domingo, 22 de dezembro de 2024

Natal de uma (nossa) emigrante

O MEU PRIMEIRO NATAL NO BRASIL

Maria de Lourdes Hortas

Foi em Olinda. Chegamos a Pernambuco em outubro de 1950. Ficamos na casa de um amigo do meu pai, no Bairro Novo. E lá passamos o primeiro natal brasileiro. O calor não me permitia acreditar que o aniversário de Jesus pudesse acontecer sem neve, sem filhoses, sem madeiro ardendo na praça, sem a minha avó e o meu avô, sem o cheiro de resina no pinheiro na árvore, sem o musgo apanhado na ribeira, para o presépio.

Tudo era absurdamente estranho e melancólico para o meu coraçãozinho de imigrante de apenas 10 anos.

Dias antes, uma das meninas da casa me revelou que o Pai Natal (Papai Noel, no Brasil, até isso era diferente) não existia...

Me lembro bem. Passeávamos na praia, as ondas revoltas do mar subiram, carregadas de sal, e apagaram a ilusão, como uma rajada de vento apaga uma candeia. Em silêncio engoli algumas lágrimas ...

- Não existe?!...

E o Menino Jesus? Lá, em São Vicente, era Ele que vinha, descendo pela chaminé. Na fria madrugada do dia 25 podia jurar que ouvia seus passos de pluma e que na manhã seguinte os via impressos na neve...

Categórica, a menina concluiu:

-Também não...

Houve peru e abacaxi naquela ceia de Natal. A prenda, deixada no meu sapato, foi um vestido de xadrez, em tafetá. Era lindo. Cheirava a alfazema, ao mesmo perfume das meninas anfitriãs.

Lembrei de um outro vestido, prenda de outro Natal. Era de lã cor de rosa. E minha mãe me disse, muito contrita, que tinha sido tricotado por Nossa Senhora, nos serões do Céu.

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Agora, minha Mãe e Nossa Senhora talvez estejam tecendo outro vestido, para mim: com ele espero me apresentar, à grande Ceia do Senhor.

(Do livro de inédito de memórias AS CASAS DO DESTINO.)


José Teodoro Prata

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Pontas

 1. Foto de João Engenheiro (completa uma das publicações anteriores):


ML Ferreira


2. Dia dos Sinos: há dois comentários novos e interessantes, na publicação anterior sobre o assunto.

José Teodoro Prata

domingo, 15 de dezembro de 2024

Conto de Natal

 Desculpem, mas não resisti, assaltei de novo o facebook. Mas foi por uma boa causa!

José Teodoro Prata


Porque é de novo Natal…

Conto de Natal de Francisco Candeias em São Vicente da Beira

Calcorreava a rua da Costa abaixo numa felicidade que descontrolava o andar, fazendo alternar o passo, ora apressado, ora quase em corrida.

Havia naquele dia alguma coisa que o mobilizava e que lhe dava uma cor mais luminosa ao rosto, ausente em outros dias. Passou à porta do Zé Ar, ar esse que ainda cheirava ao pão fresco!

A agitação era tanta que nem deu conta que a Menina Maria do Céu estava à janela aguardando a salvação de um bom dia!

O vento, suave e frio, trazia com ele os aromas do inverno de lenha queimada e que se misturava com o cheiro a cedro que vinha da Quinta.

Passou a Fonte Velha e entrou na Loja do Joaquim Boas Noites, que àquela hora já estava cheia de gente. Eram as compras de última hora, logo à noite não podia faltar nada!

- Vê lá o que o que é que o filho da Hermínia quer, disse alguém na sua vez de ser atendida.

Tirou o papel bem dobrado da algibeira, e mostrou o recado: dois quilos de açúcar, duas garrafas de óleo e farinha.

Transação feita sem dinheiro.

- A mãe depois vem pagar! Assim disse, como lhe transmitiram.

Passou pela praça só para comprovar que a fogueira ainda lá estava. Madeiros colocados em pilha e depois escondidos por rama de pinheiros. A fogueira seria a anfitriã da noite, recebendo as gentes procurando o calor numa noite que é sempre fria.

Em casa, a sua avó vestida de preto, lenço na cabeça e já emborralhada de farinha juntava os ingredientes recém trazidos para a iguaria mais famosa do Natal: as filhoses.

