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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Memórias do Zé Manel


Pregos da ermida da Senhora da Orada


Processo de Manuel Henriques de Lacerda, na Inquisição


Um sarindão (cirandão) para esmagar as uvas

José Manuel dos Santos

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Quarta classe ou comunhão

(…) Mal a gente saía da escola, as nossas mães punham-nos logo a servir.
- Olha filha, ”dizia a minha mãe” sempre é melhor que ficares praí a trabalhar no campo de sol a sol, à chuva, ao frio, ao vento.
Quando tinha a tua idade já andava a servir; escola! Qual escola qual carapuça, nesse tempo só os cachopos; “e não eram todos”; tiravam a quarta classe. Os pais punham-nos logo a guardar cabras. Naquele tempo era uma dor dalma, muitos só viam as primeiras botas quando iam para a tropa, porque lhas davam lá.
Na vila havia meia-dúzia de casas ricas, as quintas, as melhores terras eram deles, muitas famílias nem um palmo de terra possuíam.
Dois ou três meses antes das festas de verão, as famílias mais pobrezinhas compravam um borreguito para ser comido nos dias das festas, como não tinham horta, engordavam-no nos ribeiros e na ribeira.
Ai daquele que fosse apanhado a roubar um molho de mato nas terras dos ricos…
- Olha filha, dizia a minha mãe; no tempo da azeitona, homens e mulheres andavam por esses olivais fora ao oitavo e ao nono; eram oito litros ou nove para o patrão e um para a camarada toda, uma miséria; ao fim do dia, por vezes não ganhava-mos um quartilho de azeite; quando as oliveiras estavam sujas e pouco carregadas. Quando estavam de carrola, os homens colhiam uma saca num instante. É por causa destas e doutras que antes te quero ver a servir.
A minha mãe era criança quando o concelho acabou, andava na praça a jogar ao paspelho quando viu um senhor a fechar a porta do balcão da cadeia, ao fundo das escadas estava um homem com uma carroça cheia de livros, o que fechou a porta subiu para a carroça e abalaram.
Certa vez a minha mãe, com ar sério e grave, voltando-se para mim, disse:
- Andam para ai a recordar o senhor fulano, a senhora fulana, o que é que fizeram pela nossa terra? Até deixaram abalar a câmara, que rai de ricos foram eles.
Ainda me lembro como se fosse hoje das palavras da minha mãe. 
- A vila nunca mais foi a mesma. Está cada vez mais deserta, há ruas onde moram duas ou três pessoas; os soldados partiam para a guerra, a emigração, a falta de trabalho, tudo isto contribuiu para a desertificação.
Adiante, águas passadas não movem moinhos, e depois!
Um dia, uma vizinha falou com a minha mãe no nosso almiar, eu estava ao cimo das escadas a ouvir a conversa.
- Ó Maria, esteve na praça um senhor e uma senhora à procura de duas criadas, e se nós mandasse-mos as nossas filhas?
A minha mãe não ficou muito convencida, eu muito menos, servir! A minha amiga lá me convenceu e fomos. Teria os meus quinze anos quando abalei, os patrões eram boas pessoas, andei por lá cerca de um ano, aos domingos a patroa dava-nos a parte da tarde para irmos passear, uma vez conhecemos um rapaz da nossa idade que nos acompanhava.
- Casavas com ele?
- Eu não, nem sequer tem a quarta classe.
- Isso para mim era o menos, não casava com ele porque não tem a primeira comunhão.
Um grande clarão vermelho sobressaia por detrás da serra do Engarnal, aproximava-se a noite, no chafariz coaxavam as rãs, no velho cedro, escondidas nas ramagens ouviam-se os sons estridentes das cigarregas; o sino da torre da igreja badalava as ave-marias.
- O anjo do Senhor anunciou a Maria…

Quartilho: Quarta parte da canada.
Carrola: Ramos, ladrões carregados de azeitonas.
Almiar: O pequeno espaço da habitação que se situa ao fundo das escadas. 
Cigarrega: Cigarra
Linguajar vicentino: praí; dor dalma; rai.

