terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O tocador de realejo

Nasci e vivi no Casal da Fraga até aos 20 anos. Só de lá saí para ir para a tropa. Era muito amigo do teu tio João e do que toca reco-reco no rancho. Andávamos sempre juntos!
Nos anos 50 e 60, a malta da Vila ia toda para o Casal, ao bailarico. Era na taberna do Marcelino e adivinha quem era o tocador? Eu, a tocar realejo. Tudo a dançar, menos eu, que nem cheguei a aprender. E jogávamos à malha, naquele chão de terra em frente à taberna.
Depois fui para a tropa e tirei a especialidade de condutor. Já sabia que me mandavam para o Ultramar. Em Santa Margarida até esperavam que nós acabássemos a formação em Coimbra para depois irmos para a guerra.
No dia em que abalei, subi o caminho da ribeira e parei lá no alto. Virei-me e olhei para o Casal e depois passei os olhos por todo o vale até à Senhora da Orada. Não sabia se voltava a ver aquilo tudo.
A viagem para Angola demorou 12 dias. À chegada não nos deram de comer e fui mais um da Soalheira a um bar do porto comer umas sandes e comprar tabaco. Depois fomos de comboio para um quartel nos arredores de Luanda. Era tudo tão feio! Durante uns dias ainda senti o corpo para cima e para baixo, como se continuasse no baloiço do mar.
Ao segundo dia, o capitão avisou-nos: amanhã estão no mato, a qualquer momento podem ter o inimigo à vossa frente! Não largávamos a arma e o cinto com 100 balas, nem para comer! Aquilo pesava, mas depressa nos habituámos.
Nunca dei um tiro em combate, só alguns num campo de tiro, para a experimentar. A certa altura começámos a ouvir tiros e viemos embora, pois os inimigos estavam lá no alto a ver-nos. Mas nunca nos atacaram. Talvez por causa do Alferes Coelho. Na altura não sabia nada, ele era um como os outros, mas tinha de certeza um pequeno grupo de amigos com quem conversava.
Muitos anos depois de voltar, procurei o pessoal do meu batalhão na internet e encontrei logo o Alferes Coelho. Eu só o conhecia por esse nome, mas fiquei a saber que se chamava Mário Brochado Coelho e que tinha tido muitos problemas com a Pide, logo na Universidade. Aliás, foi mandado para o Ultramar de castigo e lá a Pide fazia um relatório dele todos os quinze dias. Ele nunca escreveu nenhum aerograma, pois sabia que lhos abriam logo. Mandava cartas para Luanda, pelos motoristas brancos que lá iam. Ele era advogado e defendeu muitos presos políticos. Escreveu isto tudo num livro que já estava esgotado, mas eu andei, andei e consegui comprá-lo. Quem mo trouxe do Porto foi um rapaz de Vila das Aves que estuda cá informática.
Ele fala de mim no livro. A certa altura escreve que está sentado na secretária a olhar pela janela para a palmeira. E que está guardado por dois soldados, o Espanhol e o Russo. Ele chamava-me Espanhol e ao outro chamavam Russo, não sei porquê. Escreveu que éramos um batalhão muito internacional, até lá tínhamos tido um Americano (tinha a mania de falar inglês), mas que já tinha sido mandado para outro lado.
O nosso quartel ficava a 120 quilómetros e a melhor coisa que fazíamos era ir a Luanda buscar cerveja. Na floresta aquilo era perigoso. Conduzia uma viatura enorme com para-choques largo de ferro carregado com sacos de areia. E a toda a volta a mesma coisa. Até debaixo dos pés tinha sacos de areia, para não irmos pelos ares se rebentássemos uma mina. Por duas vezes não morri por pouco, valeu-me Nossa Senhora.
Depois estive bastante tempo em Nova Lisboa, mas lá não havia guerra. Era tudo normal, uma cidade como aqui. Curioso, nunca me lembro dos tempos que lá passei, só dos que vivi no mato.