O pinheiro já tinha ocupado o seu lugar uns dias antes, enfeitado com fitas de cores colocadas de forma generosa.

O presépio, como sempre, presente: cama de musgo pulverizado de pequenas imagens de barro, o moinho era acolhido numa montanha feita de pedras e os Reis Magos ficavam sempre longe da Sagrada Família (porque ainda teriam quinze dias de caminhada), os pastores tinham um ar feliz e a lavadeira tinha um lago feito de prata de maço de tabaco Português Suave, os caminhos foram feitos de farinha e uns pedaços de algodão os flocos de neve, porque era importante dar realismo ao cenário natalício.

Dia importante, não se comia na cozinha. Mesa grande aberta na sala, a melhor toalha, pratos e talheres.

A comida era abundante nessa noite. Bacalhau, peru, couves cozidas, arroz doce, fatias douradas e tantas outras coisas.

O jantar de Natal decorria ao som da televisão a preto e branco que transmitia a mensagem de Natal do Cardeal Patriarca.

Todos à volta da mesa partilhando o momento e sem dar conta que aquela seria a mesa mais composta de sempre.

- A que horas vamos para a fogueira? Perguntou.

- Um pouco antes da missa, para ver acender a fogueira! Responderam.

Descia a rua e já se conseguia ver o fumo.

De repente o pai diz:

- Esperem! Tenho que voltar a casa, esqueci-me da carteira.

A fogueira já estava acesa. As gentes da terra e as suas famílias que tinham vindo passar o Natal espalhavam-se pela Praça Velha e junto à fogueira, que estava a cargo dos mancebos da inspeção militar. Eles garantiam que a fogueira não perdesse vida e que orgulho tinham quando alguém dizia:

- Já há muitos anos que não via uma fogueira tão grande!

A igreja cheia de gente, o presépio num dos lados do altar e o Coro do outro, onde a Menina Maria de Jesus e a Nelita garantiam os últimos ajustes. Tudo teria que correr bem, foram feitos dois ensaios durante a semana. O Padre inicia a liturgia. O sermão é sobre o nascimento do Menino e o que Ele contribuiu na caminhada cristã. Os cânticos criam um ambiente de festa, mas há um que todos cantam enchendo a igreja de alegria: “Alegrem-se os céus e a terra, cantemos com alegria, que já nasceu o deus menino, filho da Virgem Maria"...

A celebração termina com o “beijar do Menino” e cá fora os adultos ficavam por ali em conversa com as famílias ou juntavam-se com os que não viam há muito tempo. As crianças estavam sempre ansiosas de ir para casa para abrir os presentes.

Ao chegar a casa os presentes estão todos junto à chaminé. Roupa e algum brinquedo. Ficou feliz, mas nada era o que imaginaria ter tido! A sua imaginação esperaria sempre algo mais mágico.

- Para o ano tens que te portar melhor!

Ficou triste! Afinal havia meninos melhores que ele e por isso ficaram com as melhores prendas.

Só algum tempo depois terá dado conta que o Pai Natal era o pai que se esquecera da carteira. Mas todos os anos continua a desejar que a magia dessa noite seja eterna.

Dizem que o seu espírito de criança surge todos os natais e a dizer que fez tudo para se portar bem!

Que a magia desta quadra vos inspire e encha o coração!

Feliz Natal

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domingo, 8 de dezembro de 2024

GeoMorfologia da Gardunha

 

Depois de 15 anos a fotografar a Serra da Gardunha, depois de passar junto a ela dezenas ou centenas de vezes, hoje num passeio à GeoMorfologia da Gardunha, organizado pelos Caminheiros da Gardunha , para comemorar os 10 anos do lançamento do livro, deparo-me com esta figura, que de tanto esperar por mim, adormeceu que nem uma pedra.

