sexta-feira, 7 de julho de 2017

O primeiro Lobo?


O Bonifácio nasceu a 6 de agosto de 1824 e era filho de Francisco Duarte Lobo e Ana Jacinta, 
ambos de S. Vicente da Beira.
O avô paterno chamava-se simplesmente Francisco Duarte.
Será que o pai do Bonifácio foi o primeiro a ter o apelido Lobo, em São Vicente?

José Teodoro Prata

quarta-feira, 5 de julho de 2017

O nosso falar: marmeludo

Fui aos figos, há já umas semanas. Não em São Vicente, porque as figueiras de figos do Algarve que lá tinha (ando a enxertá-las) não dão nada, por via do frio da serra.
Foi nos Cebolais de Cima, terra demasiado quente, mas boa para os figos desta variedade.
Ao chegar às figueiras, a minha mulher deitou logo as mãos a uma pernada e eu avisei-a:
- São marmeludos, não prestam. - eram de uma figueira pindo de mel.
- O que é isso?
- Agora...
A expressão tinha saído à São Vicente, mas eu nem tinha consciência do que dissera e por outro lado os figos da figueira ao lado chamavam-me na urgência da colha.
Depois é que me pus a pensar. Então marmeludos é o mesmo que lampos. São os figos que aparecem semanas ou meses antes da época. Alguns nem prestam, estão inchados, mas nem sabem bem!
A minha mãe também aplicava o termo às pessoas soberbas, com aquele ar zangado que as faz parecer inchadas artificialmente, como os figos fora do tempo.

Já aqui tratámos o tema dos figos do Algarve, por outros chamados simplesmente Algarves. Estive a ver uns sites e alguns chamam-lhes dauphine e outros lampa preta. Não sei se é a mesma variedade ou se são os figos das fotos que parecem os do Algarve.

Este era marmeludo, mas uma delícia!
Numa figueira lisboa branca ou pingo de mel.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A Cruz da Oles

No dia 17 de Janeiro de 2015, com o título a “Cruz da Oles”, salvo erro, publiquei o meu segundo escrito no blogue.
Um pouco abaixo do cruzamento da estrada da Cascalheira (tão mal tratada está) e que dá acesso ao Casal da Serra, a estrada da Oles, que liga a vila à vizinha freguesia de Louriçal do Campo, existiu em cima de uma pesserra uma coluna cilíndrica encimada por uma cruz.
Com o corte dos pinheiros no local, terão sido os lenhadores que descobriram a coluna toda escavacada e terão colocado um pedaço na pesserra.
Dei uma volta para ver se descobria a cruz, missão infrutífera.
Para memória futura, aqui deixo fotografias dos pedaços e um troço da estrada.

Cada vez que há um corte, a estrada fica uma lástima.




J. M. S.

sábado, 1 de julho de 2017

O prazo da Paradanta

Rua e casas da Paradanta; foto do Carlos Matos

Em 1836, realizou-se o "Inventário dos Bens e Acções do Extinto Convento das Religiosas Franciscanas", de São Vicente da Beira. A dado passo escreveu-se:


«Um prazo que consta do Casal do Povo da Paradanta, freguesia desta vila de São Vicente da Beira, que parte com a divisa do termo em outro tempo da Covilhã e hoje do Fundão, águas vertentes, e do outro lado com fazenda da antiga religiosa Ângela do Céu e com fazenda de Manuel Antunes do povo dos Boxinos, cujo casal as religiosas do Convento de São Francisco desta vila de São Vicente da Beira aforaram em "fathoerim perpetuo", enquanto o Mundo durar, aos moradores do dito povo da Pradanta, a saber, Brás Leitaõ e sua mulher, a Manuel Mendes e sua mulher, a João Antunes e sua mulher, a Mateus Fernandes e sua mulher, a Iria Francisca viúva e aos mais moradores, pelo foro anual de cinquenta e um alqueires e meio de centeio, meados de trigo, em cada ano, e mais um carneiro vivo e um bode capado, três galinhas e duas dúzias de ovos, tudo pago em dia de Nossa Senhora de Agosto de cada ano, por escritura feita nas Notas do Tabelião Manoel de Andrade Azevedo desta vila, em doze de abril de mil setecentos e vinte e três. Cujo contrato foi avaliado pelos louvados fazendeiros deste inventário, abatido o foro, em trezentos e oitenta e sete mil e seiscentos réis.»