J.M.S

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O costado sanvicentino de Ribeiro Sanches


Primeira geração

      1. António Nunes Ribeiro Sanches nasceu a 07/03/1699 em Penamacor, Penamacor; foi batizado em Penamacor, Penamacor; faleceu a 14/01/1783, em França, Paris; filho de Simão Nunes Flamengo e Ana Nunes Ribeiro.
António Nunes Ribeiro Sanches nasce em Penamacor a 7 de Março de 1699, filho de Simão Nunes,  sapateiro e comerciante, e de Ana Nunes Ribeiro. Era o filho mais velho de uma família de cristãos-novos, isto é, descendentes de judeus que tinham sido obrigados a converterem-se e batizarem-se nos finais do século XV.
Em 1716 inscreve-se na Universidade de Coimbra, em Direito. Três anos mais tarde transfere-se para Salamanca, onde cursa Medicina e, em 1724, obtém o grau de Doutor. Em 1726 foge do país, por denúncias da prática de judaísmo, e fixa-se na Holanda, em 1730, onde estuda com o Boerhaave. Sob recomendação deste, parte para a Rússia, em1731,  onde exerce funções de médico militar com assinalável êxito. Nomeado clínico do Corpo Imperial dos Cadetes de São Petersburgo, a sua fama torna-o médico da czarina Ana Ivanovna. Em 1739 é nomeado Membro da Academia de Ciências de S. Petersburgo; no mesmo ano recebe igual distinção na de Paris, a “Cidade das Luzes”, grande centro da atividade intelectual europeia, aonde regressa em 1747. Aí colabora com os maiores vultos do Iluminismo, aí escreve as suas obras fundamentais: “Dissertation sur la Maladie Vénérienne”; “Tratado da Conservação da Saúde dos Povos”; “Cartas sobre a Educação da Mocidade”;  “ Método para Aprender e Estudar a Medicina”; “Mémoire sur les Bains de
Vapeur en Russie”.
Até à sua morte, ocorrida em 14 de Outubro de 1783, é consultado com regularidade pelas personalidades mais notáveis da Europa culta de então.


Segunda geração

      2. Simão Nunes Flamengo, nasceu em 1673, em Penamacor, Penamacor; casou com Ana Nunes Ribeiro; filho de Álvaro Fernandes e Isabel Nunes.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 7906 de 1715-05-30
PT/TT/TSO-IL/028/07906
Acusação: Judaísmo
Data da apresentação: 30/05/1715  Sentença: auto-da-fé privado em 03/06/1715. Abjuração em forma, instruído na fé católica, penas e penitências espirituais.
Cristão-novo


      3. Ana Nunes Ribeiro, nasceu no ano de 1680, em Idanha-a-Nova, Idanha-a-Nova; filha de Manuel Henriques Lucena e Maria Nunes Ribeiro.

Cristã-nova


Terceira geração

      4. Álvaro Fernandes nasceu no ano de 1650 , em Penamacor, Penamacor; casou com Isabel Nunes; filho de Diogo Gomes Henriques e Isabel Henriques.
Cristão-novo

      5. Isabel Nunes nasceu em Idanha-a-Nova, Monsanto; filha de Luís Lopes e Maria Nunes Ribeiro.
Cristã-nova

      6. Manuel Henriques de Lucena nasceu em Castelo Branco, São Vicente da Beira; casou com Maria Nunes Ribeiro, a 31/10/1666, em Idanha-a-Nova, Idanha-a-Nova; era filho de Diogo Gomes Henriques e Isabel Henriques.
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 1953 de 1703-08-22
PT/TT/TSO-IL/028/01953
Acusação: Judaísmo
Data da prisão: 23/08/1703 Sentença: auto-da-fé de 19/10/1704. Confisco de bens, abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo, instruído na fé católica, penitências espirituais. Em 12/08/1705, a Mesa deu licença ao réu para ir para Buarcos.
Residente em Lisboa
Cristão-novo

      7. Maria Nunes Ribeiro nasceu em Idanha-a-Nova, Idanha-a-Nova; faleceu antes de 1704; filha de Luís Lopes e Maria Nunes Ribeiro.


Quarta geração

    12. Diogo Gomes Henriques casou com Isabel Henriques, no dia 13/05/1636, em Castelo Branco, São Vicente da Beira; era filho de Diogo Vaz e Clara Gomes.