Foto e texto do Tó Sabino, publicados no facebook.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Gente Nossa: João Engenheiro

 

«Muitos nunca ouviram falar deles e quase todos desconhecem a importância que tiveram para S. Vicente, nos meados do século XX. Eu ainda conheci o Zé Companhia, como era conhecido, por andar sempre acompanhado de um grupo de aprendizes de pedreiro. Um deles foi o meu pai.
Mas nunca ouvira falar do João Engenheiro que, já reformado e doente, morava no n.º 20 da Rua da Costa, cerca de 1950. Com ele e a sua esposa partilharam os meus pais esta habitação: eles viviam na casa das traseiras e os meus pais, recém-casados, na que dá para a rua
.» (do artigo “Dois Artistas”, de José Teodoro Prata, publicado em dezembro de 2009).

 

É verdade que do Zé Companhia (José Diogo) já só os da nossa idade é que ainda nos lembramos, mas sobre o João Engenheiro, mesmo os nossos mais velhos, já pouco souberam dizer. Encontrei-o no livro de enterramentos da Junta de Freguesia, no dia 24 de outubro de 1955, o que facilitou encontrar mais alguma informação sobre este nosso conterrâneo.

O registo de nascimento diz que nasceu a 1 de setembro de 1922, numa casa da rua da Costa; os pais, Manuel Niculau, sapateiro, e Francisca dos Santos Moreira, doméstica, quiseram que se chamasse João (João Nicolau dos Santos Moreira, de seu nome completo), o nome do avô materno. O casal, na altura, já tinha três filhas:

 - Maria Libânia Nicolau Moreira (1909/1960), que casou com João Calmão* (1906/?) em 1932, e não deixou descendência;

 - Laura Nicolau Moreira, (1911/1974), que casou em 1966 com João Calmão, já viúvo de Maria Libânia, e também não deixou descendência;

 - Maria de Deus (1914/1980), que casou com João Jerónimo (1906/1983) em 1938 e criaram 4 filhos.

É natural que a chegada do pequeno João, por ser o único rapaz, e vir já quase “fora de tempo”, o tenha tornado no Menino Jesus da família naquele Natal de 1922; o enlevo por este menino ter-se-á prolongado ao longo da vida.

Sabe-se que Manuel Nicolau e Francisca Moreira terão vivido algum tempo em Lisboa, já depois do nascimento dos filhos. Foi bom para o mais novo, que pôde prosseguir os estudos para além da escola primária, e frequentar a Escola Machado de Castro onde tirou o curso de desenhador e pôde desenvolver as suas capacidades artísticas.

Em agosto de 1945, com 22 anos, João casou com Maria do Carmo, natural de Proença-a-Nova, na Igreja de São Mamede, em Lisboa. Em maio do ano seguinte nasceu Suzete,** a única filha que tiveram.  

O casal viveu os primeiros anos em Lisboa, durante os quais João “Engenheiro” exerceu a profissão, julga-se que na Câmara Municipal de Lisboa. Neste período terá também trabalhado em alguns projetos em São Vicente: desenhou casas, muros, o lagar do Casal da Serra, a Fonte da Praça...

Tudo isto apesar da pouca saúde do nosso artista; diagnosticado desde cedo com problemas respiratórios graves, foi aconselhado pelos médicos a vir morar para São Vicente, onde os ares puros da Gardunha seriam mais favoráveis ao alívio da doença. O casal mudou-se para a terra, para a casa da rua da Costa, onde João nascera. A filha, deixaram-na em Lisboa, ao cuidado dos tios Maria Libânia e João Calmão, que a criaram como se fosse deles.

Continuou a trabalhar, enquanto pôde, e ainda projetou algumas obras em vários lugares da freguesia. Dizem os sobrinhos que se lembram de o acompanhar algumas vezes, e era uma festa para eles, montados num burro por esses caminhos fora, até à Partida, ao Casal da Serra ou onde quer que o chamassem para mais um trabalho.

Mas, apesar da mudança de ares, a doença agravou-se em poucos anos. Passou os últimos tempos da vida já na cama, cuidado pela mulher e pela irmã Maria de Deus, presente sempre que era preciso, e mimado com tudo quanto era bom, que as outras irmãs lhe mandavam de Lisboa.

Quando faleceu tinha acabado de fazer 33 anos, a idade de Jesus, como chegou a lembrar, o que, pela sua religiosidade, lhe terá dado algum conforto espiritual. A certidão de óbito diz que morreu de bronquite asmática.

