A ti’
Maria Santo — improvável heroína destes enredos — caminhava para lá da oitava
década!
Certa
tarde, quase ao crepúsculo da noitinha, encontrava-se sozinha sentada no poial
da porta de entrada da Casa da Serra. Uma porta que mandava balanço! Fora construída
com fortíssimas ombreiras e valente lintel, tudo em grandes blocos de granito
cortados no maciço da Gardunha. Depois de talhadas, estas pedras, pelo seu
porte, requeriam, para serem assentes no lugar, a força de meia dúzia de homens,
devidamente munidos de pistolos e pés-de-cabra.
Estava-se
num domingo de verão como tantos outros que tinham passado pela sua existência.
O dia aproximava-se do seu termo. Tanto quanto avançava para o epílogo a vida
desta corajosa mulher, lenta, mas inexoravelmente! Tinha corrido uma tormenta de
anos! Eram inenarráveis os trabalhos e canseiras a labutar de sol a sol para criar
a numerosa prole!
Como
todos nós, ela agira sempre, ao longo da vida, como se fosse eterna, como se
quisesse viver para sempre! Pois que a inconsciência do andar do tempo é,
afinal, o combustível da máquina do mundo. A pensar na morte nunca ninguém levantaria
um dedo, nem delinearia qualquer plano e o homem não passaria de recoletor. O
pior é que essa leviandade também provoca muita presunção no ser humano. A
sensação de imortalidade, enquanto respira saúde, leva-o, muitas vezes, aos
maiores desvarios!
Sobre isto,
ouviam-se, os antigos homens da Vila, que cavaqueavam e apreciavam o bom dichote
e a sábia opinião, fruto da prática da vivência acumulada. Necessário era
apenas que estivessem de maré favorável. Nestes ajuntamentos os homens matavam
o tempo que lhes restava. Já era pouco, mas, longe de o desperdiçarem,
enriqueciam-se mutuamente. Os jovens, esses, não estavam para os ouvir! Iam
muito distantes as épocas em que as assembleias dos Anciãos botavam lei! Tempos
em que os mais idosos eram considerados e respeitados pela comunidade, pela sua
experiência e saber; e não lançados em hospícios à espera do fim, como peças de
fraco préstimo! Os filhos deixaram de ter tempo para cuidar dos pais. São os
custos do progresso, onde a materialidade se antepõe ao amor, a economia supera
a política e o ser humano, em vez de se sobrepor à coisa, subordina-se-lhe! ‘Quo
vadis homini’?
Aqueles
velhos, ao tempo, porém, sentavam-se a um canto da Praça, num banco ou no muro
de granito, perto de uma pilastra, a conversar.
— Dai
graças a Deus por ainda caminhardes nesta vida…! — dizia pausadamente o Chequim do Pontão, abrindo as
hostilidades. ‘Chequim’ era uma corruptela de Joaquim! O linguajar não é um erro
do idioma, é antes a arte local do falar!
E
prosseguia:
— Enquanto
por aqui deambulardes, nem que seja por mais uns escassos dez anos, podereis ainda
dar volta a muita coisa…!
— Ora
adeus! — replicou o José Latoeiro, assim apelidado por ter sido essa a sua
profissão durante toda a vida. — Para nós, que estamos perto da morte, o que
são dez anos comparados com a eternidade que nos espera para breve? — questionava.
— Dez anos
para um vivo é um bom migalho de tempo, se pensarmos no prazo total da licença!
— avaliou o Jaime do Forno.
— Qual
licença? — interrogaram.
— Qual
há de ser? A que um homem tira para poder andar por cá! — reafirmou.
Riram.
Mas ele
continuou:
— O tempo para os vivos não é o mesmo que para
os mortos!
— Pois
não…! — acudiu, adiantando-se ao grupo, o Manuel Azenha, que morava no Moinho de
Cima.
— Então
aí tendes! Durante dez anos está-se com a família, convive-se com os filhos,
abraçam-se os netos e conversa-se com os amigos…! — prosseguiu Jaime. — As
pequenas coisas e não os grandes feitos, é que dão felicidade!
— Lá
nisso tens toda a razão. — admitiu o Carlos do Chão do Gaio.
