Desde a Páscoa, na
primavera, quando o sol começava a aparecer e as flores a desabrochar, que as
populações entravam a tanger música e a rebentar foguetes por todo o lado, em
festas e festinhas, em honra de protetores e oragos por terras e terriolas.
E assim continuava por todo
o verão.
Por alturas do terceiro
sábado do mês de setembro, quando estava à porta o São Miguel, terminava mais
um ciclo das colheitas agrícolas.
O tempo, esse insensível — ‘que
furtava a vida a todo o vivente’, como asseverava João Jerónimo, por
corruptela, João ‘Jerolme’ — fruía,
porque a Terra não parava no seu perpétuo movimento.
Estava prestes a entrar o
outono.
Maria Santo e Bernardo
Garrancho, o casal de velhos de que vimos dando razão, tinham terminado o longo
arrendamento no Casal do Ayres Raposo para regressar ao cultivo dos seus
haveres que ainda eram coisa que se visse.
Nessa época dava-se a grande
feira de ano.
Na Vila, a Praça e o largo
da Fonte Velha enchiam-se de tendeiros.
Tudo mexia.
Abundavam as barracas de mercadores
de roupa e calçado para o inverno seguinte que se aproximava. Muitos, porém, preferiam
mandar fazer as botas, os sapatos e os fatos, por medida, aos artistas da
terra!
Todos ganhavam.
Transacionavam-se as loiças
onde os noivos compravam o acervo da futura casa e vendia-se tudo o que fosse
ferramenta agrícola. O Alma Grande da Póvoa, sorriso apalermado, bonomia de
‘homem grande, corpo de palha’, exibia pequenos utensílios caseiros e
apetrechos vários, como costis, ratoeiras, armelas ou joeiras.
O Xis trazia os matraquilhos
e via-se em apuros com a juventude de sangue na guelra, que dava azo à sua exaltação
por entre o barulho do mecanismo das mesas e a algazarra do jogo!
Vinham os homens dos
baloiços.
O Moisés ocupava, havia muitos
anos, o seu espaço, a vender ouro!
Logo pela manhã, uma intensa algazarra na zona
destinada aos negociantes de gado, a vozearia dos homens confundia-se com os
berros das cabras, o zurrar dos burros e o grunhir dos porcos!
— Quanto quer pelo bacorinho?
— perguntou um homem a um feirante que vendia uma ninhada de leitões.
— Olhe este que belo! São duas
notas! — disse, trazendo um dos pequenos animais.
— Huumm … Isso é caro como o
lume! E o berrelho parece um pouco ‘incanequedo’!
— Qual o quê?! É mais saudável
que um pero! É da raça da mãe! Olhe para aquela estampa! Ver um animal daqueles,
é um louvar a Deus! — e apontava para a porca parideira deitada, com os filhos
agarrados às tetas. — Só de uma vez, da última barriga, teve doze! Leve o
porquinho que vai bem servido. Assim Santo António lho projeta que para tudo é
preciso ter sorte — justificava o vendedor.
Os ciganos também marcavam
presença com utilidades diversas, mas sobretudo com o seu tradicional negócio
dos jericos!
— Quanto dá pelo ‘burranco’, amigo? — perguntou o cigano a
um passante que olhava para um jumento que ele tinha à venda. O homem hesitou.
— O burro é muito grande…!
— Ai…! Ora vejam lá, a
desfazer na mercadoria…! — volveu o cigano.
— Não é isso, criatura! É
que, não tenho que dar a fazer a um burro desse tamanho! — justificou o cliente
meio desapontado.
— Ai…! Então, ‘sinhor’, não se zangue! Se em Portugal
nos zangássemos por causa dos asnos, andava metade do país zangada com a outra
metade. O que mais para aí há, são burros, ‘sinhor’!
Houve um certo gargalhar na
roda dos ouvintes. Mas, o zíngaro voltou à liça, apaziguando os ânimos, pois
não queria perder o potencial comprador:
— Leve lá o animal, ‘sinhor’, que está aqui uma linda besta
para todo o serviço! Nesta feira não encontra segundo. Veja bem que tanto os
joelhos dianteiros com os traseiros não se tocam; olhe para o peito largo e
forçudo; aprecie os possantes quartos traseiros; deite bem os olhos por estes
costados vigorosos; um animal sempre de olho vivo e orelhas em pé; dentição
ainda nova…
O homem interrompeu-o para
reincidir:
— O burro é muito grande...!
