Barragem do Pisco, ontem, no
crepúsculo do anoitecer.
Apetece citar Sérgio Godinho:
«Ai, eu estive quase morto
No deserto
E o porto
Aqui tão perto»
Foto do
Francisco Barroso
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
Barragem do Pisco, ontem, no
crepúsculo do anoitecer.
Apetece citar Sérgio Godinho:
«Ai, eu estive quase morto
No deserto
E o porto
Aqui tão perto»
Foto do
Francisco Barroso
Era
uma grande tristeza que a gente sentia quando víamos as luzes acenderem-se do
outro lado da Ribeira, mesmo ali à nossa frente! A Vila parecia um cantinho de céu
estrelado, e do lado de cá, à noite, as ruas eram um negrume e as casas
alumiadas só pela luz das candeias e dos candeeiros a petróleo. Era uma
injustiça! Constava-se que a culpa era do Manuel da Silva, que disse que São
Vicente acabava na casa onde tinha a garagem, logo a seguir ao Posto.
Quando começaram a dizer que o Governador Civil e outros grandes de Castelo Branco vinham cá para a inauguração, resolvemos ir esperá-los com o nosso rancho para lhes pedirmos também a luz para o Casal. E também precisávamos de um tanque, que não tínhamos onde lavar a roupa. A partir daí, cachopas novas e mulheres já casadas, mesmo as que andavam todo o dia no campo ou na resina, como era o meu caso, não tivemos um serão de descanso: eu e a minha mãe, que estávamos mais acostumadas, começámos a escrever os versos (ainda chegámos a ir a casa do senhor Zé Lourenço a pedir a opinião dele) e também fomos nós que ensaiámos a marcha; as que sabiam de costura foram ao Sobral comprar a chita e talharam e coseram os fatos; outras foram ao Valcaria arranjar o vime para fazer os arcos. Ainda me lembro que foi a Maria Papoila que foi à lenha para aquecer o forno, e era lá que os iam moldando até terem a forma certa. Depois ainda tiveram que os enfeitar com flores de papel às cores. Quem não podia ajudar com trabalho dava dinheiro, que ainda se gastou muito. Só para petróleo cada uma de nós deu vinte e cinco tostões.
No
dia da inauguração saímos aqui do Casal e fomos até à ponte, que já lá tínhamos
a Banda à nossa espera. Depois seguimos todos em cortejo (havia outros ranchos,
mas o nosso era o que ia à frente) até à barreira do hospital, e foi lá que
esperámos os carros que vieram de Castelo Branco. Também já lá estava a gente
mais importante cá da terra e muito povo que veio da freguesia toda.
Mal
saíram dos carros, a Maria de Deus da Ti Lucinda e o meu Mário entregaram um
ramo de flores ao Governador Civil e começou logo tudo a andar. Era um mar de
gente: os grandes à frente, depois a Banda e os ranchos; no fim ia o povo a
bater palmas e a dar vivas.
O
que estava combinado era que, depois de dar a volta pelas ruas, ia toda a gente
para a Praça, as entidades subiam até ao balcão da Casa da Câmara e os ranchos desfilavam
cá em baixo. Mas não houve tempo: de repente começa a chover (estávamos em
abril…), e eles começaram logo a correr para dentro. Foi lá que fizeram os
discursos e no fim comeram um grande banquete que tinham à espera.