— … Por
isso — concluiu o do Forno — como se está a ver, uma década para um vivo é
ainda muito tempo, ao passo que para um defunto não é nada!
— É verdade! Nunca
as tuas palavras foram tão certas! Começo a estar da tua banda, ó compadre —
concordou o João do Pinheiro, que tinha o seu rapaz do meio casado com a filha mais
nova do interlocutor.
— Quando
se morre, a roda do tempo deixa de girar. Entra-se na infinidade. Aí não há
tempo! Um dia tudo terminará! Loucos são os que julgam que nunca acabam…! —
filosofou o Julião da Farmácia.
— Está
claro! Muitos andam é distraídos…! — dissera ainda o Albertino da Rosa.
— Pois, com certeza! — responderam os outros.
E o palratório
da companhia continuava animado como se fosse um exercício de preparação para,
no fim, irem, em malta, molhar a palavra, bebendo a sossega na taberna da Viúva
ou do João Coxo, no meio do habitual relambório que a exaltação do tinto fazia crescer
ainda mais.
Mas alguns
espertalhões davam ares de intemporalidade: a trabalhar até desoras; a ir ao
babeiro só à meia-noite de sábado; sem tempo para nada e sempre sobejos, a
querer este mundo e o outro…! À bazófia desses, quem melhor respondia era o
padre Leal com os rasgos arrebatados das suas pregações.
Por
muitos anos, veio ele à Vila fazer os sermões da Semana Santa.
— Deus
lance sobre vós o Seu perdão, ingratas criaturas! Longo é o caminho que passa
pelo Além, mas curta é existência na Terra! — augurava!
Homem
de figura alta e larga, envergava batina negra, peça única, inteiriça, até aos
pés, ampla de mangas a tocar os pulsos, como um tribuno! Com a sua eloquência e
voz tonitruante, fazia chorar as pedras da calçada velha! As mulheres, essas,
desfaziam-se em pranto com a oratória do vigoroso padre, incisiva e certeira
nas suas prédicas, a apelar ao sentimento.
Na
piedosa procissão dos Passos, em cima do púlpito amovível de madeira na
Crucifixão do Calvário ou sobre o muro da Casa Cunha, no Encontro da Fonte
Velha, era daí que falava à multidão. Da carga dramática se encarregaria ele,
com o seu verbo, o tom enérgico e o gesto impetuoso e preciso. Habilidosamente,
fazia resvalar sempre a alocução para o tema dos mineiros debaixo do chão nas
minas da Panasqueira, onde trabalhou uma geração de homens da Vila; ou para o
dos soldados na guerra do Ultramar para onde era despejada a juventude do país!
E concretizava:
— Caros
irmãos, tende prudência na vossa vida! Tudo termina em breve! Ligeiros são os
dias, mesmo para aqueles que se julgam mais pegados às coisas terrenas! As
facilidades e prazeres efémeros do nosso quotidiano, são enganos a que preside
o Maligno. O Mundo, o Demónio e a Carne querem a vossa perdição! E a morte em
pecado mortal pode sobrevir a qualquer momento, a velhos ou novos, porque os
desígnios de Deus são insondáveis. Previnam-se e vigiem! A recompensa não pode
ser igual para todos, porque então Deus não seria justo! O prémio só pode ser
segundo a obra e a fé de cada um!
E mais
isto e mais aquilo, ali lançava o anátema sobre os ouvintes, como na época era
de uso, pobres e amedrontadas criaturas, rústicos campesinos, cuja face
encarquilhada pelo frio dos invernos, pendia ainda mais com o peso da culpa, mormente
daqueles que mais se sentiam relapsos com a Igreja.
Após o
discurso, ouvia-se um certo rumor, um pigarrear respeitoso de regularização do fôlego
que tinha estado um pouco em suspenso durante a dissertação; e alguns homens,
também tocados pelas palavras, sussurravam:
— Sim,
senhor…!
— Que
grande sermão!
— É um
grande pregador…!
— E que
timbre de voz!
Outros
e bons tempos!
A ti’
Maria Santo sempre fora, pois, uma mulher de ação! Um poço de génio e inquietude.
