Lembro-te mãe:
Da
tua mão fresca na minha testa, engolia com esforço o remédio que me davas para melhorar.
Pedia-te
colo sempre que te apanhava distraída.
Bebia
o leite das cabrinhas com café e pão, que me preparavas antes de ir para a
escola.
Procurava-te à saída da missa, no emaranhado de saias a tocar o chão de terra batida, depois ia com as manas à taberna ou ao café da senhora Tomázia comprar rebuçados se tínhamos alguns tostões, era domingo.
Ouvia-te
chamar por mim e ignorava, em silêncio, empoleirada nas figueiras e
abrunheiros.
Davas-me
um puxão de orelhas quando era preciso; ficava a chorar quando era castigada e tinha
que parar por me ignorares, castigo é castigo.
Era
preciso ir à água, apanhar erva para os animais, abrir as águas para a rega -
levantem-se que vem lá o calor!
Aquecia-me
na lareira, com o cheiro das samarras de eucalipto, comia batatas fritas,
sentada no banco de madeira, os olhos no lume.
Rezava
contigo e com a família o terço e depois abençoavas todos antes de irmos para a
cama.
No dia da matança do porco dizias - hoje é a Tina que vai apular o sangue – não mãe por favor, escondia-me debaixo da cama, tu chamavas mas eu não ia, ias tu. E já tinhas o lume aceso com muitas panelas em volta, o pequeno almoço dos homens que estão a chegar e tinhas que ir, sempre tu para tudo. Daquelas panelas saía um almoço delicioso, que comíamos com toda a família reunida, a boa sopa de feijão, o arroz de frango, o feijão com vinagre, as ervas, o seventre com a batata cozida.
Depois
era o lavar das tripas no ribeiro que ia a transbordar, os enchidos feitos com
a ajuda das tias, tuas irmãs e cunhadas do casal, uma latada cheia por cima da
lareira, que cheirinho bom!
Ia
à mercearia do sr. Joaquim Boas Noites ao pé da praça, comprar o que me
mandavas, onde pagavas sempre ao final do mês, a mercearia empacotada nos
cartuchos de papel, a chaminé para o candeeiro embrulhada na folha de jornal -
às vezes chegava à Tapada já em cacos...mas também íamos às outras mercearias,
porque dizias que tínhamos que ajudar todos.
Íamos
comprar tecidos lindos para fazer os nossos vestidos à loja do sr. Manuel da
Silva, ele estava sempre muito bem vestido, mais a menina Nelita, que linda
loja: tinha as paredes cheias de prateleiras com peças de tecidos de todas as
cores, que depois de os medir com um metro no balcão, cortava com uma tesoura
grande e afiada.
Vestíamos
com vaidade os vestidos que nos fazias, o teu corpo debruçado na máquina de costura,
já tão cansado das tarefas do dia.
Caminhávamos
para as festas contigo, o teu ranchinho que era o teu orgulho; missas, procissões,
foguetes, alguma guloseima na feira, depois na praça, a foto de família para mandar
ao pai, que está longe.
Mostrava-te
o recado enviado pela professora: é preciso pagar a caixa escolar - tens o
paizinho em França - não sra. professora, a minha mãe só tem vinte e cinto
tostões em casa – ai filha, isso não era para dizer!
Desabafava
contigo as minhas preocupações de adulta, ouvias sem julgar, aconselhavas com palavras
sábias, só os teus olhos demonstravam preocupação.
O
teu corpo foi ficando mais cansado, precisavas de uma bengala, apoiavas-te a
nós a subir ou a descer as ruas e apontavas com a bengala: aqui morava fulano,
ali beltrano, todas as casas estavam cheias de gente, agora não se vê ninguém.
As
memórias eram recordadas e contadas no sofá, quando a casa estava cheia, ouvias
todos e confortavas os seus corações.
A
escuridão foi tomando conta dos teus dias, perdeste-te, tentámos ajudar-te a
encontrar o teu caminho que é longo e escuro...
No
teu silêncio, apenas os teus olhos falavam, perdidos no vazio...
Nos
teus momentos de aflição, os teus olhos tentavam dizer o que o teu corpo
sentia...
Pegava
na tua mão, que apertavas suavemente e colocavas no teu peito...
Deitava
a cabeça no teu regaço, na procura do teu afago de mãe...afagavas-me com a mão aberta
os meus cabelos e deslizavas os teus dedos numa carícia demorada.
E
sentia gratidão e compreensão no teu olhar...
Guardo-te
em mim, assim...
Maria Albertina Prata Teodoro