Os dos ranchos, cá fora, ficámos todos molhados e com os arcos a desfazerem-se. É claro, começou tudo a abalar. Nós também já íamos embora, mas apareceu o senhor António Prata e disse-me que não fosse, que subisse, que o senhor Governador Civil queria ouvir a nossa cantiga. Eu levava uma candeia de azeite na mão, para mostrar como é que a gente ainda se alumiava, e o papel com os versos (quem os tinha passado a limpo até tinha sido o Sebastião, que a letra dele era mais bonita que a nossa), e cantámos, para quem lá estava:
Esta nossa
freguesia
Que pra nós é a
primeira
Bem-vindos sejam
senhores
A São Vicente da
Beira
Nós somos de São
Vicente
É de cá que
queremos ser
Se somos
independentes
É sem a gente
saber
O rancho do Casal
da Fraga
Vem pra cantar e
rir
Nós não lhes
vimos dar nada
Vimos só pra lhes
pedir
Ó senhores
governantes
Tão agradáveis no
trato
Recebei as
homenagens
Das terras que há
pelo mato
Ó senhores
governantes
Concelhio e
distrital
Corações de
diamante
Almas de puro
cristal
Lembrai-vos dos
pobrezinhos
Dos pobres aqui é
claro
Que necessitam
carinho
Precisam do vosso
amparo
Ó senhores
governantes,
Homens de bom
coração
Atendei os nossos
rogos
Tenham de nós
compaixão
Pedimos a vossas
excelências
Que mais têm pra
nos dar
Também lhes
queremos pedir
Uns tanques para
lavar
O Casal já é tão
grande
Está entre meio
de flores
Quase não se veem
as casas
Tem oitenta
moradores
O Casal da Fraga
é tão lindo
Mas está tão
desprezado
Tudo lá é noite
escura
Só o centro
iluminado
Queremos-lhes
dizer senhores
Neste meio
resplendente
Aqui não há
distinção
O Casal é São
Vicente
Também lhes
queremos dizer
Que em S. Vicente
da Beira
Obra de tanto
valor
A nossa querida
bandeira
A nossa querida
bandeira
Obra de tanto
valor
Pena que ela não
tenha
O seu melhor
conservador
Dizemos a vossas
excelências
São Vicente é um
espelho
Pedimos junto à
bandeira
O nosso querido
concelho
Nosso querido São
Vicente
A quem temos
tanto amor
Nós temos em São
Vicente
Obras de tanto
valor
Já cá temos uma
escola
E temos um
hospital
O que nos faz
muita falta
É uma casa
paroquial
A Vila de São
Vicente
Como ela não
houve igual
Foi onde deram
entrada
Os primeiros reis
de Portugal
A Vila teve outro
nome
Terra de tantos
regalos
O transporte que
os trouxe
Foi montados em
cavalos
Viva o senhor
vigário
Que nos dá o seu
carinho
Vivam todos em
geral
E o senhor engenheiro Martinho.
Ao fim bateram-nos palmas e o senhor Governador Civil disse que tinha gostado muito, se podia levar o papel com os versos e a candeia, que era muito bonita. Ela nem era nossa, que a tínhamos ido pedir emprestada ao lagar do César, mas não tivemos cara para dizer que não.
Nota:
Esta história foi-me contada, mais ou menos como a deixo, pela Isabel do Chico
da Azenha, que, com a mãe, a Ti Luz do Valcovo, fez os versos e ensaiou o rancho
com que o Casal da Fraga se apresentou em abril de 1969, na inauguração de
alguns melhoramentos feitos na Vila. Passados dois anos, a luz ainda constava duma
lista de prioridades das obras a realizar na freguesia. Acabou por chegar
quatro ou cinco anos depois, mas os moradores do Casal, entre todos, tiveram
que pagar oitenta contos…
Os versos foram transcritos com algumas alterações da ortografia. Teria sido interessante apresentar cópia do original, mas o documento está muito danificado e parte do texto já se lê com dificuldade.
ML Ferreira
Ontem, de regresso a casa e a este blogue, houve um pequeno
problema técnico no avião que me trazia, e a viagem demorou mais meia hora do
que as duas horas e meia previstas.
Como vinha no banco fundeiro, local onde se situava uma das
casas de banho, na última hora foi tal o acumular de pessoas no corredor, à
minha volta, que exclamei para a minha gente:
- Pensam que isto é alguma comua!
Se estivesse em São Vicente da Beira, mandava-os para a
Devesa, que era para onde os adultos mais rezingões mandavam as crianças e
adolescentes que os incomodavam com correrias, algazarras, jogos da bola ou
andar de bicicleta na praça ou pelas ruas da nossa terra.
A Devesa era o nosso baldio na encosta oeste da Ribeirinha,
mesmo em frente à Vila. Comua vem de comum e comuna, não tendo
esta necessariamente apenas significado o político-ideológico a que atualmente
está reduzida. Aliás, o termo e o significado têm já muitas centenas de anos.
A minha mãe usava esta palavra em sentido pejorativo, um
local ou uma situação com muita gente, em que se fazem coisas não muito graves,
mas negativas, tipo bandalheira, anarquia.
É provável que este significado tivesse origem na campanha do
Estado Novo contra a ideologia comunista. A esmagadora maioria das pessoas não
percebia nada do assunto, mas a campanha das mais ilustres figuras do Estado e
do Partido, mesmo a nível local, era tão intensa que alguma coisa ficava na mentalidade
do povo.