Danada para a vida! Nisso, superava o homem, o ti’ Bernardo Garrancho — o outro
inverosímil protagonista destas mal amanhadas linhas — que com ela jornadeava
pela existência fora, havia uma porrada de tempo! E cuja vida se encaminhava,
igualmente, para o seu término.
O tal que,
como noutras ocasiões já se aludiu, devia o nome ‘Garrancho’ ao facto de possuir
o indicador direito, torto; tinha ficado curvado para dentro, por mor de um acidente
com a tesoura de podar!
Aquilo lá
terá mexido com o osso e o tendão! Era o mais certo! A mulher é que lhe fizera
o tratamento. Depois de desinfetar o dedo com aguardente, enrolou-lhe um
paninho lavado, apertado quanto bastasse, por forma a estancar o sangue. Passadas
as dores, a ferida foi sarando, como sezoavam as mazelas dos animais! Era tudo carne!
Havia de se curar! Mas, por fim, o dedo quedou-se, ganhando a forma da posição
do curativo.
Deixá-lo!
O principal era que, quando recuperada, a mão pudesse continuar com suficiente
funcionalidade. Punha sempre uma tala, quando uma cabra partia uma perna; mas, se
fizesse o mesmo com o homem, o dedo em vez de torto, poderia ficar permanentemente
ereto
— Credo!
— enriçava-se ela!
Isso,
de facto, seria pior! Entre uma coisa e outra, o melhor era que solidificasse
curvado! Assim, já estava pronto para agarrar o cabo da enxada, o rabo do arado
ou outra qualquer ferramenta de trabalho…!
Gentes
devotas que, para santas só lhes faltava a auréola! Arcavam com os aleijões e
os estropiamentos com a mesma modéstia com que assumiam as fatalidades da sua
condição! Dentes cerrados perante a adversidade, exigiam apenas poder
trabalhar! Tinham, contudo, o seu desabafo:
— Ora,
uma destas, hã! — queixava-se Garrancho quando se viu sem aptidão para tratar
da vida, apenas com a mão esquerda boa, a poder laborar! — Fica um homem para
aqui sem poder fazer nada! — descoroçoava.
Estava
impossibilitado de executar alguns dos trabalhos mais simples; nem sequer podia
traçar a comida para a burra. Embora não se irritasse — que não era homem para
isso — incomodava-se por ver a mulher esforçada, obrigada a ajudar nos serviços
que não lhe estavam cometidos e muito para além das tarefas de casa que lhe
eram confiadas.
‘Do
mal, o menos’ — pensou o estoico serrano, como pensa qualquer português! — ‘podia
ser pior’!
É que,
mesmo assim, ainda podia levar as cabras para o mato. Com o cajado de
marmeleiro de dois metros de comprimento na mão esquerda, podia guardá-las, auxiliado
pelo Tejo, o cão! Além disso, falava com as cabras e dizia as palavras habituais
de incentivo ou retração do rebanho, conforme o que mais lhe conviesse; nunca é
fácil lidar com um coletivo mesmo sendo — ou por ser — de animais! Ponto era,
porém, que o controlasse.
— Ai o
raio parta as cabras e mais o diabo! Vamos lá! — e elas avançavam. Mas também podia
falar noutro tom, sempre com voz firme:
— Alto
aí…! Eh! lambisqueiras! Quem é que vos mandou passar para lá do marco da
estrema?!
Fazia
um gesto com o varapau para meter medo, ao mesmo tempo que, por suas próprias e
boas artes labiais, lançava um agudo assobio — zííííífff…! — a cortar os ares. O
som estridente ecoava pelas redondezas, fazendo levantar num voo cavo e
uníssono, todos à uma, o bando de pardais que debicava o rolheiro do centeio que
aguardava a malha perto da eira.
O rebanho
estacava assustadiço, a perscrutar o dono; e ele dava-lhe nova voz de comando:
— Rodem
lá para trás que isto aqui não é vosso!
E elas
obedeciam.