Os filhos da irmã Maria de Deus contam que, mesmo sendo ainda muito novos, se lembram do tio sempre muito distinto, de chapéu preto na cabeça, vestido de fato e gravata e gabardina bege, no inverno. Era generoso com eles, sempre que vinha à terra e mesmo depois, quando veio morar para São Vicente. Dizem também que, apesar de ser ainda muito novo quando deixou de poder trabalhar, lhe deram uma reforma que lhe permitiu viver sem grandes dificuldades.

Alguns anos depois da sua morte, no início da década de 1970, foi motivo de grande indignação para muitos sanvicentinos, mas principalmente de grande desgosto para a família, terem tirado do lugar a Fonte da Praça, a obra mais bonita que deixou em São Vicente. A irmã Maria de Deus, ainda viva na altura, chorava tanto por terem feito aquela desfeita ao irmão, que o marido, já farto de a ver sempre debulhada em lágrimas, um dia foi direito à sacristia disposto a puxar os colarinhos ao Padre Branco, o principal culpado, dizia-se, por “aquele belo trabalho”. Alguém o terá segurado a tempo…

 

* Muitos ainda nos lembramos de João Calmão. Era militar e, segundo se constava, movia-se bem em alguns meios da capital. Amigo da terra e bom comunicador, era ele quem fazia sempre os discursos no dia da festa da Casa de São Vicente em Lisboa; alguns ficaram registados no Pelourinho e, creio, também ainda no Vicentino.

** Suzete faleceu há já alguns anos, ainda nova; deixou dois filhos: o João e o Gualter.

 

ML Ferreira

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Fonte da fraga - Segurança rodoviária

 
Penso que a todos já aconteceu terem de fazer uma viagem entre São Vicente e Alcains, ou vice-versa, atrás de um camião com água da Fonte da Fraga. Comigo já sucedeu duas vezes.

Os camiões têm de constantemente ir para o meio da estrada para se desviarem dos ramos das árvores que aliás são eles que vão podando, pois à sua passagem caem sempre folhas e ramos.

Penso que esse é o maior perigo para a nossa segurança, condutores de ligeiros e pesados, incluindo os camionistas que transportam a água, perigo a que se referia alguém numa das publicações anteriores sobre o assunto. 

Já estive para ir à Câmara colocar o problema, mas penso que devo deixar essa tarefa/obrigação a quem foi eleito para representar os vicentinos (eu nem voto em São Vicente, nem em nenhuma das povoações servidas pela estrada).

A foto é da saída da ponte sobre a Ocreza, em frente ao entroncamento para Cafede.

José Teodoro Prata

domingo, 1 de dezembro de 2024

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

 Mário de Souza 

Mário de Souza da Cunha Pignatelli foi batizado na freguesia de Salvador, Penamacor, no dia 26 de novembro de 1886. Era filho de Francisca de Souza, nascida nos Escalos de Cima, e de José da Cunha Freire Pignatelli.

Com apenas dez anos de idade, após ter concluído a instrução primária, a mãe enviou-o para Lisboa, a fim de prosseguir os estudos na Real Casa Pia de Xabregas. Aos 18 anos, começou a trabalhar na Companhia dos Correios e Telégrafos, vindo a alcançar a posição de Director Distrital, com assento na Guarda.

Assentou praça em Penamacor, no dia 3 de junho de 1906, e, apurado para servir na Arma de Engenharia, alistou-se no Regimento de Infantaria de Reserva n.º 21.

Licenciado, foi domiciliar-se na freguesia de Santos o Velho, em Lisboa. Apresentou-se novamente para serviço ordinário, por um período de 30 dias, nos termos do nº 2 do Art.º 31 do regulamento para a organização das reservas do exército, em 1 de agosto de 1907.

Passou ao DRR n.º 21, em 31 de outubro de 1907, e mudou a residência para Castelo Branco. Em 16 de janeiro de 1911, passou ao DRR n.º 2, indo domiciliar-se na freguesia de Belém, Lisboa.

Em 1917, foi mobilizado para participar na Grande Guerra, tendo seguido de comboio para França, no dia 9 de junho de 1917, integrado no Serviço Postal nº 8 do CEP, Serviço de 2.ª Linha, com o posto de 1.º Aspirante de Correios, com a graduação de Alferes.