Come muito…! — defendia-se.
— Ai…! Essa gora…! Ai…! Não
come não ‘sinhor’! Só come o ‘qui li’ dão…!
O homem desinteressara-se do
negócio e afastava-se do local.
— Ai… Venha cá, ‘sinhor’…! — insistia de longe o cigano.
— Ai…! Dê lá uma palavra; quanto vale para si a cavalgadura?
E mais assim e mais assado.
Não obteve resposta. Ainda
não fora desta que o freguês se decidira a comprar a alimária.
As famílias desta etnia, não
eram apenas negociantes. Saltimbancos das estradas, deambulavam pela Vila por
períodos mais ou menos longos, ficando quase sempre aboletados no barracão do
ti’ António Dias. Alguns traziam mesmo a comédia com atores, palhaços e
equilibristas. Vinham com usos e costumes diferentes. Se um animal, porco ou
galinha, morria sem se saber porquê, apressavam-se a perguntar:
— Ai…! Onde enterrou
vossemecê o porquinho?
— Na horta — respondiam. —
Mas olhe que o animal morreu de doença desconhecida… talvez uma febre. Não se deve
comer!
— Ai… ‘sinhor’, não se incomode que nenhum de nós morre por causa disso!
Nada os demovia. Averiguavam
do local onde tinha sido inumado o animal, desenterravam-no e comiam-no assado
no acampamento, em festa!
À enorme feira que nesse tempo
tinha lugar, seguiam-se as Festas de Verão, que se alargavam por três ou quatro
dias! Tão rijas, que competiam com as maiores das redondezas! Um colossal
poderio de fogo que chegava, por vezes, às cento e vinte dúzias de foguetes lançados
só na alvorada do dia principal da festa.
— Este ano vai haver uma
alvorada que alto lá com ela! — gabavam-se os festeiros da comissão daquele
ano, com o juiz à cabeça. — Havemos de fazer ver aos da festa passada e aos do Sobral!
Vinham dois fogueteiros de
Oleiros que se propunham fazer detonar continuadamente todos os foguetes, a
dar-lhes mecha e a atirá-los para a atmosfera, sem descanso!
Com os primeiros estouros
viam-se passar, pelo ar, revoadas de pássaros, espavoridos, a procurar outras
paragens; os cães ladravam àquela inusitada manhã barulhenta; as galinhas
esparvadiças cacarejavam nos galinheiros inquietas, à toa. Alvoroçavam-se as
gentes que acorriam ao Quintalinho para ver lançar e estalar o fogo!
Por duas horas, pum! pum!
pum! pum! Uma singular forma de homenagear o Senhor Santo Cristo, a quem a Vila
e arredores prestavam uma devoção em peso!
Aquilo já se metia pelos
ouvidos dentro. Os engenhos explosivos pirotécnicos eram para todos os gostos:
de estralejar, de repetição, de parada e resposta e de tiro. A descarga
encerrava, como era costume, com o lançamento de vinte e um morteiros, à guisa
das celebrações militares!
Por terem lugar pouco antes
do início do outono, às vezes, os festejos, eram já molhados pelo tempo…! Por
esses caminhos estuporados, com as primeiras chuvadas ou, todavia, repletos de poalha,
com o sol ainda a pino, as gentes das vizinhanças, vinham descalças ou com
sapatos velhos para poupar os novos, que só enfiavam nos pés à entrada da Vila!
A fé inquebrantável fazia-as convergir para a Praça, onde se erigia a Igreja e
tinham lugar os atos mais solenes. Aí se situava também o centro nevrálgico das
Festas e se organizavam os bailes, regando-se o terreiro para não levantar pó!
Entre música e venda de ofertas, apregoava-se, a espaços, pelos potentes
altifalantes:
— Aparelhagem sonora, Silva
Tinalhas…! Prefira sempre o nosso serviço! É mais caro, mas é melhor…!
Verão após verão, festas
após festas, assim se foram passando anos e mais anos; e sobre estes anos,
ainda outros. A grande maioria das gentes vivia das terras, da lavoura. Foi por
mor desse tempo e à custa de muito mourejar que, tisnadas pelo sol ou
encarquilhadas pelo frio, as pessoas foram ganhando grossas rugas, como as que
se viam nas faces da ti’ Maria Santo e do ti’ Bernardo Garrancho que durante
todo o estio habitavam a sua Casa da Serra, como noutro passo já se deu nota.
