sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Crepúsculos - 1

A ti’ Maria Santo — improvável heroína destes enredos — caminhava para lá da oitava década!

Certa tarde, quase ao crepúsculo da noitinha, encontrava-se sozinha sentada no poial da porta de entrada da Casa da Serra. Uma porta que mandava balanço! Fora construída com fortíssimas ombreiras e valente lintel, tudo em grandes blocos de granito cortados no maciço da Gardunha. Depois de talhadas, estas pedras, pelo seu porte, requeriam, para serem assentes no lugar, a força de meia dúzia de homens, devidamente munidos de pistolos e pés-de-cabra.

Estava-se num domingo de verão como tantos outros que tinham passado pela sua existência. O dia aproximava-se do seu termo. Tanto quanto avançava para o epílogo a vida desta corajosa mulher, lenta, mas inexoravelmente! Tinha corrido uma tormenta de anos! Eram inenarráveis os trabalhos e canseiras a labutar de sol a sol para criar a numerosa prole!

Como todos nós, ela agira sempre, ao longo da vida, como se fosse eterna, como se quisesse viver para sempre! Pois que a inconsciência do andar do tempo é, afinal, o combustível da máquina do mundo. A pensar na morte nunca ninguém levantaria um dedo, nem delinearia qualquer plano e o homem não passaria de recoletor. O pior é que essa leviandade também provoca muita presunção no ser humano. A sensação de imortalidade, enquanto respira saúde, leva-o, muitas vezes, aos maiores desvarios!  

Sobre isto, ouviam-se, os antigos homens da Vila, que cavaqueavam e apreciavam o bom dichote e a sábia opinião, fruto da prática da vivência acumulada. Necessário era apenas que estivessem de maré favorável. Nestes ajuntamentos os homens matavam o tempo que lhes restava. Já era pouco, mas, longe de o desperdiçarem, enriqueciam-se mutuamente. Os jovens, esses, não estavam para os ouvir! Iam muito distantes as épocas em que as assembleias dos Anciãos botavam lei! Tempos em que os mais idosos eram considerados e respeitados pela comunidade, pela sua experiência e saber; e não lançados em hospícios à espera do fim, como peças de fraco préstimo! Os filhos deixaram de ter tempo para cuidar dos pais. São os custos do progresso, onde a materialidade se antepõe ao amor, a economia supera a política e o ser humano, em vez de se sobrepor à coisa, subordina-se-lhe! ‘Quo vadis homini’?

Aqueles velhos, ao tempo, porém, sentavam-se a um canto da Praça, num banco ou no muro de granito, perto de uma pilastra, a conversar.   

— Dai graças a Deus por ainda caminhardes nesta vida…! — dizia pausadamente o Chequim do Pontão, abrindo as hostilidades. ‘Chequim’ era uma corruptela de Joaquim! O linguajar não é um erro do idioma, é antes a arte local do falar!

E prosseguia:  

— Enquanto por aqui deambulardes, nem que seja por mais uns escassos dez anos, podereis ainda dar volta a muita coisa…!  

— Ora adeus! — replicou o José Latoeiro, assim apelidado por ter sido essa a sua profissão durante toda a vida. — Para nós, que estamos perto da morte, o que são dez anos comparados com a eternidade que nos espera para breve? — questionava.  

— Dez anos para um vivo é um bom migalho de tempo, se pensarmos no prazo total da licença! — avaliou o Jaime do Forno.

— Qual licença? — interrogaram.

— Qual há de ser? A que um homem tira para poder andar por cá! — reafirmou.

Riram.

Mas ele continuou:

 — O tempo para os vivos não é o mesmo que para os mortos!

— Pois não…! — acudiu, adiantando-se ao grupo, o Manuel Azenha, que morava no Moinho de Cima.

— Então aí tendes! Durante dez anos está-se com a família, convive-se com os filhos, abraçam-se os netos e conversa-se com os amigos…! — prosseguiu Jaime. — As pequenas coisas e não os grandes feitos, é que dão felicidade!

— Lá nisso tens toda a razão. — admitiu o Carlos do Chão do Gaio.

— … Por isso — concluiu o do Forno — como se está a ver, uma década para um vivo é ainda muito tempo, ao passo que para um defunto não é nada!

— É verdade! Nunca as tuas palavras foram tão certas! Começo a estar da tua banda, ó compadre — concordou o João do Pinheiro, que tinha o seu rapaz do meio casado com a filha mais nova do interlocutor.

— Quando se morre, a roda do tempo deixa de girar. Entra-se na infinidade. Aí não há tempo! Um dia tudo terminará! Loucos são os que julgam que nunca acabam…! — filosofou o Julião da Farmácia.

— Está claro! Muitos andam é distraídos…! — dissera ainda o Albertino da Rosa.   

 — Pois, com certeza! — responderam os outros.    

E o palratório da companhia continuava animado como se fosse um exercício de preparação para, no fim, irem, em malta, molhar a palavra, bebendo a sossega na taberna da Viúva ou do João Coxo, no meio do habitual relambório que a exaltação do tinto fazia crescer ainda mais.