Há poucas semanas, fiquei impressionado com as muitas referências
deste tipo presentes na poesia do nosso poeta José Lourenço. Mesmo que não
viesse a propósito, a certa altura do poema lá conseguia encaixar um louvor a
Salazar, à excelência do Estado Novo, que nos salvavam do Mal!
José Teodoro Prata
Foram assim as nossas jornadas, em 2012, há 12 anos. Este ano vamos realizá-las a 22 de setembro, na Partida. Estamos todos convidados!
Não sou nostálgico. Se o fosse, escreveria que eramos felizes e não o sabíamos!
José Teodoro Prata
É o lugar mais conhecido do Casal (quando mo perguntam e digo que moro em frente da taberna da Amália, ficam logo a saber onde é a minha casa), mas a fama já vem do tempo do pai, quando ainda era a do Marcelino, com outro ar e outra freguesia.
Atualmente é ponto de encontro, quase
só de mulheres, para um café e dois dedos de conversa; nas tardes de verão há
quem se demore na esplanada a beber um cai-bem,
refresco feito com uma mistura de refrigerante gasoso e xarope de groselha,
receita caseira. Mas isto são coisas dos tempos modernos, que, há pouco mais de
cinquenta anos, nenhuma mulher se atrevia a entrar na taberna, mesmo que fosse
para ir chamar o homem, esquecido a matar a sede depois de uma tarde de domingo
a jogar à malha. Por isso mandavam os filhos, se já se fazia tarde para a ceia,
que às vezes também eram encorridos para casa, apenas pelo apontar de um dedo e
o olhar esbugalhados de quem quer afirmar a autoridade do chefe da família. Eles
iam ficando sempre mais um pouco…
Mas havia o Ti Miguel Jerolme, um andarilho toda a vida, sempre
de um lado para ao outro à procura das melhores rezes para criar ou vender a
quem lhas rogasse nos mercados e nos talhos. Era uma paz d’alma, amigo de toda
a gente; também do Ti Marcelino, quase da mesma criação.
Quando deixou de andar por lá, no
negócio do gado, era raro o dia em que não aparecesse no Casal, quem sabe se
num chamamento do coração ao ninho onde se criou, ali a dois passos, e ficava
até se fazer noite, entremeando a conversa com mais um copinho. Vendo-o magrito,
não fosse o vinho cair-lhe na fraqueza, a Tia Trindade oferecia-lhe muitas
vezes uma bucha, quase sempre um bocado de pão com uma mancheia de azeitonas ou
uma talhada de queijo, e ele não dizia que não.
Quando começava a passar da hora, ia-lhe
dizendo: «É melhor ir andando, Ti Meguel, que se faz tarde e a sua mulher já
deve estar ralada…». Mas ele nunca tinha pressa de abalar: «Já vou…», e ia-se
deixando ficar, sentado num dos bancos corridos encostados à parede. Até que,
já noite escura, aparecia a Tia Laurentina com a lanterna na mão, e parecia ele
que via Deus: levantava-se logo, com a alegria de uma criança confiante na mãe
e, com o equilíbrio possível, caminhava atrás dela, pela vereda que os levava até
casa, no outro lado do ribeiro. E era assim, muitos dias…
Após a morte da Tia Laurentina, foi a
Chão, a última das filhas em casa, que, com a mesma dedicação e amor da mulher,
lhe serviu de estrela, alumiando-lhe as noites escuras no regresso, desde o
Casal da Fraga da sua infância, até ao Casalito onde se tinham criado os dez filhos que Deus lhes deu.
O Casal do Baraçal, já tão diferente, visto do Casal da Fraga (apenas as casas em primeiro plano, ao fundo é já a Devesa)
Nota: O senhor Miguel Jerónimo nasceu no Casal da Fraga, em 1905, numa casa duma travessa da rua de Santa Bárbara, uma das mais antigas do Casal, que ainda é habitada. Era filho de António Jerónimo Lopes, já aqui nascido, e de Maria Josefa, natural dos Pereiros. Teve oito irmãos. À exceção de uma irmã, todos se criaram, casaram e terão tido filhos. Do casamento com a senhora Laurentina Hipólito teve dez filhos, todos criados até à idade adulta, e só o Padre Zé e a Conceição (Chão) não deixam descendência. Será, por isso, uma das famílias com mais parentes em São Vicente. Faleceu em 1 de junho de 1981, poucos anos depois da mulher.