José Teodoro Prata

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O caldudo

O castanheiro é uma árvore de grande porte e longevidade que se cultiva em muitas regiões do Mediterrâneo. Até aos meados do século XX, em muitas regiões beirãs e transmontanas, existiam enormes soutos. Os nossos pais saíam da vila em direcção à Senhora da Orada, levavam uma saca ou uma cesta e iam apanhando as castanhas que caiam para o caminho; “tal a quantidade de castanheiros que havia”. Na serra existiam enormes exemplares. Os fogos, a doença da tinta… exterminaram a maior parte dos soutos na região de São Vicente da Beira.
Durantes séculos, a castanha era um dos alimentos principais dos povos que habitavam as zonas serranas.
Com a chegada dos espanhóis aos países andinos descobriram um tubérculo “batata” que aos poucos foi destronando a castanha.
As castanhas eram as nossas “batatas”, podem-se comer cozidas, assadas, adocicadas…
Os nossos pais e avós faziam um pitéu muito apreciado, nos nossos dias quase completamente esquecido. Caldudo era o seu nome.
Para se fazer um bom caldudo, são necessárias castanhas piladas. A castanha era colocada em caniços “varas que se estendiam por cima da lareira paralelas umas às outras com uma distância de cerca de um centímetro”; deitavam-se as castanhas em cima das varas, espalham-se e iam secando com o calor da chama.
Depois de secas, tirava-se a pele e guardavam-se em bolsas de pano.

Perguntei à minha mãe como se faz o caldudo:

Para se fazer um bom caldudo, as castanhas têm que estar bem secas.
Põem-se de molho de um dia para o outro, depois tiram-se algumas peles que ainda tenham, coloca-se água num tacho com um pouco de sal, deitam-se as castanhas lá para dentro e deixam-se cozer.
Com uma colher e um garfo, vemos se já se esmagam. Quando se esmagarem, estão cozidas.
Havia quem gostasse de esmagar as castanhas todas; a tua avó deixava sempre algumas inteiras…
Despejamos a água que ainda se encontra no tacho e colocamos o leite juntamente com o açúcar. Deixamos ferver lentamente e vamos provando.
Quando punha o leite e o açúcar, gostava de deitar um pouco de canela e uma casquinha de limão. Ficava mais saboroso, havia quem não pusesse.
E se não tivermos castanhas piladas, pode-se fazer com castanhas normais!
Pode, mas não é tão bom.
Se o caldudo for feito com castanhas “verdes”, antes de se porem no tacho a cozer não esquecer de fazer um corte na castanha, se não se fizer começam a inchar e desfazem-se. Depois de cozidas tira-se a casca…

José Manuel anotou, a explicação foi dada por sua mãe Maria da Trindade, no dia 21 de Outubro do ano 2016, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de São Vicente da Beira, sua vila Natal.


J. M. S.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Consaguinidade

Quanto mais prima, mas se lhe arrima.

O estudo demográfico Consanguinidade aparente em S. Vicente da Beira, a que já fiz referência neste blogue, é da autoria de Paulo J. Gama Mota e foi publicado na obra que abaixo se apresenta.


O Jaime Gama informa-nos que o autor tem raízes vicentinas:

«Sim, penso que é originário de São Vicente. Segundo a minha investigação, o avô do Dr. Paulo Jorge Gama Mota era Jacintho Gama, irmão do Ti Clemente Gama, "marido da ti Celeste Dias e irmã da tia Alzira Gama, casada com Manuel Gama, irmão do meu avô Fernando Gama "Fernandito". Morava ao pé do Posto da GNR e eram filhos de Manuel Gama que foi irmão do meu bisavô João Gama.»