Com a
mão do homem empanada, a mulher sempre haveria de fazer certas tarefas
inadiáveis, sob pena de a vida deles, tal como estava organizada, se tornar
incomportável. Os filhos, já casados, nem sempre calhava estarem disponíveis
para ajudar. Em certos anos, nas alturas de aperto, pelas malhas ou pela
colheita da azeitona, até já tinham trazido um ou dois homens a trabalhar por
dia; podia ser a seco ou incluir o jantar ao meio-dia. Comia-se do que havia: a
boa sopa de feijão, batata e couve, com um pouco de massa, onde era cozido um
bocado de toucinho da salgadeira que servia de conduto. Cada um punha uma boa talhada
em cima que uma grande fatia de broa e iam manobrando a navalha; cortavam
pequenos pedaços, ora de uma, ora de outra e metiam na boca, saboreando
pausadamente a refeição e conversando um pouco. Acompanhavam com azeitonas e
emborcavam um ou dois copos de tinto. Comiam fruta da época da fazenda.
— O
descanso está feito e o corpo refeito. Estais comidos e bebidos! Ide à vida! —
dizia Garrancho incentivando-os ao trabalho! E eles lá iam, às vezes com um
gesto a adivinhar uma pontinha de preguiça, a indiciar que os corpos queriam
ainda permanecer na modorra por mais algum tempo.
Mas,
bem, fora dessas épocas, a ti’ Maria Santo, enquanto o homem não recuperava por
completo, ia ordenhando as cabras. Quando havia cabritos pequenos, era só
ordenhada uma teta a cada cabra parida; mesmo assim, com o sentido nos filhos, elas
encolhiam parte do leite.
— Andem
lá, minhas doidas, não se façam rogadas; têm aí muito leitinho para os meninos!
— assim falava ela para as chibas, passando-lhes a mão pelo lombo para as descontrair
e melhor tirar o precioso líquido proteico, tão necessário para o almoço, logo
pela manhã cedo, como para manutenção da queijaria.
Os
cabritos tinham que se contentar com o resto do amojo; no fim, apartava-os para
o chiqueiro. Punha na manjedoura da burra os caneirões e a palha, ainda que sem
serem traçados; chegava o feno ao comedouro das cabras, na loja, e dava de
comer aos outros vivos: porcos, galinhas e coelhos. Fazia ainda as regas e
outros trabalhos menos pesados. Mulher piedosa de ‘antes crer que conhecer’, estava sempre pronta a compreender os
excessos pedidos pela dura existência!
— Valha-nos
Deus, valha, valha, porque Ele não deixa nada ao acaso! — dizia para o ti’
Bernardo. — O que se perde em sofrimento, ganha-se em redenção!
Ela era
mais baixa de compleição que o homem. Ele, de boa estatura corporal, mas tranquilo
e com uma alma a condizer! A sua quietude não lhe tirava, porém, a afoiteza e a
ocasião de levantar a voz quando necessário; não andava ali a papar moscas! Qualidades
que lhe vinham do tempo em que teve que conter os filhos — que nem tanto as
filhas! — mocetões encorpados, quando estes ainda tinham demasiado sangue na
guelra.
A sua Casa
da Vila batia, lá atrás, cozinha com cozinha, com a do Chico Cigano. E Bernardo
apercebia-se, à noite, da ladainha do patriarca quando este tentava, a custo, indagar
do cerne das discussões de família, bradando, alto e bom som, em castelhano:
— ‘Que te passa’?!
Tanta vez
o ti’ Bernardo ouviu o vizinho, que começou, ele mesmo, a repetir, quando se
altercava com os filhos:
— ‘Que te passa’?!
Como
ouvia ao amigo Cigano.
A
expressão, dita assim, tal e qual, em língua estrangeira, fazia estacar a
vozearia e passou a impor o respeito, quer numa, quer na outra casa!
Garrancho
seguia depois com a descompostura do costume.
— Quem
não tem olhos que os abra! Orelha no ar, hã! Não tomem caminho não…! —
advertia. — Aquele que bem fizer a cama, nela se deita! — concluía ainda, em
jeito de aviso, para os suster que, naquelas idades, alguns começavam a querer
trepar e mandar mais que o pai.