 

Mas alguns espertalhões davam ares de intemporalidade: a trabalhar até desoras; a ir ao babeiro só à meia-noite de sábado; sem tempo para nada e sempre sobejos, a querer este mundo e o outro…! À bazófia desses, quem melhor respondia era o padre Leal com os rasgos arrebatados das suas pregações.     

Por muitos anos, veio ele à Vila fazer os sermões da Semana Santa.

— Deus lance sobre vós o Seu perdão, ingratas criaturas! Longo é o caminho que passa pelo Além, mas curta é existência na Terra! — augurava!

Homem de figura alta e larga, envergava batina negra, peça única, inteiriça, até aos pés, ampla de mangas a tocar os pulsos, como um tribuno! Com a sua eloquência e voz tonitruante, fazia chorar as pedras da calçada velha! As mulheres, essas, desfaziam-se em pranto com a oratória do vigoroso padre, incisiva e certeira nas suas prédicas, a apelar ao sentimento.

Na piedosa procissão dos Passos, em cima do púlpito amovível de madeira na Crucifixão do Calvário ou sobre o muro da Casa Cunha, no Encontro da Fonte Velha, era daí que falava à multidão. Da carga dramática se encarregaria ele, com o seu verbo, o tom enérgico e o gesto impetuoso e preciso. Habilidosamente, fazia resvalar sempre a alocução para o tema dos mineiros debaixo do chão nas minas da Panasqueira, onde trabalhou uma geração de homens da Vila; ou para o dos soldados na guerra do Ultramar para onde era despejada a juventude do país!

E concretizava:

— Caros irmãos, tende prudência na vossa vida! Tudo termina em breve! Ligeiros são os dias, mesmo para aqueles que se julgam mais pegados às coisas terrenas! As facilidades e prazeres efémeros do nosso quotidiano, são enganos a que preside o Maligno. O Mundo, o Demónio e a Carne querem a vossa perdição! E a morte em pecado mortal pode sobrevir a qualquer momento, a velhos ou novos, porque os desígnios de Deus são insondáveis. Previnam-se e vigiem! A recompensa não pode ser igual para todos, porque então Deus não seria justo! O prémio só pode ser segundo a obra e a fé de cada um!

E mais isto e mais aquilo, ali lançava o anátema sobre os ouvintes, como na época era de uso, pobres e amedrontadas criaturas, rústicos campesinos, cuja face encarquilhada pelo frio dos invernos, pendia ainda mais com o peso da culpa, mormente daqueles que mais se sentiam relapsos com a Igreja.

Após o discurso, ouvia-se um certo rumor, um pigarrear respeitoso de regularização do fôlego que tinha estado um pouco em suspenso durante a dissertação; e alguns homens, também tocados pelas palavras, sussurravam:

— Sim, senhor…!  

— Que grande sermão!

— É um grande pregador…!

— E que timbre de voz!

Outros e bons tempos!

 

A ti’ Maria Santo sempre fora, pois, uma mulher de ação! Um poço de génio e inquietude. Danada para a vida! Nisso, superava o homem, o ti’ Bernardo Garrancho — o outro inverosímil protagonista destas mal amanhadas linhas — que com ela jornadeava pela existência fora, havia uma porrada de tempo! E cuja vida se encaminhava, igualmente, para o seu término.

O tal que, como noutras ocasiões já se aludiu, devia o nome ‘Garrancho’ ao facto de possuir o indicador direito, torto; tinha ficado curvado para dentro, por mor de um acidente com a tesoura de podar!  

Aquilo lá terá mexido com o osso e o tendão! Era o mais certo! A mulher é que lhe fizera o tratamento. Depois de desinfetar o dedo com aguardente, enrolou-lhe um paninho lavado, apertado quanto bastasse, por forma a estancar o sangue. Passadas as dores, a ferida foi sarando, como sezoavam as mazelas dos animais! Era tudo carne! Havia de se curar! Mas, por fim, o dedo quedou-se, ganhando a forma da posição do curativo.

Deixá-lo! O principal era que, quando recuperada, a mão pudesse continuar com suficiente funcionalidade. Punha sempre uma tala, quando uma cabra partia uma perna; mas, se fizesse o mesmo com o homem, o dedo em vez de torto, poderia ficar permanentemente ereto

— Credo! — enriçava-se ela!

Isso, de facto, seria pior! Entre uma coisa e outra, o melhor era que solidificasse curvado! Assim, já estava pronto para agarrar o cabo da enxada, o rabo do arado ou outra qualquer ferramenta de trabalho…! 

Gentes devotas que, para santas só lhes faltava a auréola! Arcavam com os aleijões e os estropiamentos com a mesma modéstia com que assumiam as fatalidades da sua condição! Dentes cerrados perante a adversidade, exigiam apenas poder trabalhar! Tinham, contudo, o seu desabafo:

— Ora, uma destas, hã! — queixava-se Garrancho quando se viu sem aptidão para tratar da vida, apenas com a mão esquerda boa, a poder laborar! — Fica um homem para aqui sem poder fazer nada! — descoroçoava.