    13. Isabel Henriques; filha de Diogo de Lucena e Branca Rodrigues

    14. Luís Lopes casou com Maria Nunes Ribeiro

    15. Maria Nunes Ribeiro; filha de António Rodrigues e Ana Nunes Ribeiro

Cristã-nova


Quinta Generação

    24. Diogo Vaz casou com Clara Gomes

    25. Clara Gomes

    26. Diogo de Lucena casou com Branca Rodrigues

    27. Branca Rodrigues faleceu a  02/06/1638 , em Castelo Branco, São Vicente da Beira.

    30. António Rodrigues casou com Ana Nunes Ribeiro

    31. Ana Nunes Ribeiro

Nota: Ribeiro Sanches foi um dos mais ilustres filhos de Portugal. Tem estátua numa praça de Paris, cidade onde viveu a sua velhice, publicando os seus estudos na Enciclopédia. Várias das melhores reformas do Marquês de Pombal foram inspiradas nas suas ideias.
Além dos assinalados a azul, outros dos seus antepassados tinham ligação a são Vicente da Beira.

Atenção: há comentários novos na publicação anterior.

José Teodoro Prata

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Altar franciscano na Orada







Após a extinção do convento franciscano feminino (1835), o altar mor da Igreja de São Francisco (o templo do convento) foi mudado para a capela da Senhora da Orada.
Há anos que está em completa degradação. É policromado (azul, vermelho e amarelo), mas pouco se nota nas fotos, quer pela sujidade acumulada, quer pela fraca qualidade da máquina fotográfica.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Capitão Francisco António da Silva Neves


Nasceu em São Vicente da Beira, filho de Joaquim António das Neves, de Adela, Góis,  e de Pulqueria Cazimira da Silva, de São Vicente da Beira.
Morador no bairro de Belém, em Lisboa, Em 1872, era reformado, como Capitão da Província de Moçambique. 
Foi Director da Real Casa Pia de Lisboa
Era irmão de Maria Barbara da Silva Neves, que nasceu em 1834 e faleceu numa casa na rua Velha, a 27 de fevevereiro de 1911. Casou a 19 de outubro de 1864, com Joze da Conceição.

Jaime da Gama

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Super Mário


É o Mário Silva, no desfile de Carnaval do passado domingo, em Castelo Branco.
O disfarce é o tema da atualidade: os incêndios.
Este ano voltou a ser premiado (já o fora no ano passado).

José Teodoro Prata

sábado, 10 de fevereiro de 2018

A fonte da Praça


Já aqui a mostrámos, na publicação "Dois artistas".
Foi edificada em 1947, pelo traço do João Engenheiro e pelo ponteiro do Manuel Companhia e companhia.
A fonte era dedicada a São João de Brito e foi demolida cerca de 1970-72, juntamente com o coreto, a fim de dar nova configuração à Praça. Decisão de um grupo de ilustres locais: Junta, Pe. Branco, Engenheiro Martinho...

José Teodoro Prata (legenda)
Jaime da Gama (foto)

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O alacrário (1)