No seu boletim individual do CEP consta apenas o seguinte:

a)     Transferido para o S.P.C. 4 (Serviço Postal em Campanha nº 4), a 10 de janeiro de 1918;

b)     Licença de campanha por 45 dias, em 14 de janeiro;

c)     Colocado como chefe do S.P.C. 4, em 4 de fevereiro;

d)     Colocado com adjunto do S.P.C. 8, por ordem de 9 de agosto;

e)     Abatido ao efetivo, em 23 de março de 1919, regressou a Portugal a 31 do mesmo mês. Desembarcou em Lisboa, a 3 de abril.  

Condecorações: Medalha comemorativa da Campanha de França.

Por ter completado o tempo de serviço obrigatório, foi-lhe dada baixa a 3 de julho de 1921, ficando obrigado, em tempo de guerra, a concorrer para a defesa local até aos 45 anos de idade, mas sem encargo algum em tempo de paz. Passou à reserva para todo o serviço militar, em 26 de novembro de 1931, por ter completado 45 anos de idade.


Família:

Antes de ter sido mobilizado para participar na Grande Guerra, Mário de Souza já era casado com Judite Santareno e residiam em Évora, localidade onde lhes nasceram os seus 2 filhos:

1.   José Santareno de Souza da Cunha Pignatelli (condecorado com a Laureada Cruz de São Fernando pela sua participação na Missão Militar Portuguesa de Observação durante a guerra civil de Espanha) que casou com Maria Joana Casanova Dias Ferreira. Tiveram dois filhos, ambos com descendência;

2. Mário José Santareno de Souza da Cunha Pignatelli que casou com Maria Júlia Mesquita dos Santos. Tiveram 6 filhos, todos também com descendência.

 


Após ter-se retirado da vida profissional (nesta altura estaria colocado como Diretor de Correios e Telégrafos na cidade da Guarda), domiciliou-se em São Vicente da Beira onde passou a gerir as suas propriedades. Foi também Provedor da Santa Casa da Misericórdia, mas por um período muito curto, uma vez que faleceu passado pouco tempo de ter tomado posse do cargo.

Mário de Souza da Cunha Pignatelli morreu em São Vicente da Beira, no dia quatro de Abril de 1947. Tinha 62 anos.

 

(Pesquisa feita com a colaboração da bisneta de Mário de Souza, Marina da Cunha Pignatelli)


Maria Libânia Ferreira

Do livro Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

terça-feira, 26 de novembro de 2024

O nosso falar: Agarrado/a e Sede d´água

 

Uma das irmãs da minha mãe, ainda viva, sofre de demência já há alguns anos. Como está no Centro de Dia do Sobral, mal a vejo durante a semana, mas aos domingos quase sempre vou estar um bocadinho com ela.

Nessas visitas pouco fala, mas ri-se muito. Quando tento puxar-lhe pela memória, é capaz de me cantar cantigas ou dizer orações que cantava ou rezava antigamente, mas se lhe pergunto, por exemplo, o que é que foi o almoço ou se algum dos filhos lhe telefonou, nunca me sabe responder. Coisas próprias da doença…

Há dias perguntei-lhe se se lembrava da Tia Antónia (a governanta duma casa de gente rica onde esteve a servir): «Então não havia de me lembrar? Era uma agarrada pior que o São Pedro! Com tanta fartura que havia naquela casa, e não dava uma sede d’água a um pobre!»

Quando éramos crianças, lembro-me de chamarmos agarrado ou agarrada a alguém que tivesse alguma coisa (um brinquedo, um lápis ou uma borracha…) e não partilhasse connosco ou nos emprestasse, se lho pedíssemos.

A referência ao São Pedro, só se for pelas chaves que, dizem, a Tia Antónia trazia sempre à cintura para não lhe irem à despensa ou à adega às escondidas.

Para sede d’ água, não encontrei definição, mas, pelo contexto, deve significar uma pequena esmola, ou mesmo esmola nenhuma. Se alguém souber…

ML Ferreira

sábado, 23 de novembro de 2024

O barulho da Fonte da Fraga

 

Os meus amigos/vizinhos do Ribeiro Dom Bento perguntaram-me o que causa o barulho que se ouve sobretudo de noite.
Perguntei a quem ouve bem e vive em São Vicente.
O barulho vem das máquinas da fábrica da água Fonte da Fraga e aumentou desde que aumentou a produção com os novos donos. 
Há outras pessoas a queixarem-se.