Estava impossibilitado de executar alguns dos trabalhos mais simples; nem sequer podia traçar a comida para a burra. Embora não se irritasse — que não era homem para isso — incomodava-se por ver a mulher esforçada, obrigada a ajudar nos serviços que não lhe estavam cometidos e muito para além das tarefas de casa que lhe eram confiadas.

‘Do mal, o menos’ — pensou o estoico serrano, como pensa qualquer português! — ‘podia ser pior’!

É que, mesmo assim, ainda podia levar as cabras para o mato. Com o cajado de marmeleiro de dois metros de comprimento na mão esquerda, podia guardá-las, auxiliado pelo Tejo, o cão! Além disso, falava com as cabras e dizia as palavras habituais de incentivo ou retração do rebanho, conforme o que mais lhe conviesse; nunca é fácil lidar com um coletivo mesmo sendo — ou por ser — de animais! Ponto era, porém, que o controlasse.

— Ai o raio parta as cabras e mais o diabo! Vamos lá! — e elas avançavam. Mas também podia falar noutro tom, sempre com voz firme:

— Alto aí…! Eh! lambisqueiras! Quem é que vos mandou passar para lá do marco da estrema?!

Fazia um gesto com o varapau para meter medo, ao mesmo tempo que, por suas próprias e boas artes labiais, lançava um agudo assobio — zííííífff…! — a cortar os ares. O som estridente ecoava pelas redondezas, fazendo levantar num voo cavo e uníssono, todos à uma, o bando de pardais que debicava o rolheiro do centeio que aguardava a malha perto da eira.  

O rebanho estacava assustadiço, a perscrutar o dono; e ele dava-lhe nova voz de comando:

— Rodem lá para trás que isto aqui não é vosso!

E elas obedeciam.

 

Com a mão do homem empanada, a mulher sempre haveria de fazer certas tarefas inadiáveis, sob pena de a vida deles, tal como estava organizada, se tornar incomportável. Os filhos, já casados, nem sempre calhava estarem disponíveis para ajudar. Em certos anos, nas alturas de aperto, pelas malhas ou pela colheita da azeitona, até já tinham trazido um ou dois homens a trabalhar por dia; podia ser a seco ou incluir o jantar ao meio-dia. Comia-se do que havia: a boa sopa de feijão, batata e couve, com um pouco de massa, onde era cozido um bocado de toucinho da salgadeira que servia de conduto. Cada um punha uma boa talhada em cima que uma grande fatia de broa e iam manobrando a navalha; cortavam pequenos pedaços, ora de uma, ora de outra e metiam na boca, saboreando pausadamente a refeição e conversando um pouco. Acompanhavam com azeitonas e emborcavam um ou dois copos de tinto. Comiam fruta da época da fazenda.

— O descanso está feito e o corpo refeito. Estais comidos e bebidos! Ide à vida! — dizia Garrancho incentivando-os ao trabalho! E eles lá iam, às vezes com um gesto a adivinhar uma pontinha de preguiça, a indiciar que os corpos queriam ainda permanecer na modorra por mais algum tempo.   

  

Mas, bem, fora dessas épocas, a ti’ Maria Santo, enquanto o homem não recuperava por completo, ia ordenhando as cabras. Quando havia cabritos pequenos, era só ordenhada uma teta a cada cabra parida; mesmo assim, com o sentido nos filhos, elas encolhiam parte do leite.

— Andem lá, minhas doidas, não se façam rogadas; têm aí muito leitinho para os meninos! — assim falava ela para as chibas, passando-lhes a mão pelo lombo para as descontrair e melhor tirar o precioso líquido proteico, tão necessário para o almoço, logo pela manhã cedo, como para manutenção da queijaria.

Os cabritos tinham que se contentar com o resto do amojo; no fim, apartava-os para o chiqueiro. Punha na manjedoura da burra os caneirões e a palha, ainda que sem serem traçados; chegava o feno ao comedouro das cabras, na loja, e dava de comer aos outros vivos: porcos, galinhas e coelhos. Fazia ainda as regas e outros trabalhos menos pesados. Mulher piedosa de ‘antes crer que conhecer’, estava sempre pronta a compreender os excessos pedidos pela dura existência!

— Valha-nos Deus, valha, valha, porque Ele não deixa nada ao acaso! — dizia para o ti’ Bernardo. — O que se perde em sofrimento, ganha-se em redenção!

 

Ela era mais baixa de compleição que o homem. Ele, de boa estatura corporal, mas tranquilo e com uma alma a condizer! A sua quietude não lhe tirava, porém, a afoiteza e a ocasião de levantar a voz quando necessário; não andava ali a papar moscas! Qualidades que lhe vinham do tempo em que teve que conter os filhos — que nem tanto as filhas! — mocetões encorpados, quando estes ainda tinham demasiado sangue na guelra.