Naquela época, para regar, minavam-se os morros ou as barrocas próximas das hortas, a fim de procurar a tão preciosa água para a fertilização dos solos. Se a fazenda fosse do próprio. Se não fosse, e a trouxesse de renda ou ao terço, a tarefa competiria ao dono. Às vezes, a água era repartida pelos dias da semana, conforme os usos, com os vizinhos dos terrenos contíguos.
Na Beira predominava o minifúndio. À roda da vila, de acordo com a orografia, a maioria das terras de cultivo dispunha-se em socalcos. Que se sustentavam por paredes suficientemente altas e grossas de pedra de granito ou xisto, conforme a que mais abundasse no local. Por forma a compor os leirões. Se fosse para a serra, a descambar para nascente, era o granito. Já, na vertente norte e a poente, para a Devesa, a caminhar para a Charneca, o xisto é que punha lei.  
Surribavam-se na horizontal, oito ou dez metros ou mais. A boca da mina ficava à face do cômoro do cerro ou da parede que segurava o terreno. Fazia-se aí, até meio, um muro de retenção da água. Por baixo, passava um bueiro, onde era colocada, na parte de dentro, uma tranca para o despejo.
O regime pluvioso era, na altura, rico. E a profundidade da escavação variava, conforme a proximidade da nascente, de acordo com a veia de água e humidade do terreno! Tanto podia estar à babugem, como a metros de distância. Era preciso procurá-la!
— Ó Manel! Ó Alfredo! Cavem aí nesse cabeço, para lá, sempre a direito, até dar água! — dizia ti’ Fecisco Abelha para os filhos, depois de escolher um local que lá lhe parecia adequado.
O nome “Abelha” circulava, somente, entre alguns dos membros da família, como uma mangação inocente. O ti’ Fecisco, por vezes, exasperava-se, por uma qualquer razão, mais ou menos tangível. O que acontecia, não por razões de caráter iroso, que, esse, não era o seu. Mas apenas por simples excessos de impaciência, repentinos e curtos. Soltava, nessas ocasiões, uns silvos, “zzii, zzii”, semelhantes ao zumbido de uma abelha ou de uma vespa, se algum destes insetos nos passava a rasar as orelhas! Não se dava muito pelas exaltações do bom do homem. Pois não produzia sons audíveis. Percebiam-se apenas aquelas sibilações. E um nadinha de gaguez que lhe provocava, nessas ocasiões, a desordem mental! Mas, rapidamente, ti’ Fecisco retornava ao seu equilíbrio e normalidade. No mais, era boa pessoa, magnânimo, e de muita convivência com o seu semelhante.
A ordem que dera aos filhos para escavarem no local que lhes indicara, fora o ponto de partida para começar a mina do Cerro Velho. Um pequeno escolho de terreno pedregoso, de rocha negra e miúda, na sua fazenda do Monte do Gaio. Esta mina possibilitava o alargamento da regadia aos leirões cimeiros. Dela também se abastecia a casa, para beber e cozinhar. A água que dava, porém, não era suficiente para tudo! Mais abaixo, havia outras minas. Que, com o auxílio de chaboucos, irrigavam os terrenos inferiores.  
Já tinha entrado o verão. Os seus filhos do meio, jovens já maduros, peitos para fora, embezerrados de suor, ao timbre da voz forte do pai atiravam-se à labuta que nem gato toirão a coelho! Não se discutia a ordem de um pai, como não se discutia a de um juiz!
— Eh! Meu pai, não se enfade! Vamos já começar a cavar, a ver se aí dá nascente! — diziam eles, solícitos, mesmo que, por dentro, não lhes quadrasse lá muito bem aquela imposição paterna.
Se calhar, aquilo era demais!
— Que diabo de vida esta! — comentavam, baixinho, entre si. — Não há meio de chegarmos ao domingo para podermos ir beber meio quartilho na taberna do Manco. Ou dar um bate-pé no bailarico, à esquina do Largo Grande, a toque de realejo!
Além daquela mina já tinham feito outras. E alguns poços. Nesta fazenda do Monte do Gaio e noutras que os pais tinham de seu! Eram serviçais e obedientes, mas aquele trabalho era violento! Às vezes desanimavam!
