manuel, que lhe coubera por herança. E não passou muito tempo sem que também se surpreendesse a semear uns canteiros de alfaces, tomates e cebolas. Depois, viria a poda das árvores, de tesoura na mão, aos estalidos a cortas os talos e, a seguir, a plantação das batatas e das couves. Não lhe tinha perdido, de todo, o jeito! A vida era saudável, longe do bulício irritante da cidade, sem andar nas avenidas a inalar o fumo do trânsito que, entretanto, tinha multiplicado dez vezes! Fora essa agitação que um dia tanto o atraíra…!

Os anos, na vila, porém, mudaram a aparência das pessoas, das coisas e dos lugares. Desaparecera o corrupio das mulheres ao domingo, pelas ruas, de lenço na cabeça, filhos pequenos pela mão, a caminhar apressadas para a igreja, depois de tocar a última. Já não havia na praça os costumados magotes de rapazes feros, vigorosos, a falar com voz forte e timbrada. As tabernas, onde à saída da missa os homens se costumavam juntar a beber uns tintos e a falar de negócios, tinham fechado. A vila desertificara-se.  
Alguns idosos que sobravam, podiam ser encontrados à conversa, sentados como era hábito, nos bancos da praça, desnovelando reminiscências e revisitando o passado, porque quase nada mais lhes restava.        

Um dia, um filho do meu rapaz do meio, o meu neto, cruzou-se — ele próprio me relatou o episódio — com esse grupo de velhos, onde se encontrava o António, de quem venho dando relação.  
A mocidade escasseava. Os jovens, pela própria diferença etária, era evidente que tinham nascido muito antes do regresso do António, ainda recente. Diz-se que na aldeia todos se conhecem, mas a realidade da vila, desmentia esse saber popular. Pese embora não se assinalassem conflitos era, todavia, notório — ao invés de outro tempo — o desapego geracional, mormente devido ao êxodo do mundo rural. Era o que sucedia entre o meu neto e o António Assunção.
Era, porém, compreensível a carência e necessidade do contacto humano. Por isso, aqueles homens de aspeto outoniço, ávidos de conversa, ao verem passar um moço novo — e porque isso não era assaz frequente — procuravam entabular conversa, que era uma forma de matar o tempo, mas, sobretudo, de reanimar o ego e, por vezes, até, ocasião para algumas pilhérias.
Então, o António vendo o moço aproximar-se e, pensando interpretar a vontade coletiva, adiantou-se ao grupo e, com a curiosidade que lhe era peculiar, auscultou-o de alto abaixo. Pareceu-lhe, por momentos, poder entrever quem seriam os seus parentes; mas, não podendo afirmar, com certeza, de que família se tratava, pôs-se a tirá-lo à casta.  
— Olha lá, meu rapaz, diz-me cá, tu não és filho lá de cima do Idalino Justo das Quintas?!
O moço estacou perto daqueles homens de gaivas no rosto e cabelo branco e raro.
— Não senhor, não sou filho.  
— Não?! Então a quem pertences tu cá na vila?
— Sou da família do senhor Idalino Justo, mas não sou filho, sou neto! O meu pai, sim, é filho dele.
— Ah…! Não fazia ideia… Sim, eu às vezes...! Enfim, que diabo… pois… já passaram estes anos…! Com que então, neto!  
— Sim, senhor…
— Não hei de eu estar velho! Pelo teu ar, bem me parecia que pertencias à família. Conheci bem o teu avô. Éramos amigos, tínhamos o sangue na guelra e ainda fizemos por aí umas patifarias.  
— Já ouvi o meu avô falar de si. O senhor não é o António Picado?
— Eu mesmo! Então o teu avô já não quer descer cá abaixo para, ao menos, vir à missa?!  
— Não senhor. Por enquanto não vem, até ver se melhora. Vamos lá ver… Anda um bocado mal das pernas e cansa-se muito; vai-se entretendo por lá e segue a missa pela telefonia.
— Mal das pernas, hã! — ruminou António — Ora vão vendo! Rapazes mexidos e escorreitos como nós éramos! Tenho que passar lá por riba, por casa, para o ver.
— Pois, sim, senhor. Quando quiser.  
Algo se terá passado na cabeça daquele homem, porque os seus olhos cavos pareciam ter adquirido repentinamente um brilho mais cintilante. Depois, pareceu ter reprimido um suspiro, mas recompôs-se e volveu ao rapaz:
— Vai, moço, vai à tua vida! Estimei ver-te e dá um abraço ao teu avô.
— Sim senhor. Fique descansado.
O rapaz seguiu o seu caminho e os velhos, que tinham escutado a conversa, ficaram a vê-lo afastar-se, sem proferirem palavra, até que dobrou o cunhal de granito da Casa da Câmara e desapareceu. 