A sua Casa da Vila batia, lá atrás, cozinha com cozinha, com a do Chico Cigano. E Bernardo apercebia-se, à noite, da ladainha do patriarca quando este tentava, a custo, indagar do cerne das discussões de família, bradando, alto e bom som, em castelhano:  

‘Que te passa’?!

Tanta vez o ti’ Bernardo ouviu o vizinho, que começou, ele mesmo, a repetir, quando se altercava com os filhos:

— ‘Que te passa’?!

Como ouvia ao amigo Cigano.

A expressão, dita assim, tal e qual, em língua estrangeira, fazia estacar a vozearia e passou a impor o respeito, quer numa, quer na outra casa!

Garrancho seguia depois com a descompostura do costume.  

— Quem não tem olhos que os abra! Orelha no ar, hã! Não tomem caminho não…! — advertia. — Aquele que bem fizer a cama, nela se deita! — concluía ainda, em jeito de aviso, para os suster que, naquelas idades, alguns começavam a querer trepar e mandar mais que o pai.

Mas ele admoestava-os:

— Ato lá! Aonde é que já chegámos? — eles quedavam por respeito. Caso contrário, mesmo já taludos, podia ser o cabo dos trabalhos. E insistia:

— Debaixo do meu teto mando eu! Cai-te uma orelhada na cara que te viro para o outro lado…! — intimidava.

Os rapagões até tinham arcaboiço para a suportar. Mas, se isso acontecesse — tem-te senão levas mais! — o melhor era calar e ficar com ela!

E assim alcançava Garrancho a ordem e o equilíbrio necessário à paz do lar.

 

De maneiras que, ela e ele, complementavam-se! Tirante aquela época, um pouco atribulada, em que teve que se impor a educar a progenitura, lá caminhavam pacificamente e sem alaridos. Gente muito palradora desassossega o espírito; e no caos ninguém sabe onde fica o norte. Por isso, o barco de muitos, na Vila, andava frequentemente à deriva. Mas, graças se dessem ao Santíssimo Sacramento, o mesmo não acontecia com o seu arranjinho comum, para o que muito contribuía a firmeza e serenidade do timoneiro.

Tratava-se de um casal com certos haveres em terras, gados e lavouras, como algumas vezes também se tem notado. Situar-se-iam um bocado acima da maioria, porque tinham, de seu, mais do que a média dos pequenos agricultores de subsistência. Chegaram — calcule-se bem! — a ser rendeiros do Casal do Ayres Raposo, homem de avultados meios que, em posses, ficaria logo abaixo das casas mais nobres da Vila. Ali lhes havia nascido a maior parte da vasta descendência, homens e mulheres! Acabado este arrendamento, rumaram a ocupar a sua propriedade da Serra, onde agora se encontravam, a que acrescia o cultivo de outros pedaços nos Aldeões e na Fonte da Portela.

‘Cada um quere-se com as suas coisas.’ — ruminava Garrancho para a mulher.

Quando decidiram ir tratar o que era seu, levaram consigo dois rebanhos: o dos filhos e o das cabras; e ainda, como é bom de ver, todos os atafais precisos para a vida da lavoura.

Como se entrevê, Garrancho, nestas andanças, governava bem a sua vida. No decorrer da sua longa experiência de homem do campo, também aprendera a ajuizar o tempo na roda das estações do ano; fazia-o quase tão acertadamente como o Almanaque de S. Miguel previa, de acordo com a sabedoria dos entendidos, as luas e os eclipses! Se, ao pôr-do-sol, via uma orla de nuvens escuras e grossas sobre a imponente serra do Ingarnal, lá longe, a poente, opinava em conferência com os vizinhos, em certos dias, à porta da Casa da Vila, quando todos estavam a regressar das fazendas:  

— Ó rapazes, estais a ver além aquela barda? Se ela fecha cá para o nosso lado, amanhã temos chuva! Assim eu tivesse a certeza de entrar no reino dos eleitos!

Lá cantava o bardo ou vate da Gardunha, inspirado noutro homem de sabedoria popular:  

 

Conhecia o passado,

Previa o futuro,

E tinha vistas largas… (a)

 

Desse mesmo dom de vaticínio gozava Garrancho! Com efeito, aquele fenómeno meteorológico das nuvens, começava a aparecer por volta do fim do verão, com os primeiros indícios do tempo incerto, quando se verificava o equinócio de setembro e estava prestes a entrar o outono, ali pela festa dos anjos guardiães, Miguel, Rafael e Gabriel.

Era a época do termo do ciclo dos frutos de verão e dos cultivos de regadio, batatas e milho. Faziam-se as contas do ano agrícola, terminavam alguns arrendamentos rurais e celebravam-se outros e um ciclo, igualmente, findava. Assim aconteceu no Casal do Ayres Raposo. Doravante os dois velhos voltaram a empossar-se dos teres e haveres de que eram senhorios. Um crepúsculo mais ocorrera, para que outro dia pudesse ressurgir.

A vida, acreditavam eles, havia de continuar.

 

(a) Fernando Pereira, Tobias

Nota: neste texto podem ter sido usadas palavras ou expressões do léxico local ou regional que não constam dos dicionários oficiais.