Faziam-se muitos outros trabalhos nas terras. Lavravam-se as leiras com a junta de bois. Colhia-se a azeitona. Vindimava-se. Podavam-se as árvores. Semeavam-se as batatas, as hortícolas e os cereais de trigo, milho e centeio. Apascentava-se o gado. Ceifava-se. Faziam-se os rolheiros, com molhos de palha e feno, para o inverno. Regava-se a horta e o milho no verão. Ia-se à lenha. Metia-se mato na cama do gado. Tirava-se o estrume!
Mas lá trabalhar nas minas e nos poços, essa era uma empreitada levada do diabo! Chegava a haver contendas, porque, a uns, os mais novos, o pai mandava a regar ou a guardar as cabras e a outros a escavar a mina ou abrir o poço! Até parece que tinha preferências entre os filhos, condenando uns e premiando outros!
— Eh! Meu pai, porque é que o nosso Jaquim e o nosso João, vão sempre a regar ou guardar as cabras e nunca vêm trabalhar para a mina?! Quando é que nos calha a nós ir regar e pastorear e a eles virem para aqui surribar?! — reclamavam.
E é verdade que aqueles a quem encarregava de regar ou guardar gado era como se os mandasse para o Albergue da Mitra. Eram trabalhos muito mais leves! Nada semelhantes em cansaço e esforço! 
O que ia regar era só abanar a tranca da presa, com um solavanco. E deixar correr a água pelo bueiro, a meio rego, para que a levada não fosse muito vigorosa. Pois, se o fosse, levava, à frente, os tornadouros! Ficava, depois, em pé, encostado ao sacho, de costa direita, a vigiar a água a marear no renovo. E punha-se, depois, a assobiar ou trautear uma canção!
O outro, o que ia apascentar, soltava o gado. Limitava-se a segui-lo e a vigiá-lo até ao mato ou ao pasto. Entretinha-se, depois, a fazer um pífaro de cana. Ou a gravar uns desenhos no cajado, com a navalha que trazia sempre no bolso. E que manejava muito bem. Fosse para cortar o toucinho em cima da broa, à merenda. Fosse para fazer aqueles artefactos. 
Guardar gado e regar, esses é que eram dois trabalhinhos que nem duas minas! Mas de oiro! De boa vida!
— Calem-se, rapazes, que esses vossos irmãos ainda não têm corpo e ossos bem formados para aguentar esse trabalho! Há de chegar a vez deles! Haja concórdia e boa razão! E quem não tem olhos que os abra!
Tinham que se calar! As coisas eram assim, até se tornarem autónomos e casarem! Se vinham da tropa e eram mais serôdios e não casavam logo, continuavam a trabalhar na casa paterna. Que os laços daquelas famílias eram deveras agregadores!
Mas, nos protestos, nunca se atreviam a reclamar dos trabalhos desempenhados pelos irmãos mais velhos. A idade era um posto. Na tropa, como em casa! A autoridade dos anos, colocava-os próximo do poder do pai, que coadjuvavam. Faziam trabalhos menos pesados, é certo, mas de muito maior responsabilidade. Os que tinham umas letras, iam a Castelo Branco pagar a décima e tirar as licenças. Ou ao Fundão, escolher e comprar a batata de sementeira e adquirir as ferramentas necessárias para o trabalho. Pelo S. Miguel, iam mercadejar e trocar algum gado. Ou vender um ou outro saco de semente de pinho bravo. Assim, o ti’ Abelha, gerindo tensões, pondo regras e dirimindo conflitos entre os filhos, conseguia a desejada harmonia. O que, numa família grande, nem sempre era fácil!
Todo o labor a revolver a terra à procura de água, era a pulso, de picareta em punho e padiola na mão, ou a balde, a derrear os braços! Se fosse de verão, dormiam na fazenda, chegados a um dos lados da casa. Onde armavam catres em madeira, sobrepostos, dois a dois, a partir de meio metro do chão térreo. Separavam-nos por divisórias com paredes de ripa, carqueja e barro amassado. Sobre eles, punham colchões de palha centeia. Tudo aquilo, já se vê, não era muito confortável. E aí é que eram elas, com a moinha do corpo do trabalho da mina! Mas tudo passava. Eles eram jovens encorpados. Tinha que passar! De manhã, ainda de madrugada, estavam prontos para outra!
  