Por todo esse período, como
era habitual, os dois iam assistir à eucaristia dominical ao Casal da Serra,
que ficava mais perto da sua fazenda e onde o padre Tomás se deslocava na sua
égua, a celebrar, logo pela manhã.
No estio, os dias eram
enormes!
Depois da missa, jantavam
por volta do meio-dia velho. Da parte da tarde, depois de deixar o gado
acomodado, Garrancho costumava descer à Vila para se abastecer dos produtos que
as suas terras não produziam — arroz, massa, açúcar ou café — previamente comprados
nos lojistas da Baixa e armazenados na Casa da Vila.
— Daqui até à noite é ainda
um dia de inverno! Ó Maria, vou-me até lá abaixo buscar a mercearia — dizia
para a mulher. Ela já sabia do que se tratava.
E punha-se a andar, a pé,
até à Vila, como era costume, pelo caminho mais curto, deixando a ti’ Maria
Santo sozinha na serra. Uma vereda que só admitia a passagem de pessoas ou animais,
em fila indiana. Apenas transitava pela estrada da Cascalheira com a burra
carregada. Esta via era mais larga mas, viajar por lá, era muito mais longe!
Tirante, pois, essas situações especiais, vinha pela abrupta vereda abaixo,
pela encosta, seguindo o trilho habitual. Passava pelas leiras do tio Augusto, ao
lado da casa do Santinho e do Vermelho, fazendas e pinhais, bairro do Caldeira,
ribeiro do Marzelo, Corredoura e chegava ao Cimo de Vila! Uma estirada! E de
piso ruim! Quando acabava aquela via-sacra, desafrontava-se, sozinho, em voz
alta:
— Raios parta o caminho!
Coisa mais endemoninhada que isto é raro encontrar-se! Um homem escorrega, apanha
umas esfoladelas nas pernas e levanta-se! Que remédio! Que havemos de fazer? —
dizia a si próprio, com entono de lamentação.
Em chegando ao cimo do povo,
dirigia-se logo à sua Casa da Vila.
A habitação era grande, de
acordo com os cabedais da família. O prédio fora construído em duas diferentes
épocas, uma parte antiga outra mais recente. Estava cheia do que a terra dava.
Na sala velha havia três grandes arcazes de semente de trigo, centeio e milho.
Tirante a ração para o gado e a seleção da semente para o ano seguinte, o grão
destinava-se à azenha para fazer a farinha que governava de pão a família no
correr do ano. Na frescura do piso térreo, na adega, o grande pipo do vinho que
chegava para dar e vender; na loja, as talhas de azeite, o bom porco na salgadeira,
a rica azeitona nos escoureiros e os queijos nas tábuas a curar. No forro, as
leguminosas secas, as castanhas, as batatas e as maçãs que duravam até março. Tudo
devidamente acondicionado para evitar a bicharada.
Era uma edificação
tradicional, robusta. As paredes tinham sido feitas em pedra predominantemente
de granito de cantaria. A armação do telhado, o soalho e a varanda que dava
para o casarão, espaço interior a céu aberto, era tudo em madeira de castanheiro,
cortado em vigorosas sonaves, caibros e tábuas robustas, bem aparelhadas por
considerados artistas! Parecia desafiar o tempo!
— Ó cachopos — dizia Bernardo
que, pela sua experiência, bem conhecia os materiais usados na construção — se
quereis fazer uma casa, ponde-lhe castanho que, ao seco, é como o ferro! Dura
várias vidas!
E, com efeito, assim
era.
Após meter num saco de serapilheira
os produtos de que necessitava, punha-o às costas. Dava depois uma volta em
redondo pela Baixa da Vila, na zona das vendas. Aí encontrava, inevitavelmente,
alguns dos habituais conversadores de domingo e ainda havia tempo para
confraternizar um pouco e beber alguns meios quartilhos. Falavam de negócios, das
colheitas e do tempo. Como é que ia a vida, como é não ia. Com o copito a
acompanhar, esses eram momentos propícios para afirmar as palavras de ordem com
os velhos amigos. Numa sociedade esotérica, como são todas as tertúlias, os
vocábulos solenemente pronunciados têm o seu significado próprio que revela saber,
humor e pode ser verrinoso quanto baste.
— Garrancho…! — pronunciava
Bernardo, em voz alta, assim que assomava à porta da taberna! ‘Garrancho’ era o
nome por que o conheciam na companha por ter o indicador direito, torto, como
noutra ocasião já se referiu. — … É para arrebanhar! — concluía, em jeito irónico.