       

JOSÉ BARROSO

domingo, 1 de novembro de 2020

Azeitona galega e galeguinha?

Fui à azeitona, altura ideal para vos colocar a seguinte questão: existe a azeitona galega e uma subespécie a que chamaremos galeguinha, como a da cantiga?

Eu explico melhor: leio que a azeitona galega é pequenina, mas há oliveiras que a dão mais grossa, às vezes lado a lado e por isso a diferença não é do trato. E isto repete-se a cada ano.

Esta é pequenina.

A ser uma outra variedade, ela é tão abundante como a galega. Uma hipótese é ser do porta-enxerto, que dá caraterísticas um pouco diferentes ao fruto.

O que me dizem? 

Azeitona galeguinha

Azeitona galeguinha,
Azeitona galeguinha...
Que a comem os pardais
Que a vêm comer os pardais!
Comem uma, comem duas;
Comem uma, comem duas...
Comem três, não querem mais;
Ai, comem três, não querem mais!
 
Azeitona galeguinha,
Azeitona galeguinha...
Quando vai para o lagar,
Ai, quando vai para o lagar
É como a moça bonita,
É como a moça bonita,
Que todos lhe vão falar,
Ai, que todos lhe vão falar!
 
A azeitona galeguinha
Quando vai para o lagar,
É como a moça bonita,
Ai, que todos lhe vão falar!
https://lyricstranslate.com

Azeitona galeguinha

 

Azeitona galeguinha,

Azeitona galeguinha...

Que a comem os pardais

Que a vêm comer os pardais!

Comem uma, comem duas;

Comem uma, comem duas...

Comem três, não querem mais;

Ai, comem três, não querem mais!

 

Azeitona galeguinha,

Azeitona galeguinha...

Quando vai para o lagar,

Ai, quando vai para o lagar

É como a moça bonita,

É como a moça bonita,

Que todos lhe vão falar,

Ai, que todos lhe vão falar!

 

A azeitona galeguinha

Quando vai para o lagar,

É como a moça bonita,

Ai, que todos lhe vão falar!

José Teodoro Prata

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Vicentinos ilustres

 Felisberto Coelho Teles Jordão Robles Monteiro

VIDA E OBRA

- Nasceu em São Vicente da Beira, em 1888, sendo batizado com o nome de Felisberto.

- Era filho de Felisberto Coelho Teles Jordão Monteiro, secretário da Administração do Concelho e natural de São Pedro, Vila Real, e de Mariana Augusta Ribeiro Robles, natural de S. Vicente da Beira.

- Estudou no Seminário da Guarda, de onde saiu aconselhado pelo bispo a trocar o altar pelo palco.

- Frequentou o Curso Superior de Letras, como aluno voluntário.

- Casou, em 1920, com Amélia Schmidt Lafourcade Rey Colaço. O casal teve uma filha, também atriz: Mariana Dolores Rey Colaço Robles Monteiro (1922-2010).

- Fundou, com a esposa, a companhia “Rey Colaço-Robles Monteiro”, sediada no Teatro Nacional D. Maria II. Ela era uma atriz de exceção e ainda escolhia o reportório da companhia, distribuía as peças e montava os espetáculos; ele era ator, marcava as peças no palco, ensaiava e fazia o trabalho técnico e administrativo. Foi a companhia de teatro mais duradoura da Europa, 53 anos.

- Faleceu em Lisboa, no ano de 1958.

Rua Nicolau Veloso, onde se situa a casa da família Robles




Casamento de Robles Monteiro com Amélia Rey Colaço

José Teodoro Prata

domingo, 25 de outubro de 2020

Livraria daFRAGA

O nosso José Miguel Teodoro sempre trabalhou com livros e tem uma paixão especial pelos que estão fora do tempo. Por isso criou um projeto alfarrabista e este site é sua janela para o mundo.

Se quiser receber informação regular, faça o pedido para os e-mails da página de apresentação:

https://mail.google.com/mail/u/1/#inbox/FMfcgxwKhqrMDDkHwwnzMZwKZWcwtLbW

Para entrar no site:

https://www.dafraga.net/?utm_campaign=13cf6a9a-97a5-4049-8631-6d5694ae529f&utm_source=so&utm_medium=mail&cid=18a21f74-503d-4b24-bc72-614428756846

José Teodoro Prata

sábado, 17 de outubro de 2020

Os nossos primeiros professores

Nem sei se percebi bem, mas a notícia do jornal “Reconquista” desta semana sobre o provável fim da Escola Superior de Educação de Castelo Branco deixou-me alguma inquietação. A notícia não fala das razões do encerramento nem refere se já existe ou será criada outra escola de formação de professores que a substitua. Fica-se com a ideia de que a atual ESECB está a passar por alguns dos problemas das que a antecederam, mas que, apesar das muitas dificuldades, foram fundamentais para responder às enormes carências de pessoal docente para ocupar os lugares criados pela legislação que decretara a escolaridade obrigatória há já alguns anos (legislação que só muito tempo mais tarde começou a ser cumprida).

