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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A batalha da Oles

O cavaleiro vem pela estrada que da portela da serra desce para o território muçulmano. O cavalo marcha às cautelas, no piso íngreme e pedregoso. Ao longe, deles sobressai nos matos uma mancha branca com o risco vermelho das cruzes templárias.
O ribeirito que segue junta-se a outro e é ali a capela da Orada, à esquerda. Prende o cavalo num amieiro e dirige-se para a capela, misturando-se com os camponeses que vêm à missa do domingo. O edifício de pedra enegrecida sobressai no manto verde do adro, com grandes amieiros encostados, do lado do ribeiro. É um templo baixo e de aspeto rústico, quase tosco.
O cavaleiro transpõe a porta e ajoelha em frente ao altar. Depois ladeia-o, à procura da sacristia. Era atrás do altar e o ermitão já vinha a sair quando o cavaleiro enche a porta com a sua figura. Saúdam-se com reverência e conversam por alguns minutos. Depois, o presbítero dirige-se ao altar e o cavaleiro junta-se ao povo cristão.
Homens e mulheres lançam-lhe olhares curiosos e, no regresso da comunhão, encaram-no de frente: é encorpado, rosto escondido nas barbas arruivadas e os cabelos curtos e claros, à mostra pelo capacete que o cavaleiro segura na mão.
No final da missa, frei Gonçalo diz ao que vem o cavaleiro da cruz. É companheiro de Dom Afonso Henriques, o rei cristão que desde Coimbra vem empurrando os governantes do Islão para sul, dilatando a Cristandade e libertando os fiéis do único Deus verdadeiro.
O cavaleiro avança para o altar, flete o joelho e faz o sinal da cruz. Depois coloca-se ao lado do presbítero e fala. Chegara a hora de libertar as gentes da diocese egitaniense do longo cativeiro muçulmano. Os cavaleiros cristãos já aguardavam na encosta norte da Ocaia, mas chegavam notícias de reforços para o exército muçulmano, com cavaleiros vindos de além Tejo.
Estas palavras trazem inquietação aos camponeses. Vasco Anes tinha uma filha casada com um mouro cultivador dumas terras no monte do Mourelo e Rodrigo Peres era amigo do comerciante mouro que lhe trazia as ferramentas para a lavoura e ainda no ano passado lhe vendera um belo garrano. O cavaleiro termina agora. Pede-lhes segredo e vigia aos movimentos do exército inimigo. E ajuda em homens de armas, quando chegasse a hora do confronto militar.
Frei Gonçalo faz sinal a dois homens. Depois desenha no ar o sinal da cruz e despede-se do seu rebanho. “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe!” Homens e mulheres saem para o adro de rostos fechados. Contornam a capela e nas traseiras aguardam a sua vez, junto à fonte. Bebem o suficiente para a caminhada e purificam os rostos. Depois, cada um toma a direção do seu casal, de coração apertado, sem o que dizer uns aos outros.
Na sacristia, o presbítero apresenta ao templário os dois camponeses, Fernão Mendo e Antão Fernandes, pai e filho, dos mais tementes a Deus e que odeiam os infiéis, com quem não tinham relações de sangue ou especiais amizades. Os quatro fazem as combinações que ali os retinham e depois cada um vai à sua vida.
A semana foi de grandes canseiras para Antão, Fernão e companheiros que foram juntando à causa dos conquistadores cristãos. Atalaias pelos altos, subidas e descidas ao castelo, no alto do penhasco, correrias pela noite dentro, a recrutar homens de armas, pelos casais espalhados pela serra, nos montes da charneca e pelo campo. No fim da semana, encontram-se com o cavaleiro templário, para lhe contar dos movimentos dos guerreiros muçulmanos, em deambulações pelo extenso campo que se estende aos pés da serra. E fazem os acertos para o embate com os infiéis.
No dia seguinte, o exército cristão cruza a serra e pernoita no vale da ribeira, fora das vistas largas do campo. Aos primeiros sinais do alvorecer, marcha para sul, seguindo o curso de água. Depois, os cavaleiros e peões encaram os primeiros raios de sol e continuam a marcha, sempre para nascente.