Com isto queria apenas dizer
que não deixava por mãos alheias o dever de tratar do seu arranjinho, da sua
vida, procurando angariar o melhor que ela lhe oferecesse.
Alvoroçava-se a turba no
interior.
— O tempo! — respondia, de entre
a malta, o João Jerónimo, por corruptela, João ‘Jerolme’, outro que pertencia ao habitual ajuntamento dos domingos.
Era a sua palavra.
O tempo — entendia ele — era
o grande mestre que tudo dá e tudo tira e que, por fim, arrancará,
inexoravelmente, a todos, a própria vida; e contra o qual não se podia lutar,
restando, perante ele, apenas a resignação.
Por sua vez, o ti’ Francisco
do Casal, clamava do outro lado com voz forte:
— Ou me eu engano!
Nenhum homem pode ter em si
toda a sabedoria! Humilde é aquele que aceita os seus limites.
— Ou me eu engano! — repetia
sempre que iniciava uma conversa.
Reconhecer os seus erros e
admitir enganar-se diz muito do caráter de um homem experimentado e sério.
Assim era ele.
Mas, encostado ao balcão da
taberna, estava ainda, entre muitos, António Racha — outro dos habituais convivas,
que lançou o seu grito:
— Se for preciso racha-se já
um diabo! — bradava, desafiador; razão por que era conhecido no grupo por aquele
nome.
Mas, lá rachar, não rachava nada!
Emborcava era vários copos de bagaceira, a sua bebida de eleição, logo de manhã
cedo. Se a pomada fosse macia e forte — dizia quem o conhecia — ingeria-a como
à água na Fonte Velha! Era preado por aguardente! Ah! homem excomungado! Não há
caruncho que lhe entre!
Assim passeava ele, com
altivez, os seus 90, rijos e feros!
E a estroinice na taberna do
grupo dos afeiçoados conterrâneos, continuava assim, ainda por um bom naco de
tempo, à boca da noite.
Mas, bom, mais uns dichotes
e virotes, mais uma rodada e estava feita a sossega; e Garrancho lá retornava serra
acima, com o saco da mercearia ao ombro.
Era já noitinha, ao
crepúsculo, quando deixou a assembleia da baiuca. Tinha muito que andar até ao
alto da serra da Gardunha, onde ele e a mulher residiam regularmente até ao
começo do tempo das chuvas; e onde ela o esperava naquela noite, desde que
estivera sentada à porta, como noutra circunstância já foi relatado.
Passaram-se anos e anos a
fazer este trajeto, serra abaixo, serra acima. Fizera estas voltas durante
décadas! Este era apenas mais um desses domingos de calor em que Garrancho
tinha ido à Vila fazer o habitual recado. Porém, a idade agora já não era a
mesma. Enquanto se é novo é outra coisa.
Principiava a cair sobre a
povoação a penumbra do lusco-fusco e sentia-se algum frescor agradável àquela
hora.
Mas passar dos oitenta pesava
muito!
O tempo não perdoava.
Os vultos das gentes começavam
a andar penosamente, acometendo devagar contra o escuro; devagar, mas com a
mesma obstinação com que Cristo caminhou para o Gólgota, para nos remir das
enfermidades! Os transeuntes já não se divisavam uns aos outros, por mor da
proximidade do fim do dia.
— Boa noite! — saudavam,
surdamente os passantes. Os poucos candeeiros de querosene da iluminação
pública, colocados estrategicamente às esquinas, que deveriam ser acesos todos
os dias ao escurecer, há muito que não funcionavam!
— Deus o guarde! — respondia
Garrancho sem abrandar o passo. — Que caminhos do diacho temos nós que
palmilhar neste mundo para ganhar a côdea! — remoía com os seus botões.
Mas lembrou-se da
perseverança da mulher perante as contrariedades: ‘Deus não deixa nada ao acaso’!
Para a frente é que era o
caminho!
A ti’ Maria Santo, com o cair da noite, tinha
deixado o poial da porta e recolhera-se ao interior da casa, encontrando-se a
preparar a ceia, à espera que o homem chegasse. Eram horas do demo pelas quais
ela já tinha passado muitas vezes, inquietada. Sabia lá o que podia acontecer
ao homem pelos caminhos! Muito embora ele os conhecesse como a palma da mão,
pois que os calcorreava desde criança! Mas, para um homem, a morte é certa e a
hora incerta!