No início do século XX o analfabetismo era muito elevado em todo o País, mas principalmente nas regiões do interior, e junto das mulheres (em 1900, no distrito de Castelo Branco, num total de 216.618 habitantes, o número de homens analfabetos era de 84.623, e o das mulheres era de 102.764. Em 1950 a situação tinha melhorado um pouco, mas continuava a ser muito desfavorável para o sexo feminino: dos 273.468 habitantes, o analfabetismo nos homens era de 55.333, e nas mulheres era de 84.765).

As escolas de formação de professores tiveram também um papel importante na mobilidade social de um número significativo de rapazes e raparigas, principalmente das zonas rurais, que, sem elas, em meados do século XX ainda não poderiam sonhar em ter uma vida muito diferente da dos seus pais e avós.

 

Coincidência, ou não, por estes dias tenho andado a ler um trabalho de Francisco Goulão (Instrução Popular na Beira Baixa), onde, de uma forma muito exaustiva, o autor faz o retrato da primeira escola de formação de professores de Castelo Branco:

Criada em 1897, por decreto régio de 3 de Dezembro, iniciou as atividades em 17 de junho de 1898. Começou por se chamar Escola de Habilitação Distrital para o Magistério Primário; passou depois a Escola Normal e por fim a Escola Primária Superior (o nome por que era mais frequentemente designada e conhecida era Escola Normal). Recebia alunos de todo o distrito e alguns até de localidades mais distantes, como Coimbra, Guarda, ou Lisboa.

Durante os poucos anos de existência, a escola passou por muitas dificuldades, desde a precariedade das instalações (começou por funcionar numa casa na rua Vaz Preto; passou depois para outra dentro das muralhas do Castelo e finalmente para uma casa anexa ao Liceu Nuno Álvares, junto ao Paço Episcopal), dificuldade em recrutar pessoal docente, instabilidade política, dificuldades financeiras, oscilação da frequência (especialmente baixa a partir dos anos de 1924/1925), etc. que por várias vezes puseram em causa a sua continuidade. Em 1926 foi extinta definitivamente e, por quase trinta anos, não existiu nenhuma escola de formação de professores em Castelo Branco.

 

Consultando a lista dos alunos ao longo dos vários anos de funcionamento da Escola, encontramos vários nomes de rapazes e raparigas de São Vicente da Beira, que terão sido os primeiros a formarem-se e a exercer a profissão de professor primário:

 

Jorge Martins Ribeiro – Filho de Manuel António Martins Ribeiro, proprietário, do Louriçal do Campo, e de Francisca dos Mártires Moura de Brito, de SVB, nasceu no dia 22/01/1877, na Rua da Fonte. Fez o exame final do curso no ano de 1899, aos 21 anos de idade.

Terá falecido ainda jovem.

 

Maria Hermínia Ramos Lino – Filha de António Lino Lopes, jornaleiro, e de Maria José, ambos naturais de SVB, nasceu no dia 08/09/1884, na Rua de São Francisco.

Fez o exame final do curso no ano de 1902.

Faleceu em outubro de 1940.

 

Maria do Patrocínio Gama – Filha de Manuel Gama, jornaleiro, e de Maria Emília, ambos de SVB, nasceu no dia 03/07/1880, na Rua de São Francisco. Fez o exame final de curso no ano de 1903.

Faleceu na freguesia de Santa Maria da Graça, Setúbal, no dia 15/08/1961(?)

 

Maria da Ascensão Caio – Filha de João Maria dos Santos Caio, comerciante, natural de Monforte, e de Josefa Paulina, de SVB, nasceu no dia 18/05/1887, na Rua do Beco.

Fez o exame final no ano de 1905, aos 19 anos de idade.

Casou em 08/03/1911 (não é referido o nome do noivo nem a localidade). Também não se sabe a data e local da morte. 

 

Maria do Egipto Alves de Sousa – Filha de Simão Alves de Sousa, pedreiro, e de Maria da Natividade Raposo, ambos naturais de SVB, nasceu no dia 27/08/1887, na rua das Lajes.

Fez o exame final no ano de 1907, aos 19 anos de idade.

Terá exercido numa escola de Caria, pois foi lá que casou, com António José, natural daquela localidade, no dia 26/10/1910(?). Foi lá que faleceu também.

 

José Miguel Lopes – Filho de António Miguel, cultivador, e Mariana Casemira, ambos de SVB, nasceu no dia 29/12/1898 na rua Dona Úrsula.

Fez o exame final no ano 1918, aos 18 anos.

Casou em SVB com Maria da Purificação Bernardo Duarte, também professora, no dia 26/10/1921. Faleceu na Freguesia da Pena, em Lisboa, no dia 02/11/1985.

 

Sílvio Alves de Sousa -  Filho de Simão Alves de Sousa, pedreiro, e de Maria da Natividade Raposo, ambos naturais de SVB, nasceu no dia 04/12/1899 na rua de São Francisco.

Fez o exame final no ano de 1920, aos 20 anos de idade.