Já avançam em campo aberto, seguindo caminhos ondulados por entre matos e vinhedos. Soa um longo toque de chifre de boi, vindo do castelo, sinal combinado de avistamento do inimigo. Os olhos perscrutam o campo sul e em breve se vislumbra uma mancha cintilante em movimento.
O exército cristão chega bem à vista do castelo da serra e pára. É primavera e as águas do ribeiro dos enxidros saltitam nos últimos declives da encosta. Os guerreiros ajoelham nas suas margens e bebem de borco, com o rosto mergulhado na água cristalina. Depois as montadas. Camponeses saem do meio da mata de carvalhos, com cestos de pão para os guerreiros. As bestas pastam nas ervas verdes. Aguarda-se.
Dois toques ecoam pela serra. Os infiéis aproximam-se. Os cristãos aprontam-se. Uma espera silenciosa, longa, enervante. “Estes moçárabes são de confiança?” O templário garante que sim. Finalmente soa o terceiro e último aviso, três longos toques. O comandante levanta o braço e todos se aquietam, mãos crispadas nos cabos das lanças e nos punhos das espadas. Distingue-se já nitidamente o tropel dos cavaleiros que se aproximam. São muitos, mais do que os desejados.
Os dois corpos penetram-se, gritos de raiva e dor. Os cavaleiros cristãos são empurrados, encosta acima, já se luta na orla da mata. O templário procura com o olhar os reforços moçárabes. Soaram os quatro toques curtos a eles destinados, mas ninguém sai da mata. Do castelo, Antão segue com desespero o desenrolar da contenda. Tardam os homens que o pai devia comandar. Grita aos dois companheiros de vigia, montam os jumentos e atiram-se serra abaixo. Dentro da mata, Fernão tenta convencer os companheiros do valor da luta, mas eles olham o formigueiro de muçulmanos e consideram que esta luta desigual não é a que lhes fora prometida. E pensam no sossego dos seus casais, nos familiares e amigos que têm no outro lado.
Frei Gonçalo aparece do nada e fala-lhes da paixão de Cristo, do prémio do céu e do castigo dos infernos, razões mais fortes do que os efémeros prazeres da curta vida terrena. Todos empunham as lanças e correm, atrás de Fernão Mendo, encosta abaixo. Há muçulmanos para todos, por todos os lados. Agora, é matar ou morrer. Também combatem pela vida dos que deixaram em casa. A luta alonga-se, no tempo e no campo da Oles. Já no pino do sol, os infiéis começam a recuar frente aos cristãos. Depois gritam-se ordens de retirada e os guerreiros de Alá fogem do campo de batalha, perseguidos por quem ainda tem forças.
Os homens deixam-se cair exaustos. Procuram-se amigos e conhecidos, choram-se os mortos, com os rostos fechados. Juntam-se os guerreiros e aclamam o seu rei. Os moçárabes, com Antão à frente, chegam-se aos vivas. O templário apresenta ao rei os camponeses destemidos que tanto ajudaram na vitória.
“O que mais desejais que o vosso rei vos dê, em sinal de agradecimento pela vossa valorosa ajuda?”
Antão Mendo olha os companheiros e adianta-se. Ajoelha em terra e pede:
“Saiba Sua Majestade que precisamos de uma igreja paroquial, pois a nossa Orada é diminuta e muito dentro da serra, longe dos casais onde moramos.”
“Que seja como pedis. Mando que se erga uma igreja no local onde pernoitámos esta noite. Dou-vos esta bolsa de moedas para ajudar a erguer o templo. Quando estiver construído, ide à minha corte e dar-vos-ei um orago, juntamente com privilégios e isenções.”
“Que Deus abençoe Vossa Majestade!” Agradece um religioso, aproximando-se.
“É frei Gonçalo, o presbítero da Orada que me ajudou a organizar o apoio destes moçárabes.” Informa o templário.
“Louvo o vosso contributo para esta obra de Deus que é a expansão do reino de Portugal. Sereis o cura da nova igreja.”
E acrescenta, para todos:
“Dou-vos uma igreja, com a condição de irdes todos os anos em romagem ao castelo da serra, para que não se perca da memória dos homens a vitória que hoje aqui alcançámos, orientada do alto daquele penhasco por um punhado de homens valentes.”
Os camponeses carregam os corpos dos que tombaram e regressam aos seus lares, satisfeitos da vitória, mas temerosos que a contenda alastre para as suas famílias de sangues tão misturados.