Como era costume no verão, continuavam
as festas por muitas terras ali à volta. E calhou a ser, nesse domingo, a festa
de ano do Casal da Serra. Alguns cachopos — seriam talvez uns seis ou sete — iam
subindo àquele lugar, à procura de divertimento e — quem podia saber? — talvez de
algum amor para a vida. Seguiam pelo mesmo trilho palmilhado pelo intrépido velho,
montanha arriba.
Mais ou menos a meio do
caminho deram, justamente, com ele, por cima do Caldeira, mas já em plena serra.
A ti’ Maria devia estar aflita. E não era a primeira vez.
A noite era jovem, mas a lua-cheia
de agosto levantara-se, redonda, grandiosa, às primeiras horas da obscuridade,
a lançar a sua claridade branca e fria sobre a terra, na noite límpida. Mas,
como numa ilusão de amantes, a sua bela luz, não deixa ver com nitidez a
realidade! Embora, como bem se compreende, para aqueles rapazes novos tal luminosidade
bastasse!
O octogenário tinha perdido
muita da sua visão. Para mais, bebera o seu copito na reunião da taberna.
Quando o interrogaram sobre
a razão por que se encontrava ali, ele, que mal já caminhava, apenas respondeu:
— Eu não vejo!
É certo que tinha
permanecido na taberna da Vila com a noite já a avançar! Mas a carência de sua
visão, não podia ser apenas a falta de claridade. Não havia dúvida: o problema
estava na incapacidade dos seus olhos. Era esta que mais o afetava. Tinham os
jovens que pensar na forma de o levar até ao alto, à Casa da Serra.
Sendo ele um homem
encorpado, dois rapazes cruzaram as mãos a fazer de cadeirinha e sentaram-no;
lá o levaram por 20 metros através daquele caminho de Cristo. Depois, revezavam-se
e outros dois cruzavam as mãos para o levar mais 20 metros.
Por fim e, a muito custo, alcançaram
o seu destino e deixaram-no entregue à ti’ Maria Santo, devidamente acomodado e
sentado num banco junto à lareira, parecendo ter recobrado algum conforto. Ela
se encarregou de lhe pôr a ceia sobre a pequena mesa e de o encaminhar depois
para o quarto improvisado, onde ficou deitado.
Levantou-se pela manhã. Com
o novo dia de sol e com o cérebro porventura limpo de alguma gota de álcool
proveniente de um ou outro copito do dia anterior, pareceu ter recuperado
alguma visão. Não voltou, porém, a trabalhar como dantes; aquele episódio tinha
sido o sinal iniludível da velhice!
— Já não me sinto capaz de
fazer nada! — lamentava-se com a voz fraca e entrecortada.
Notório era que não tinha a
energia de outrora; foi esmorecendo. O casal, ele mais, ela menos, achava-se bastante
acabado! Alguns dias depois, os dois velhos resolveram descer, a custo, o
trilho da serra e vieram instalar-se definitivamente na Casa da Vila, apesar de
ainda não ter acabado o estio, estação até ao fim da qual eles, habitualmente,
se mantinham no seu retiro da casa da fazenda, lá em riba.
Os filhos e netos tomaram
conta de animais e terras que constituíram durante décadas o seu modo de vida.
Garrancho pela sua própria
condição de homem cansado e, apesar de tratado com desvelo pela mulher, não
mais largou a cama. Sentia-se cada vez mais fraco.
Não demorou muito tempo,
entregou a alma ao Criador, na paz do seu lar, deixando um vazio terrível na
alma da mulher.
E ela, depois de alguns
anos, sem a presença daquele homem que desde sempre constituíra o alento e o
sentido da sua vida, foi-se-lhe juntar nas mesmas condições de sossego, no seio
da vasta família.
O tempo, esse artista
indolente, tinha conseguido os seus intentos como pressagiara João ‘Jerolme’! Acabaram a vida, neste mundo,
para sempre! Mas não sem antes terem combinado, aquando da morte dele — por uma
força inabalável em que ambos acreditavam — que um dia se voltariam a
encontrar!
Mais um crepúsculo teve
lugar na longa vida do casal. Este, porém, ao contrário de todos outros, tinha
sido o último.
Nota:
neste texto podem ter sido usadas palavras ou expressões do léxico local ou
regional que não constam dos dicionários oficiais.
JOSÉ
BARROSO