Faleceu em Castelo Branco no dia 05/02/1946.

 

António de Jesus Craveiro – Filho de Joaquim António Craveiro, jornaleiro, e Mariana Castanheira, ambos de SVB, nasceu no dia 05/03/1893, na rua do Convento.

Fez o exame final no ano de 1920, aos 27 anos de idade.

Casou em SVB com Aida Alves de Sousa, no dia 19/09/1927. Faleceu em Belo Horizonte no dia 27 de maio de 1977.

 

Maria da Purificação Bernardo – Filha de Agostinho Bernardo, lavrador, e de Maria da Trindade, ambos de SVB, nasceu no dia 02/06/1902 no Casal do Monte do Surdo.

Fez o exame final no ano de 1920, aos 18 anos.

Casou em SVB, com José Miguel Lopes, também professor, no dia 26/10/1921. Faleceu em 14 de junho de 1983, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, Lisboa.

 

Joaquim António Craveiro - Filho de Joaquim António Craveiro, jornaleiro, e Mariana Castanheira, ambos de SVB, nasceu no dia 14/04/1900 na rua do Convento.

Fez o exame final do curso no ano de 1922, aos 21 anos de idade.

Casou em Rio Torto, Gouveia, com Maria da Conceição Marta, no dia 26 de fevereiro de  1927(?). Faleceu nessa localidade em 18 de março de 1976.

 

Maria da Luz Gonçalves Batista – Filha de João Gonçalves Batista, feitor do Conde da Borralha, natural da Póvoa da Atalaia, e de Maria Leonarda, da Atalaia do Campo, nasceu no dia 04/07/1906 na rua da Igreja.

Fez o exame final do curso no ano de 1923, aos 16 anos de idade.

Casou na Póvoa da Atalaia com Manuel Dias Rato, de SVB, no dia 30/09/1942(?). Faleceu em 20/08/1986 na freguesia do Campo Grande, Lisboa.

 

Faz ainda parte da lista dos alunos que frequentaram aquela escola o nome de Artur Eugénio Couto - Era filho de João Alexandre Couto, relojoeiro, natural de Trancoso, e de Maria Angélica, de Oledo. Nasceu em Castelo Branco, na rua de São Marcos, no dia 04/01/1901.

Fez o exame final no ano de 1919, com 18 anos de idade.

Casou com Maria Emília da Ascensão Reis, também professora formada na mesma escola, natural do Sobral do Campo, no dia 25/12/1922. Viveram em São Vicente, onde foram professores durante muitos anos.

 

Do corpo docente da Escola Normal também fez parte um Sanvicentino:

 

Francisco Vaz Raposo Gama – Filho de João Hipólito Raposo, cultivador, e de Maria Adelaide Gama, ambos naturais de SVB. Nasceu no dia 04/09/1877, na rua Velha. Foi professor na Escola durante o ano de 1908.

O seu registo de batismo não refere se casou e a data da morte, mas está sepultado no cemitério de São Vicente, na campa dos pais.

 

Após a extinção da Escola Normal, só em meados do século XX foi criada a Escola Normal Amato Lusitano, uma instituição particular, pouco acessível à maior parte da população da Beira Interior, quase sempre pobre. Terá sido esta realidade que ajudou à criação da categoria de professoras regentes, pessoas com conhecimentos muito rudimentares a todos os níveis, mas provavelmente as que melhor serviam também os objetivos da educação, num tempo em que a cultura e o saber do povo eram considerados um entrave ao governo do País, como o recorte seguinte bem revela.

 

 

“A Voz” era um jornal católico, apoiante do regime, como se depreende pelo discurso.

 

M. L. Ferreira

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

Francisco Candeias



Francisco Candeias nasceu em São Vicente da Beira, no dia 17 de agosto de 1892. Era filho de José Candeias e Rosário Castanheira, natural do Souto da Casa.

Assentou praça em 12 de julho de 1912, e ficou pronto da recruta em 30 e março de 1913. Passou à formação permanente, em virtude de sorteio, sendo incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha de Portalegre, segundo o filho José Candeias. Na altura era jornaleiro e analfabeto.

Foi destacado para integrar a 1.ª Expedição enviada para a província de Angola, a fim de reforçar a força militar que já se encontrava naquele território, ameaçado pelas tentativas de ocupação alemã. Embarcou em 10 de setembro de 1914 e chegou ao porto de Moçâmedes, no dia 1 de outubro, seguindo depois para a região do Cunene.

De acordo com a sua folha de matrícula, participou na ação do dia 18 de dezembro, contra os alemães, fazendo parte das tropas que ocuparam o vau de Calueque. Pertencia ao destacamento que reconquistou e ocupou o Cuamato, de 12 a 27 de agosto, tendo tomado parte também na ação do Ancongo, em 13 de agosto de 1915, e no combate da Inhoca, em 15 do mesmo mês, dia em que o destacamento entrou no Forte de Cuamato. Com o mesmo destacamento, avançou em 20 de agosto sobre Cunhamano, a fim de restabelecerem as comunicações que haviam sido cortadas pelos alemães. No dia 24, participou no combate da Chana da Mula. Embarcou de regresso à Metrópole, no dia 16 de novembro de 1915, e chegou a Lisboa a 5 de dezembro.