No geral, tudo era fartura de água! Mas o certo é que, de vez em quando, também havia secas. Mais raras, mas havia! E das grandes! Verões abrasadores de estiolar e calcinar tudo! A terra ficava feita em pó! Conquanto que as enormes e longas invernias que alagavam tudo, fossem muito mais comuns!
Muito calor e muito frio! Era assim a diversidade da Natureza, a desafiar a bazófia dos homens que tudo julgam saber! Ou seria o Diabo a querer trocar as voltas aos desígnios de Deus! Sabe-se lá! O mal, às vezes, parece que quer vencer, mas o bem acaba por triunfar! E a bonança retorna sempre ao seu lugar, trazendo equilíbrio ao mundo! Porque Deus Super Omnia!
As agruras do tempo, porém, parecia que queriam arrancar a samarra a quem andava nos trabalhos penosos do campo! Mãos engadanhadas e dedos retorcidos do frio, no inverno! Suor a escorrer, às bagas, pelas costas abaixo, com a camisa ensopada, no verão! Com um calor abafado, de faltar o ar!
Ti’ Fecisco Abelha dizia, muitas vezes, na roda de amigos, meio a brincar, mas sabendo que o caso era sério, na bondade da sua rudeza, moldada por uma vida de canseiras:
— O bicho homem é avesso a extremos! Não há senso nestes tempos! Isto até parece obra do sacana do Barzabu(1), a retorcer-se, quando a luz da espada do Arcanjo Miguel lhe atravessa a crusta!   
Manel e Alfredo, às ordens do pai, um tanto às cegas e, a muito penar, lá acabaram de escavar, quanto bastava. Primeiro, deram com uma pequena nascente. Parecia que vinha um pouco a medo. Depois, cavaram mais um bocado e começou a dar boa água! Finalmente tinham acabado a mina!
A certa profundidade, três dos irmãos mais velhos deixavam outros afazeres e iam ajudar. Uns a meter escoras para suster a terra e as pedras, não fosse haver uma avalanche que os soterrasse a todos! Outros a martelar, lá no fundo, de marreta e guilhos na mão! 
Ao todo, estavam em casa, ainda solteiros, sete rapazes e duas raparigas.
Mas quantas vezes os trabalhos terminavam em vão! Fosse porque apanhavam um veio de pedra rija, intransponível, que impedia o avanço e não pagava a pena recorrer a tiros de pólvora. Fosse porque, depois de muito vasculhar a terra, em certos sítios mais secos, a nascente teimava em não aparecer!
Se não se encontrava água, o pai, descoroçoado, mandava arrasar tudo!
— Ai o raio da mina de um ladrão que não me dá água nenhuma! Tanto prejuízo, em trabalho, que esta alma do diabo me levou! — lamentava-se Abelha. — Isto é que este damonho me espetou uma cria! Hã!
Muitas vezes não se tinha sorte! Era só isso! Porque, nessas coisas de vedores ou radiestesistas, ou lá como lhe chamavam, o ti’ Fecisco Abelha, nunca, por nunca ser, acreditou!
Desta vez, acertara! A mina dava água que bonda! Era mais um ponto de frescura na paisagem árida do verão! Na sua humidade obscura, balsâmica, podia-se esfriar um pouco da calmaria. Lavava-se a cara ardente. Matava-se a sede na água frígida, de fazer doer os dentes! Porque, em redor, na modorra das tardes tórridas, apenas o canto estonteante da cigarra, atravessava, devagar, o ar a estalar da canícula!