José Teodoro Prata

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Endireita da Paradanta

Naquele tempo, havia poucos médicos e o dinheiro para consultas e medicamentos ainda era menos, por isso os mais pobres não tinham outro remédio senão recorrer aos santos da sua devoção ou aos curiosos, para se tratarem de qualquer mazela de que padecessem. Havia-os por todo o lado e para quase tudo usavam benzeduras, rezas e mezinhas feitas com o que tinham à mão.
Para problemas de ossos, não havia como o Endireita da Paradanta. Tinha uma fama tão grande que era procurado até por gente que vinha de longe. Dizem que às vezes lhe chegavam à porta tolhidos das costas ou com pernas e braços que mal podiam mexer e saíam de lá como se não fosse nada com eles. Por modos, até os médicos lhe mandavam os doentes, quando já não se entendiam com os males de que se queixavam.
Mas, como em todo o lado, aqui nas nossas terras há muita gente que não pode ver uma camisa lavada a um pobre e havia quem tivesse inveja de alguns bocaditos de terra que ele ia comprando à custa do trabalho que fazia. Devem ter ido dar parte dele, que um dia a autoridade bateu-lhe à porta.
- Como é que vossemecê se chama?
- Por enquanto ainda sou João; João Faustino, senhor guarda.
- Então e é vossemecê que anda aí a fazer-se passar por doutor?
- Não senhor, senhor guarda, que não estudei para isso. Desde pequeno que sou ferreiro, que foi a arte que o meu pai me deixou.
- Não estudou p’ra doutor, mas até parece; que por modos não lhe falta freguesia à porta. 
- Olhe, senhor guarda, lá isso é verdade, mas os doutores fazem o serviço deles e eu faço o meu, que neste mundo há trabalho para todos. Mas sempre lhe digo que para levar os ossos ao lugar, não há pai p’ra mim.
- Ai ele é assim? Então já vamos a ver se é como vossemecê diz. Traga-me aí uma galinha.
- Trago até duas, que tenho um galinheiro cheio delas, bem gordas.
- Para o que é, basta uma!
O ti João foi à capoeira, apanhou a galinha mais gorda e entregou-a a um dos guardas. Nem quis crer quando o viu agarrar no animal pelas patas, pegar no bastão e quebrar-lhas pelo meio.  
- Agora é que vamos a ver se é como vossemecê diz! Pegue lá no bicho e ponha-o outra vez a andar, se for capaz.
O endireita agarrou no frango e, mexe daqui, puxa dali, roda dacolá, passado um bocado põe-no outra vez no chão. O animal, mal se viu à solta, ó pernas para que vos quero! Desatou a correr por ali fora e já ninguém o agarrou. Os guardas até ficaram aparvalhados.
- Sim senhora, por esta é que nós não estávamos à espera! Olhe, ti João, fique cá com Deus e governe a sua vida, que bem merece. Nós já levamos que contar.


M. L. Ferreira

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O Dr. Nicolau Veloso

Estive a recapitular e já fiz duas publicações sobre o Nicolau Veloso. Mas numa coloquei um documento do de Távora e noutra do de Carvalho.
Hoje apresento documentos dos dois: o casamento do de Carvalho e o casamento de dois jovens de fora da Vila que trabalhavam no forno do Licenciado Nicolau Veloso de Távora. Era então um letrado, o que o coloca na primeira linha para ganhar nome de rua.
Outra questão são os fornos da Vila. Não havia fornos comunitários e as pessoas mais ricas tinham um forno, onde quem cozesse pão pagava uma percentagem da cozedura. O mesmo se passava nos moinhos e os lagares. Aliás, na Torre, todos os poderosos da região tinham um moinho, para ganhar com a correnteza das águas da Ocreza. O nome do pagamento variava do forno para o moinho (maquia) ou o lagar (poia), mas o valor não, era sempre um oitavo (1/8).
Agora imaginem este cenário muito próximo da realidade: um rendeiro colhia os cereais e a renda menor que poderia pagar era 1/8 (se colhesse 8 sacas, entregava uma). Depois moía o cereal, quinzenalmente ou de mês a mês, mas sempre que fosse ao moinho, que poderia ser do senhorio das terras que cultivava, deixava 1/8 da semente ou da farinha. De seguida ia ao forno de um senhor da vila, que poderia ser do dono das terras que trazia arrendadas, e entregava 1/8 do pão no final da cozedura. Não admira que se morresse tanto!



José Teodoro Prata

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Neve

Há neve um pouco por todo o país, mas entre o sopé da Gardunha e o da serra de São Mamede (Portalegre) não caiu nada. Daqui (Castelo Branco) vê-se o cabeço do Mastro todo branquinho, parece um lençol estendido lá do alto até à capela da Senhora da Orada.
A imagem abaixo apresentada é do site http://www1.hotelsamasafundao.com/index.php/galeria.
Não será deste nevão, mas é assim que estarão os altos da Gardunha.


A foto é do nevão de 2010, tirada pelo Jaime Gama.
Ontem o santuário estaria igual.

José Teodoro Prata