No entretanto, António continuava a tratar do bocadito da fazenda que tinha na vila. À tarde, aproveitava para fazer as suas digressões pela estrada e pelos caminhos de terreno direito, para desentorpecer as penas. Dava normalmente uma volta em redondo, sozinho, enquanto a mulher, principiava a migar as couves para cozinhar a sopa para a ceia.
Nesses passeios, por vezes, visitava o cemitério. Na sepultura simples de seus pais que fora adquirida pela família, constava uma singela lápide que ele e os irmãos, em tempos, mandaram lá colocar. Dizia apenas:   
“Aqui jaz Manuel Assunção e Maria José. Eterna saudade de seus filhos, noras e netos.”
Ali ficou sentado por uns instantes, murmurando algo não percetível. Depois, levantou-se para ir à sua vida. Tinha ainda que ir à horta, regar umas couves, antes do sol descer no horizonte.

            POST SCRIPTUM

Passados uns dias o meu amigo António Assunção, conhecido por Picado, sofreu uma macacoa qualquer que o pôs quase incapaz de se deslocar. Ficou ainda pior que eu. Coisas de velhos! Não chegou a ir visitar-me como prometera ao meu neto na conversa da praça. Em breve, o seu nome veio a ser acrescentado ao epitáfio daquela campa. E foi para que a sua história não se perdesse e caísse no esquecimento que eu, Idalino Justo, vim hoje aqui desfiar recordações e remoer pecados velhos.


(a) Arlindo de Carvalho, “Castelo Branco”.
Nota: História ficcionada, baseada em vivências de pessoas diversas; podem ter sido utilizados termos ou expressões regionais ou locais, não oficiais.

JOSÉ BARROSO

domingo, 19 de abril de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

 Basílio Leitão

Basílio Leitão nasceu no Casal da Serra, a 25 de abril de 1893. Era filho de José Leitão e Maria dos Santos, cultivadores.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de julho de 1913, e foi incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha em 13 de janeiro de 1914. Segundo a sua folha de matrícula, era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Foi vacinado.
Foi destacado para Angola, e embarcou no dia 11 de setembro de 1914, integrado na 1.ª Expedição que seguiu para aquela província ultramarina. Tinha o posto de soldado atirador de 3.ª classe. Desembarcou no porto de Moçâmedes, a 1 de outubro, seguindo depois para sul, a fim de reforçar a força militar que já se encontrava na fronteira daquele território, ameaçado pelas tentativas de ocupação alemã, a partir da Namíbia. 
Participou na ação do dia 18 de dezembro de 1914 contra os alemães, fazendo parte das tropas que ocuparam o vau de Caluéque. Regressou à metrópole, em 11 de agosto de 1915, e foi licenciado em 12 de dezembro.
Apresentou-se novamente em 16 de fevereiro de 1917, por ter sido convocado para serviço extraordinário. Foi destacado para Moçambique, e embarcou a 2 de julho (nesta altura já era casado) no contingente de reforço à 3ª expedição enviada para aquela província ultramarina. Regressou no dia 24 de outubro de 1918.
Condecorações:
·      Medalha comemorativa da campanha do exército português com a legenda: Angola 1914;
·      Medalha comemorativa das campanhas em Moçambique;
·      Medalha da Vitória.
·      Por o seu regimento ter sido condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª classe, ficou ao abrigo do art.º 43 do regulamento das Ordens Militares Portuguesas de 1919.

Família:
Basílio Leitão casou com Maria Inês, natural do Louriçal do Campo, no dia 21 de Outubro de 1915, após ter regressado de Angola, e tiveram nove (?) filhos: Tomás, António, José (faleceu com 14 anos), Maria Ascensão, João, Joaquim, Manuel, Maria do Céu e Francisco.
«O meu pai vinha muito doente, quando voltou da guerra, e por isso teve sempre muitas dificuldades em arranjar trabalho certo. O único ofício que teve foi o de sapateiro de tamancos, mas o que ganhava mal lhe dava para os gastos dele. O que nos valia era a minha mãe, que se fartava de trabalhar nos terços e por onde o apanhava, para arranjar qualquer coisa para matar a fome a tanto filho. E nós, mal podíamos, começávamos também logo a trabalhar: os mais novos a guardar as cabras de um rebanho que tínhamos a meias com outros vizinhos; depois, no campo, como jornaleiros, nos quintos e na azeitona. Foi uma vida muito difícil, a nossa!» (Testemunho do filho Manuel Leitão)
Basílio Leitão faleceu no dia 7 de Outubro de 1963. Tinha 70 anos de idade.

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Boletim agrícola

Água é o que não vai faltar neste Verão. As chuvas de abril têm sido abundantes e caem de mansinho, alimentando os lençóis de água subterrâneos.


O pior foram as cerejas. A semana mais chuvosa e fria, com neve na Gardunha, nos inícios(?) do mês, coincidiu com o período de plena floração das cerejeiras do Ribeiro Dom Bento. E neste momento já dá para avaliar os estragos: frutos ralos, um aqui, outro acolá.
Não terá sido igual em todo o lado. Por exemplo, no Caldeira, acantonado num ninho da encosta, tudo acontece uma semana antes e por isso os estragos não terão sido tantos. Mas nas encostas Norte da serra terá sido semelhante e por isso a produção deste ano será menor.