Mas ele
admoestava-os:
— Ato
lá! Aonde é que já chegámos? — eles quedavam por respeito. Caso contrário,
mesmo já taludos, podia ser o cabo dos trabalhos. E insistia:
— Debaixo
do meu teto mando eu! Cai-te uma orelhada na cara que te viro para o outro lado…!
— intimidava.
Os
rapagões até tinham arcaboiço para a suportar. Mas, se isso acontecesse —
tem-te senão levas mais! — o melhor era calar e ficar com ela!
E assim
alcançava Garrancho a ordem e o equilíbrio necessário à paz do lar.
De
maneiras que, ela e ele, complementavam-se! Tirante aquela época, um pouco
atribulada, em que teve que se impor a educar a progenitura, lá caminhavam
pacificamente e sem alaridos. Gente muito palradora desassossega o espírito; e no
caos ninguém sabe onde fica o norte. Por isso, o barco de muitos, na Vila, andava
frequentemente à deriva. Mas, graças se dessem ao Santíssimo Sacramento, o
mesmo não acontecia com o seu arranjinho comum, para o que muito contribuía a
firmeza e serenidade do timoneiro.
Tratava-se
de um casal com certos haveres em terras, gados e lavouras, como algumas vezes também
se tem notado. Situar-se-iam um bocado acima da maioria, porque tinham, de seu,
mais do que a média dos pequenos agricultores de subsistência. Chegaram — calcule-se
bem! — a ser rendeiros do Casal do Ayres Raposo, homem de avultados meios que,
em posses, ficaria logo abaixo das casas mais nobres da Vila. Ali lhes havia
nascido a maior parte da vasta descendência, homens e mulheres! Acabado este arrendamento,
rumaram a ocupar a sua propriedade da Serra, onde agora se encontravam, a que
acrescia o cultivo de outros pedaços nos Aldeões e na Fonte da Portela.
‘Cada
um quere-se com as suas coisas.’ — ruminava Garrancho para a mulher.
Quando
decidiram ir tratar o que era seu, levaram consigo dois rebanhos: o dos filhos
e o das cabras; e ainda, como é bom de ver, todos os atafais precisos para a
vida da lavoura.
Como se
entrevê, Garrancho, nestas andanças, governava bem a sua vida. No decorrer da
sua longa experiência de homem do campo, também aprendera a ajuizar o tempo na
roda das estações do ano; fazia-o quase tão acertadamente como o Almanaque de
S. Miguel previa, de acordo com a sabedoria dos entendidos, as luas e os
eclipses! Se, ao pôr-do-sol, via uma orla de nuvens escuras e grossas sobre a imponente
serra do Ingarnal, lá longe, a poente, opinava em conferência com os vizinhos, em
certos dias, à porta da Casa da Vila, quando todos estavam a regressar das
fazendas:
— Ó
rapazes, estais a ver além aquela barda? Se ela fecha cá para o nosso lado, amanhã
temos chuva! Assim eu tivesse a certeza de entrar no reino dos eleitos!
Lá cantava
o bardo ou vate da Gardunha, inspirado noutro homem de sabedoria popular:
Conhecia o passado,
Previa o futuro,
E tinha vistas largas… (a)
Desse
mesmo dom de vaticínio gozava Garrancho! Com efeito, aquele fenómeno
meteorológico das nuvens, começava a aparecer por volta do fim do verão, com os
primeiros indícios do tempo incerto, quando se verificava o equinócio de
setembro e estava prestes a entrar o outono, ali pela festa dos anjos guardiães,
Miguel, Rafael e Gabriel.
Era a
época do termo do ciclo dos frutos de verão e dos cultivos de regadio, batatas
e milho. Faziam-se as contas do ano agrícola, terminavam alguns arrendamentos
rurais e celebravam-se outros e um ciclo, igualmente, findava. Assim aconteceu
no Casal do Ayres Raposo. Doravante os dois velhos voltaram a empossar-se dos
teres e haveres de que eram senhorios. Um crepúsculo mais ocorrera, para que outro
dia pudesse ressurgir.
A vida,
acreditavam eles, havia de continuar.
(a) Fernando Pereira, Tobias
Nota: neste texto podem ter sido usadas
palavras ou expressões do léxico local ou regional que não constam dos
dicionários oficiais.
JOSÉ BARROSO