Os anos foram passando! Os filhos tiveram filhos! Renovaram-se gerações! Ao tempo, os netos mais pequenos acompanhavam, muitas vezes, os avós na vida do campo. Fosse porque os pais tinham outros compromissos, fosse porque não se encontrava uma tia ou mesmo uma vizinha que tomasse conta deles. No verão, mesmo se já frequentassem a escola, gozavam as férias grandes! Iam às ceifas, às debulhas, às regas!
Eram os primeiros contactos com a terra e a água. Com o calor e a fresquidão. Com a palha seca dos cereais prontos a ceifar ou com o verde das ervilhas, dos feijoeiros ou das alfaces. Com o tempo bom, sempre espinoteavam mais! Amiúde lhes apetecia deitarem-se na terra molhada, à sombra do milho, a refrescar! Ou brincar às represas! E lançar, na levada, pequenos barcos de papel! Ou de corcódea de pinheiro, aparelhados a canivete!
Um dia, no verão, no Monte do Gaio, de boas e férteis áreas de cultivo, ótimas hortícolas, frescor extravasante, era já tarde, tardinha!
Ti’ Felismina dos Casais, avó, como todas, babada dos seus netos, regava. Mesmo ao fundo, junto à parede que dava para o leirão de baixo! Era vital para as couves, as nabiças, as alfaces e outros produtos verdes, necessários, dia a dia, na mesa da família. Mas havia também batatas e milho do alto. A rega demorava um bom pedaço!
Ti’ Felismina, era uma mulher de bondade angélica, de alegria permanente e galhofeira. Corria pelos Casais que nunca ninguém a vira zangada! Tinha o dom da piada fácil, simples e irónica. Contrastava, em parte do seu modo de ser, com o marido, o ti’ Fecisco Abelha, de quem já se falou, com quem era casada há longos anos.
Àquela hora estava já mais fresco nas terras baixas, junto ao pequeno ribeiro que ali passava. Onde havia água corrente, apenas até ao mês de março! Daí, a necessidade de explorar pontos de captação. A prática era corrente em todas as fazendas cultivadas. Exceto nos lameiros, junto à ribeira, onde marinhava todo o ano! Por isso ti’ Abelha abrira outra mina. A mina do Cerro Velho. Era com a água dessa mina que a avó regava, naquele dia. Tão santamente como de costume!
A tarde já era curta, mas, no verão, daí até à noite, era ainda um dia de inverno! A rega tinham que ser feita com o sol a descair para o Ocaso. Assim, a terra conservava por mais tempo a frescura deixada pela água. Que não se dissipava tão rapidamente com o calor!
Tinham ido com a avó, naquele dia, ao Monte do Gaio, dois dos netos mais novos. Eram dois rapazes, primos direitos entre si e ainda crianças. Andariam pelos seus sete anos. Enquanto ela fazia a rega, tão distraída e compenetradamente como sempre, os netos tinham-se entretido, na brincadeira, perto da boca da mina, à saída para o primeiro tornadouro. No ponto onde estavam, achavam-se encobertos pelas couves e nabiças da horta e, sobretudo, pelo milho alto, que os ultrapassava, em altura, uns bons vinte centímetros! De modo que, a avó não os via. E eles apenas a divisavam, espreitando por entre as caneiras do milho!
Dizia-se que a velhacaria nascia quando se completavam os sete anos! Terminava aí o estado da inocência. Embora isso não se soubesse. Pois esse podia ser um daqueles pontos inacessíveis em que o enigma do homem permanecia. À falta de meças, porém, aceitava-se essa idade, como convenção, para se responsabilizarem os jovens, em certos termos, perante Deus e os homens. Com sete anos se entrava para a escola. Com sete anos se supunha mais credível o testemunho em tribunal. Com sete anos se fazia a primeira comunhão. Em suma, aos sete anos se presumia que se podia distinguir o bem e mal!
Mas, lá dizia o ditado, “Com a canalha, nem o Diabo quis nada!”. Os adágios populares encerravam sempre uma verdade. Era a verdade da observação coletiva, da “vox populi, vox Dei”. Com a faculdade da razão, do arbítrio e da escolha, entre o bem e o mal, a canalha escolhia quase sempre o mal! Nunca lhe dava para o bem. Só fazia asneiras e cometia tropelias! O provérbio parecia, portanto, confirmá-lo!  
Tudo isso aparentava ser muito acertado. Mas talvez não fosse assim tão pacífico. Se bem se procurasse, para cada aforismo, não raramente se encontrava o seu contrário. Por outra banda, nem sempre a opinião geral traduz toda a verdade. A virtude estaria, algures ali pelo meio. Dizia-o o bom senso!
Os dois cachopos, os netos da ti’ Felismina dos Casais, não eram, nem mais, nem menos, que os outros. Praticavam, como, afinal, todas as crianças, a suas boas e más ações. Nos folguedos, punham as mães ou as avós em alvoroço, quando partiam as cabeças ou esfolavam os joelhos dos trambolhões, nas pedras da calçada velha! Mas, à noite, as correrias acabavam! Ao colo da mãe ou da avó, na paz do lar, o carinho e as momices retornavam!