José Teodoro Prata

terça-feira, 14 de abril de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra


 António Simão de Matos


António Simão de Matos nasceu no Casal da Serra, a 8 de janeiro de 1892. Era filho de Simão de Matos, cultivador, e de Leonor Maria.
Assentou praça em Castelo Branco, a 12 de junho de 1912, e foi incorporado no Grupo de Baterias de Artilharia de Montanha. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.
Ficou pronto da instrução da recruta em 30 de maio de 1913, e foi licenciado no dia seguinte, indo domiciliar-se no Casal da Serra. 
Passou ao Regimento de Artilharia de Montanha, em 1 de novembro de 1913, e foi destacado para Moçambique, integrando a 1.ª Expedição enviada para aquela província ultramarina.
Embarcou no dia 11 de setembro de 1914, a bordo do navio inglês Durban Castle. Após mais de um mês de viagem chegou a Lourenço Marques e daí seguiu viagem para Porto Amélia, a norte de Moçambique. Embarcou de regresso à Metrópole, em 9 de novembro de 1915, e foi licenciado a 11 de março de 1916.
Foi novamente mobilizado para seguir para Moçambique, para onde partiu a 2 de Julho de 1917, fazendo parte do contingente de reforço à 3.ª Expedição que tinha saído de Lisboa em maio de 1916 e se encontrava bastante debilitada na sequência das baixas por morte, exaustão e doenças de que sofriam muitos militares que a integravam. Regressou à Metrópole no dia 22 de Janeiro de 1919.
Condecorações:
·      Medalha comemorativa das campanhas realizadas em Moçambique.
·      Medalha da Vitória.

Família:
António de Matos casou com Celeste da Conceição, no dia 24 de novembro de 1920, e tiveram 6 filhos, um dos quais faleceu com apenas dois anos de idade. Criaram:
1.    Maria Celeste de Matos Barroso, que casou com Francisco da Conceição Barroso e tiveram cinco filhos;
2.    Joaquim António de Matos, que casou com Maria de Jesus e tiveram dois filhos;
3.    Ana Celeste da Conceição, que casou com Manuel Gonçalves e tiveram um filho (mãe e filho foram assassinados em Maputo, Moçambique, onde viviam).
4.    José António Matos, que casou com Maria Josefa de Jesus Simão de Matos e tiveram dois filhos que chegaram à idade adulta;
5.    Luís António de Matos, que faleceu ainda jovem.

«As minhas primas e eu temos o mesmo nome, porque tanto os meus tios como o meu pai quiseram prestar homenagem à minha avó que faleceu em 1946, ainda muito nova. Assim, somos três primas todas chamadas Celeste!
O meu avô fez o serviço militar em Évora e depois foi mobilizado para ir para África, onde esteve duas vezes.
No fim da primeira incorporação, foram rendidos por uma outra incorporação e dois anos depois foram eles que renderam novamente os da segunda incorporação. Quando acabou a segunda incorporação do meu avô, também acabou a guerra. Contava que os oficiais não demonstraram grande alegria pelo fim da guerra, contrariamente aos soldados (provavelmente pelo fim de algumas vantagens que acabariam).
Um irmão mais novo do meu avô, de nome José de Matos, também esteve na guerra em Moçambique, na mesma altura e no mesmo lugar que o meu avô. Voltaram os dois com vida, infelizmente não chegaram a tempo de abraçar o pai deles, Simão de Matos, que faleceu antes do regresso dos filhos.
Conta o meu pai que o meu avô nunca foi muito de falar do tempo em que andou na Guerra, mas lembra-se de o ouvir dizer que no dia em que desembarcou em Lisboa, vindo de Moçambique, um homem chegou ao pé dele a pedir-lhe um cigarro. Enquanto o acendia, o tal homem perguntou-lhe se não gostaria de ir para a GNR, que, se quisesse, ele encarregava-se de o meter lá. A resposta do meu avô foi logo:
- Farto de fardas estou eu! O que quero é voltar para a minha terra o mais depressa possível, para matar saudades da minha família. 
Viveu sempre no Casal da Serra, a trabalhar no campo, mas gostava de viajar. Ainda foi uma vez a França, onde esteve três meses na casa do filho Joaquim.
Quando ele morreu, eu ainda era muito novinha e vivia com os meus pais em França, mas lembro-me bem dele. Era um homem bonito, andava sempre bem vestido e era muito meigo. Quando vínhamos de férias a Portugal, mimava-nos muito e ficava sempre a chorar quando abalávamos. Houve um ano em que ele ficou muito triste e não disse «Até pró ano», como costumava dizer. Achei estranho… Morreu passados uns meses e já não o voltámos a ver.» (Testemunho da neta Celeste Simão de Matos)

António Simão de Matos faleceu no dia 16 de janeiro de 1981. Tinha 89 anos.

(Pesquisa feita com a colaboração do filho José António Matos e da neta Celeste Matos)

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"