Fundamentos:
Afonso Henriques – A tradição diz que ele esteve na batalha, mas esta poderá ter sido travada apenas pelos Templários. Cerca de 1160, o rei doa aos Templários as terras entre o Zêzere e o Tejo (a Covilhã era do rei), muitas ainda muçulmanas. São eles que conquistam, depois, Idanha-a-Velha e Monsanto. Será desses anos a Batalha da Oles. Mas, por outro lado, S. Vicente nunca pertenceu aos Templários, mas sim ao território real da Covilhã, pelo que o recontro da Oles pode ser anterior. Em 1169, dá-se o desastre de Badajoz e o rei fica inválido para a luta, encarregando dessa tarefa os filhos Fernando Afonso e D. Sancho (I).

Batalha da Oles – Esta batalha está descrita nas Memórias Paroquiais de S. Vicente da Beira. O vigário da época escreveu que os naturais observavam a batalha do alto do castelo e que os cristãos estavam a perder, porque os muçulmanos eram copiosos (muitos). Então desceram do castelo e ajudaram o exército de D. Afonso Henriques, saindo vitoriosos. Por isso, D. Afonso Henriques mandou fazer a romagem anual ao Castelo Velho.

Castelo Velho – Embora pouco estudada, esta fortificação da Idade do Bronze (de há cerca de 3 000 anos) tem sinais de reutilização na época da Reconquista.

Diocese egitaniense (de Egitânia, Idanha-a-Velha) – Os muçulmanos eram tolerantes em matéria religiosa, pelo que os cristãos tinham liberdade de culto, mediante o pagamento de um imposto. Aquando da Reconquista, a Egitânia ainda tinha bispo, logo transferido para a Guarda. Ainda hoje a diocese da Guarda se designa por diocese egitaniense. A paróquia da Orada pertenceria à diocese da Egitânia.

Estrada – Tem origem romana a estrada que atravessa a Gardunha, de S. Vicente para o Fundão. Na Fonte da Portela e Vinhas, o piso é romano, mas acima da Orada é já medieval, do tempo dos mouros, como diz a tradição.

Fonte da Orada – A antiga fonte situava-se nas traseiras da capela. Só em meados do século XX, nas obras realizadas pelo Pe. Tomás, essa fonte foi substituída pela bica na outra margem do ribeiro. É costume as pessoas molharem a cara na água da fonte, por a considerarem santa. Na realidade, a água terá algumas qualidades medicinais, nomeadamente para as infeções dos olhos.

Mata (das Vinhas) – A toponímia medieval e a documentação do século XVIII referem a Mata das Vinhas. Existiria uma mata, certamente de carvalhos, junto à Oles, pois a ser de sobreiros ou castanheiros chamar-se-ia sobreiral (Sobreiral/Sobral) ou souto. No século XVIII (e ainda hoje), existiam muitos carvalhos acima de Alpedrinha. Os pinheiros só se impuseram na paisagem nos finais do século XIX e inícios do séxulo XX.

Moçárabes – Era o nome dado aos cristãos que residiam no sul muçulmano, o Al-Andalus. Foram eles que conservaram o culto a São Vicente e por isso se pensa que todas as povoações com topónimos de S. Vicente são antigas comunidades moçárabes.

Mourelo – É possível que o termo venha de mouros.

Ocaia – É outra denominação da nossa serra, anterior a Gardunha, esta da época muçulmana. O primeiro foral de S. Vicente da Beira (1195) designa a serra por Ocaia.

Oles – Zona no sopé sul da Gardunha, junto ao Louriçal do Campo, no caminho para S. Vicente da Beira.

Orada – Frei Agostinho de Santa Maria visitou a ermida e escreveu, no Santuário Mariano, em 1711, que se pensava ter sido esta capela a igreja paroquial dos cristãos da zona, no tempo dos godos. Se o foi no tempo dos godos, continuou a sê-lo, depois com os muçulmanos, que se seguiram aos visigodos.

Ribeiro do Enxidro - Existe, mas proximidades da Oles, um ribeiro com este nome.