Desta vez, porém, os dois garotos, tinham congeminado ludibriar a avó que fazia a rega ao fundo do leirão da mina. Os marotos, pensaram, imagine-se, em cortar-lhe a água! Para o que bastava mudar o tornadouro, logo ao início da regadia! Desviando o curso da regueira para o lado oposto ao terreno em que a avó regava. Quando esta desse pelo logro, já não teria água! O que, sem dúvida, não deixava de ser um mistério! Pois, pelo tempo decorrido e pelo terreno já regado — pensaria ela — ainda a mina haveria ter muita água! Mas, então, já os malandros estariam lá para diante, escondidos atrás de uma moita, a rir-se da tramoia! E a ver, de longe, a avó andar à nora, a procurar saber a razão do sucedido!
A maldade premeditada é sempre a pior. Porque é traiçoeira e insidiosa. Mas, nem por ser planeada, se conseguia, sempre, levar ao seu termo. Nada do que os dois mariolas conjeturaram foi concretizado!
É que, sobre o tornadouro da água que os dois tratantes tinham decidido desviar à sua avó, encontrava-se uma pedra. Era uma maneira de o reforçar. Por forma a que, a corrente, por vezes mais forte, não o destruísse e se desencaminhasse a água! O que levaria à sua dispersão pelo terreno, tornando impossível direcioná-la para o local desejado. Para cortar a água era, pois, necessário remover a pedra! Se os dois rapazes lhe pegassem, um de cada lado, seria possível deslocarem-na. A terra, por baixo da pedra, essa, seria de fácil remoção, apenas com as mãos ou com a ajuda da lasca de xisto rijo, que, para o efeito já tinham arranjado!
A irreverência, a exaltação e, pior, a falta de simplicidade, levam muitas vezes à perdição. Nas palavras que se seguem, podia ver-se o cúmulo da vaidade de um traquina:
— Deixa, primo, que eu, sozinho, sou capaz de tirar a pedra! — disse um dos mariolas para o outro, ufano da sua importância!
Então, enquanto o primo assistia, fletiu-se sobre o tornadouro. Procurou assentar melhor os pés, em terreno fixo. Esticou os braços e meteu os dedos, por baixo, em cada lado da pedra, o mais que pôde. Tanto quanto alcançavam as suas pequenas mãos. E fixou-os no vinco, mais fixe, que conseguiu tatear. Firmou-se, esforçou-se e ainda conseguiu demovê-la um pouco! De repente, porém, num ato instantâneo e reflexo, como alguém que sente uma repelência abjeta, aguda, viu-se o rapaz largar a pedra e pôr-se aos gritos, com o primo estático e boquiaberto:
— Ai, ai! Ai, ai!
Um escorpião que, por baixo da pedra, se sentira importunado na sua toca, mordera-o na mão, ferrando-o a bom ferrar! Ainda o tinham visto, de raspão, a fugir e a meter-se pelo meio das ervas! Só então o primo percebeu o que acontecera! Mas a perplexidade e o desassossego gerados, permitiram que a repugnante criatura fosse, ligeira, à sua vida, incólume e sem punição!
— Ai, ai! Ai, ai!
Aos brados do neto, acudiu prontamente a avó, acordada da quietude com que regava a horta! Inteirou-se do que se passara. E, calma e carinhosamente, como era seu timbre, tentou acalmá-lo. Passando com as suas mãos por cima da mão mordida da criança chorosa.  
— Onde é que te dói, meu filho?!
As palavras ajudam sempre o espírito, mas não aliviam a intensidade da dor!
— É aqui, avó! — apontava o menino, na sua mão, o sítio da mordedura.
— Mas não se vê cá nada, meu amor!
— Pois não, avó, mas dói-me! Ai! Ai!
É verdade que quase não se dá pelo local de certas picadas. Não fazem sangue! Mas doem! Não havia forma de consolá-lo! E fossem lá falar agora de remédios! No Monte do Gaio não era lugar para essas coisas! A farmácia situava-se na vila, longe, e já eram horas de estar fechada. Os remédios eram caros!
Os pais e avós do tempo, eram avessos a remédios. Salvavam, porém, a face, sendo engenhosos. A isso obrigava a necessidade. Tinham as suas mezinhas. Sabiam que os seus métodos em pouco ou nada atenuavam o sofrimento. Mas sempre era um gesto para enganar a mente do enfermo. Nada fazer, seria pior. Então, a avó, pôs sobre a mão doente do neto uma folha de couve. Talvez o distraísse com a suavidade fresca do vegetal. Quando a couve aquecia em contacto com o a mão, tirava-a e punha outra. Como isso não tivesse surtido efeito, meteu-lhe a mão na água. Mas, isso, arrefeceu-lha e não lhe tirou a dor. Estava à vista, que, mais ou menos calor ou frio, nenhum lenitivo trazia. Depois, pôs-lhe um pedaço de lama de terra argilosa. Diziam que fazia muito bem às picadas das vespas. Podia ser que resultasse com a picada de alacrário.
Após as primeiras horas, não era que o sofrimento fosse menor, mas a criança já se acomodara um pouco. Depois do choque inicial, passou a existir uma espécie de previsibilidade na dor. O corpo do jovem arranjara resistências naturais, como acontece com todos os organismos, perante a ofensa e adversidade do meio. O moço entrou, então, numa lengalenga magoada, “ai! ai! ai!”, prolongada e monocórdica. Era o início de uma via- sacra!
Chegava quase a noite quando regressaram a casa. A avó tentou, em vão, adormecer o neto. Como os outros remédios não tivessem logrado produzir o desejado abrandamento da dor, ainda lhe pôs manteiga na picada. Procurava tranquilizá-lo, nem que fosse, por sugestão, mais uma vez. Nada! A dolorida cantilena do rapaz, que, sem adormecer, apenas semicerrava, às vezes, olhos, vencido pelo cansaço, prolongou-se pela noite fora, “ai! ai! ai!”!
Já o dia seguinte ia alto quando a dor o deixou. E pôde, finalmente, descansar!
Mas a ti’ Felismina dos Casais nunca veio a saber da trapaça que os netos lhe haviam preparado, naquele dia, no Monte do Gaio. Afinal, a água da rega não chegara a ser cortada!
E se os remédios caseiros daquela avó não tinham surtido qualquer efeito, a sua paciência, essa, era infinita!

Notas: (1) Escorpião, Lacrau.  
(2) Belzebu, Demónio.  
Obs.: Neste texto podem ter sido utilizados termos locais ou regionais que não constam dos dicionários oficiais.

José Barroso