ML Ferreira
Foi em fevereiro de 2013. A Junta de Freguesia (não sei se mais alguma instituição) organizou uma tertúlia na casa Hipólito Raposo. Foi bonito. De vez em quando alguém recorda aquele convívio!
Foi tudo perfeito: taberna, comida, boa disposição, histórias...
O Casal da Fraga não é
um casal mas três: Casal do Baraçal, Casal da Fraga e Casal dos Ramos. Num
passado recente existia ainda o Casal do Monte do Surdo, que agora sobrevive
apenas nas cadernetas prediais, estando na linguagem comum incorporado no Casal
da Fraga.
Há cerca de 300 anos,
haveria apenas uma família de proprietários em cada casal (exceto no do Baraçal,
que não surge nas fontes). Todo o vale
onde corre o ribeiro que atravessa a estrada perto do entroncamento para os
Pereiros e Partida era propriedade do Conde de São Vicente, sendo a mais rica
das que tinha na freguesia. Os rendeiros viviam na casa, agora em ruínas, que
existe um pouco abaixo do referido entroncamento. O mais ilustre destes
rendeiros foi João Rodrigues Lourenço Caio, natural do Louriçal, que casara com
a filha do rendeiro anterior, José Leitão Paradanta. Chegou ao importante cargo
local de Capitão de Ordenanças da Vila, no tempo das Invasões Francesas
(1807-1812).
No Casal da Fraga, numa
casa que existiria na zona da atual residência do Comissário Barroso ou nas
proximidades, moraria Duarte da Fraga, cerca de 1700, e outros Fragas ali
continuaram a viver, ao longo de todo o século XVIII. Na casa em frente, que
foi do sr. Miguel Leitão e hoje é do filho Pe. José Augusto, existem as mais antigas
oliveiras de São Vicente. Fraga designa uma rocha ou uma forja de ferreiro.
Qual destas terá dado o nome ao casal? Ou nenhuma delas e Fraga vem do apelido
familiar desta família que ali viveu, com esse apelido, mais de um século?
Do Casal dos Ramos veio
a esposa de Manuel Rodrigues Fraga, chamada Luísa Maria Leitão (nascida cerca
de 1750), o que nos permite concluir que ali viveria pelo menos outra família.
Certo é que o casal foi crescendo, beneficiando do estrangulamento urbano provocado na Vila pelas casas senhoriais que detinham a maioria dos terrenos em redor da povoação: Casa Cunha, Visconde de Tinalhas e Casa Conde.
Em 1970, um ano após a
passagem do Presidente do Conselho pela Vila, a inaugurar a barragem e os
melhoramentos que a acompanharam (eletricidade e redes de água e esgotos), os habitantes do Casal decidiram que já era tempo
de acabar com um dos maiores perigos que haviam vivido durante séculos: a
travessia da ribeira pelas passadouras. Fizeram um peditório entre si e
contruíram um pontão sobre a ribeira, mais tarde alargado pela Junta de
Freguesia. Só o projeto custou 100 contos! E quando começaram as multas por
lavar roupa na ribeira, as mulheres do Casal foram com as da Vila numa
camioneta a Castelo Branco, falar com o Governador Civil e o Presidente da
Câmara. Não ganharam lavadouros, como as da Vila, mas não houve mais multas.
Anos depois, com a Vila
já eletrificada, tiveram de pagar do seu bolso a rede de postes e fios que
finalmente levou a eletricidade a suas casas. Até 1980, dos poderes talvez
apenas tenham recebido de graça a fonte que a junta edificara, em 1960, no que
ficou a ser chamado o Largo da Fonte. Até o pequeno pontão para o Casal do
Baraçal, sobre o ribeiro que desce do Monte do Surdo para a Ribeirinha, foi
construído pelo António Pereira.
Atualmente, o Casal da
Fraga tem arruamentos pavimentados, redes de água e esgotos, muitas casas novas
ou recuperadas, uma fábrica de engarrafamento de água, um restaurante, uma
taberna, uma associação que organiza a festa da Santa Bárbara, com sede própria,
e ganhou o estatuto de uma povoação autónoma e não apenas um sítio da Vila. Tem
pouca população jovem, como todo o interior, mas mantém o espírito bairrista e
ativo que sempre o caraterizou.
José Teodoro Prata