Vocabulário:
aforar - arrendar
águas vertentes - águas que correm encosta abaixo; neste caso, a propriedade ia do vale até ao cume do monte, cume que era o limite do concelho de S. Vicente da Beira com o concelho do Fundão
alqueire - medida de capacidade, neste caso para sólidos, correspondente a 15,48 litros, em S. Vicente da Beira (a medida variava de concelho para concelho).
bode - macho caprino adulto
foro - renda; os moradores da Paradanta pagavam 51,5 alqueires meados de trigo e centeio; considerando que um foro correspondia a um oitavo do que a propriedade podia produzir, o prazo da Paradanta produziria cerca de 400 alqueires, o que correspondia a mais de 6.000 litros de semente.
louvado - testemunha
Nossa Senhora de Agosto - dia 15 de agosto, em que se comemora a Assunção de Nossa Senhora; neste dia é que se pagavam quase todas as rendas, nesta região
prazo - propriedade arrendada
tabelião - notário

José Teodoro Prata

sexta-feira, 30 de junho de 2017

O apelido Paradanta


Prometi ao Joaquim Bispo pagar-lhe o texto poético sobre as mulheres da Paradanta com informações sobre este casal, embora ele não seja de lá (ver o comentário que ele postou no seu texto).

Os assuntos que vou focar, a propósito do registo de nascimento acima apresentado, não são novos, mas vale a pena voltar a eles:

- Ainda hoje existe o apelido familiar Paradanta, em pessoas da Partida. O avô do Manuel, o bebé deste registo, chamava-se Manuel Rodrigues Paradanta e era natural da Paradanta (por isso ganhou este apelido).
- O pai do batizado, Luís Rodrigues, era das Rochas de Cima. No século XIX (este batismo é de 23.05.1824) inúmeros jovens da freguesia de São Vicente casaram com jovens da freguesia de Alamaceda, sobretudo das povoações vizinhas (Mourelo, Partida, Vale de Figueira e Violeiro / Rochas de Cima, Ingarnal, Almaceda, Rochas de Baixo e Martim Branco). Nos séculos anteriores, isso não era tão frequente.
- O avô paterno do bebé Manuel era incógnito. Teve sorte o pai Luís, não ter sido abandonado para a roda, como então era costume. Parabéns à sua mãe Joaquina Rodrigues! Os filhos naturais (nascidos fora do casamento) eram muito menos frequentes do que os filhos expostos.
- Os avós maternos vivam na Partida (a avó Josefa Freire era de lá), mas a filha Joaquina Freire e o genro Luís Rodrigues vivam no Vale de Figueira. Existia e existirá ainda uma relação muito estreita entre as gentes da Partida e do Vale de Figueira (como entre São Vicente e o Casal da Fraga).
- Normalmente, as testemunhas dos batismos (não os padrinhos) eram o sacristão e o padre tesoureiro da Igreja: Joaquim Marques e Francisco José de Oliveira. Reparem na forma de assinar o nome: o mais recente, como o do padre, e o tradicional, com o nome próprio, seguido do sinal + e depois o apelido (Joaquim + Marques)

José Teodoro Prata

segunda-feira, 26 de junho de 2017

As mulheres da Paradanta

Vista geral da Paradanta. Foto de Carlos Matos.

As mulheres da Paradanta são o amparo da casa. Como são robustas e determinadas, as deusas primordiais admiram-nas e protegem-nas. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando, balançando as ancas cheias. E como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na Paradanta, para lhes fruírem a atividade, em vez da rigidez de antanho.
Na década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e brilhante. Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e pelo meio dos pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, abanando as ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática de igreja, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas paradantenses e, disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para abusar de alguma delas.
Na década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da Paradanta voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro. Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milhos, melancias e abóboras, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade. Extensões enormes eram calcorreadas em setembro, feijoeiro a feijoeiro, colhendo as vagens maduras para as cestas e descarregando-as no carro de vacas. Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida. A mais nova estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita. Se houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra ninguém. Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam no domingo à noite. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!
Na década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Paradanta amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas. Mesmo com poucos homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora da Orada. No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Paradanta, cantando modas menos religiosas que à ida.
Na década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a chegada do gás e da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se, nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de cinzas. As mulheres da Paradanta punham os cântaros à cabeça e percorriam distâncias até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o seu caminhar! Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.
Aos poucos, as mulheres da Paradanta, deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças. Felizmente, Hera, também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Paradanta voltaram a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso deleitado, no rosto divino.
Cariátides, na acrópole de Atenas.

Joaquim Bispo

domingo, 25 de junho de 2017