Vista geral da Paradanta. Foto de Carlos Matos.
As mulheres da
Paradanta são o amparo da casa. Como são robustas e determinadas, as deusas
primordiais admiram-nas e protegem-nas. A sua aldeia fica encravada entre
montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é
possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales.
Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena
agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da
sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em
rancho. Decididas, caminhando, balançando as ancas cheias. E como os deuses
gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na
Paradanta, para lhes fruírem a atividade, em vez da rigidez de antanho.
Na década de 40, era
comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do
minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia.
Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha,
com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar
terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das
redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e
brilhante. Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e pelo meio dos
pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até
pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá
acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas
atrás das outras, em filas espontâneas, abanando as ancas, iam e vinham
lançando um ou outro canto com temática de igreja, mas reconforto pagão. Por
vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas paradantenses e,
disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava
algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para
abusar de alguma delas.
Na década de 50, com a
II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da
Paradanta voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes
terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os
homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não
tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor
aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo
não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes
chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador
de um ano para o outro. Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho
depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro.
Regavam milhos, melancias e abóboras, colhiam a produção na altura certa,
ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as
maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da
apanha do feijão frade. Extensões enormes eram calcorreadas em setembro,
feijoeiro a feijoeiro, colhendo as vagens maduras para as cestas e
descarregando-as no carro de vacas. Vendo-as em tão grandes penares de labuta
campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no
rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida. A mais nova
estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a
alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a
aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais.
Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas
de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma
fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um
naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita. Se
houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus
igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão
ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra
ninguém. Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam no domingo à noite. Uma
cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os
deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!
Na década de 60, os
namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França.
Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Paradanta
amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de
uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais
gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas. Mesmo com poucos
homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora da Orada. No quarto
domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à
cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo
os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois
da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da
filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio
humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Paradanta,
cantando modas menos religiosas que à ida.
Na década de 70,
acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram
reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a chegada do gás
e da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se, nos
pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de
cinzas. As mulheres da Paradanta punham os cântaros à cabeça e percorriam
distâncias até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes,
uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses
apreciam o seu caminhar! Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram
reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia.
Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas
famílias compraram carro. Ou motoreta.
Aos poucos, as mulheres
da Paradanta, deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses
ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar
devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o
sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam
cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças. Felizmente, Hera,
também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para
emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Paradanta voltaram a
encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o
tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso
deleitado, no rosto divino.
Cariátides, na acrópole de Atenas.
Joaquim
Bispo