Foi novamente mobilizado, em 27 de abril de 1916, para integrar a 3.ª Expedição que partiu para Moçambique. A este propósito, contava que um dia foi plantar oliveiras para a Tapada e, por volta do meio-dia, viu chegar um dos irmãos a correr. Ficou todo contente, porque já estava com fome e pensou que lhe trazia a merenda, mas o que ele trazia na mão era uma carta com ordem para se apresentar no quartel.

Embarcou no dia 24 de junho e chegou ao porto de Palma, no norte de Moçambique, em 24 de julho. Não se sabe exatamente qual foi a sua participação na guerra, mas terá estado envolvido nas tentativas levadas a cabo pelas tropas portuguesas para ultrapassar o rio Cunene para norte e conquistar territórios ocupadas pelos alemães.

Embarcou, de regresso à Metrópole, no dia 23 de dezembro de 1917, regressando a São Vicente da Beira. Passou à reserva territorial, em 31 de dezembro de 1933.

Não falava muito sobre os tempos da guerra, mas dizia que passaram por lá muita fome e tinham de roer os frutos das árvores maninhas. Curiosamente, falava também dos milheirais a perder de vista que havia em Angola, nas margens do rio Cunene, e da preocupação dos agricultores que não conseguiam vender o milho e já não tinham onde guardar as novas colheitas.

Muitos anos mais tarde, quando já vivia em casa dos filhos, a neta Maria da Luz lembra-se de o ver sentado à lareira a falar sozinho. Mal entendiam o que dizia, mas percebiam que eram reminiscências do tempo da guerra.

Condecorações:

·      Medalha comemorativa das operações no sul de Angola;

·      Medalha comemorativa das campanhas na província de Moçambique;

·      Medalha da Vitória;


Família:

Depois de regressar à terra, Francisco casou com Maria Antónia Macedo, filha de António Simão e Carlota Maceda, e tiveram 3 filhos:

1.    José Candeias, que casou com Stela Prata e tiveram 5 filhos;

2.    João Candeias, que casou com Maria de Jesus e tiveram 3 filhas;

3.    Domingos Candeias, que casou com Hermínia Candeias e tiveram 2 filhos.

A felicidade da família não durou muito, porque Maria Antónia adoeceu gravemente, ainda jovem, com tuberculose na laringe. Consultaram muitos médicos e ainda venderam uma propriedade que tinham no Pelome para pagar os tratamentos, mas não conseguiram salvá-la. Faleceu com apenas 35 anos.

«O meu sogro era uma pessoa muito alegre e divertida quando era novo. E diz que a minha sogra também. Andavam sempre a cantar e, quando era no Carnaval, gostavam de se vestir de entrudo e andar pelas ruas, de casa em casa, a pregar partidas a toda a gente. Mas depois a vida mudou porque a mulher morreu, ainda muito nova, e ele ficou com os três filhos pequenos para criar.

Nessa altura quem lhes valeu foi a ti Mari Rosa e a ti Rita, que eram irmãs da minha sogra. A ti Mari Rosa lavava e remendava a roupa (naquele tempo remendava-se tudo e, ainda por cima, quando a minha sogra morreu, os médicos disseram que queimassem tudo, por causa do mal que ela tinha, que era pegadiço); a ti Rita cozia-lhes o pão e ajudava no resto que fosse preciso.

Ao fim de seis anos, o meu sogro voltou a casar com uma mulher do Casal da Serra. Era muito boa mulher, muito trabalhadora e tratou sempre bem os enteados.

A segunda mulher também morreu passados uns anos e o meu sogro tornou a ficar sozinho. Arranjou umas cabritas e ia com elas para uma fazenda que tinha na Serra, e era assim que se “entretia”. Ainda viveu assim uns anos, até que depois ficou doente e passou a andar às temporadas em casa dos filhos.

 As minhas filhas gostavam muito do avô e ficavam todas contentes quando ele estava na minha casa. E ele também tinha muita paciência para elas. Até lhes contava histórias, que sabia muitas e tinha muito jeito para as contar.

No dia 19 de junho, era o dia em que os cachopos foram à inspeção, e quando eles chegaram de Castelo Branco até ainda andou atrás deles, pelas ruas, por causa da concertina; mas quando foi à hora do jantar começou a ficar esquisito e já só disse:

- Isto já é o meu fim. Que Nossa Senhora me acuda…

Ainda chamámos o senhor Doutor e o senhor Vigário, mas já não houve nada a fazer. Só lhe deram os sacramentos.

Está no céu, com certeza, que era um homem muito bom; sempre preocupado com os outros e muito respeitador e temente a Deus.» (testemunho da nora Maria de Jesus).

Francisco Candeias faleceu no dia 19 de junho de 1972. Tinha 79 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração do filho José Candeias e da nora Maria de Jesus)

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"