segunda-feira, 5 de julho de 2010

Um caldo para os vadios

Eles passavam quase todos os anos, sempre na altura em que o tempo aquecia, talvez saudosos dos cheiros a maresia que tem a vida à beira-mar.
Vinham apressados, ora a correr, ora em passos largos, continuamente a virar a cabeça para trás. Eram invariavelmente dois ou três, não mais.
Avistávamo-los, quando atravessavam o pequeno planalto entre o vale do Caldeira e o vale das Lajes, pelo caminho que passava acima do Chão da Bica. Desciam até ao ribeiro e bebiam de borco nas bordas da presa, a matar a sede de tantas correrias. Depois deixávamos de os ver, pois a seguir tinham a barreira até à Tapada, do nosso lado, e ali o caminho era muito subido.
Chegavam e davam-nos a salvação. As nossas mães perguntavam-lhes quem eram e eles respondiam que vinham de São Fiel e iam para o Porto, a terra deles, fugidos dos maus tratos. E pediam-nos comida. A minha mãe e a minha madrinha conversavam entre si e dava um prato de caldo a cada um quem tivesse sopa feita.
Comiam e partiam, sempre como quem quer fugir de um lugar e tem pressa de chegar a outro. Antes, perguntavam-nos qual o melhor caminho. Nós não sabíamos onde era o Porto e eles apontavam para o horizonte, um pouco acima do local onde se punha o sol. Então aconselhávamo-los a descerem pelo caminho mais largo, até ao portão de uma quinta, com um cedro grande à esquerda. Aí, deviam seguir pela direita, sempre contornando o muro alto. Quando chegassem às casas, junto a uma capela, tomavam o caminho para a ribeira. Mas atenção, porque no final do muro alto estava o posto da Guarda!
Eles partiam apreensivos e nós seguíamo-los com o olhar, até se sumirem na curva do caminho, desejosos de que não fossem apanhados pela Guarda.


Nota:
Passados estes anos, o que me fica é esta solidariedade entre os menos afortunados. A tradição popular conta-nos histórias do Zé do Telhado e do Cireneu, mas eu vivi essa generosidade no concreto: quem pouco tinha matava a fome a alguém que passava à sua porta, mesmo sabendo que vinha fugido das autoridades e provavelmente já cometera crimes. E ainda ficávamos com o coração nas mãos, com medo que a GNR os apanhasse!


Colégio de São Fiel, um excelente colégio jesuíta, na viragem do século XIX para o século XX, e depois Centro de Reinserção Social. Actualmente, está ao abandono. Fotografia do site: http://www.google.pt/imgres?imgurl=

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