Defendo o apoio da nossa comunidade ao projeto dos novos donos da empresa, que preveem mais emprego. Tal como defendo o nosso apoio à conversão das instalações, que ficaram desocupadas com o fim dos 2.º e 3.º ciclos na escola, numa unidade de cuidados continuados. Reivindicar serviços sem ter população é conversa da treta.
Mas temos de exigir boas condições, nomeadamente não permitir que o sossego noturno seja perturbado.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Dia dos sinos

 

Todos os anos, por esta altura, sinto um grande orgulho e muita inquietação. 

Do orgulho tenho escrito aqui o gosto que é ver o nosso Pedro Inácio Gama a participar neste evento, sendo um dos dois únicos tocadores de sinos que restam nas povoações do concelho.

A inquietação tenho-a calado, mas este ano não me fico. Há quantos anos não se ouve o toque dos sinos em São Vicente? Não é um património a valorizar, um património que nos identifica como comunidade? Ou é porque não sabemos valorizar e acarinhar os nossos?

Em verdade vos digo, algo está muito errado em nós como comunidade, se temos um dos raros tocadores de sinos e estes não repicam durante a procissão do Santo Cristo e noutros momentos marcantes da nossa vida coletiva.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Umas Festas de Verão diferentes


Estávamos no mês de setembro, do ano de 1973. Decorriam em S. Vicente da Beira, na terceira semana do mês, as Festas de Verão em honra do Santíssimo Sacramento, do Senhor Santo Cristo e de Nossa Senhora do Carmo.

As festas eram organizadas por uma comissão que todos os anos era nomeada, por ruas. Nessa época, em São Vicente, não havia casas desabitadas, havia mais de dois mil habitantes. Naquele ano, a nossa rua, ou seja, a Rua das Laranjeiras, também foi a incluída para a comissão e o meu Pai foi um deles.

Estes festejos eram vividos e sentidos pela população com o maior respeito. Era o momento em que as famílias se juntavam, os que se encontravam ausentes regressavam, juntando-se aos seus, num franco e saudável convívio. Quase todas as famílias tinham o seu borreguinho que criavam ao longo do ano. Mesmo aqueles que não tinham terras, levavam-nos para a ribeira, onde comiam aquela erva que ali crescia tenrinha. Nestes dias de festa sacrificavam o borrego, servido como um grande pitéu nas nossas mesas.

Eu cumpria o serviço militar no quartel do RTM do Porto e vim passar o meu fim de semana. Cheguei sexta-feira à noite, após ter apanhado o comboio na estação de Campanhã, em direção ao Entroncamento, e a seguir, depois de algumas horas à espera, apanhar o comboio que partira de Lisboa em direção à Guarda. Saí na estação de Alcains e apanhei um táxi até a São Vicente.

Reinava na nossa casa a azáfama dos preparativos para estes três dias festivos. O meu Pai, juntamente com outros vicentinos da comissão de festas, não parava em casa na preparação dos festejos. A minha Mãe, além de estar ocupada com todos estes preparativos, na parte da cozinha, também preparava os doces tradicionais que se encontravam na nossa mesa, como o pão de ló, os biscoitos, as cavacas, os esquecidos, os borrachos, etc.

Eu, devido à minha condição de militar, vinha somente passar o fim de semana normal e na segunda-feira, pelas oito horas, devia dar entrada no quartel. Assim, tinha de sair domingo à tarde, apanhar o comboio em Alcains e seguir viagem até ao Porto. Confesso que me estava a custar partir, mas o meu Pai teve uma ideia brilhante e disse-me: «- Estou a pensar e vou escrever uma carta para o teu comandante, que lhe entregarás quando chegares.» Se bem o pensou, melhor o fez e só parti terça-feira de manhã para o Porto.

A segunda-feira, em honra do Senhor Santo Cristo, era o dia mais importante para nós Vicentinos, o dia em que vestíamos uma roupa nova. Passei a festa alegre e satisfeito, na companhia da família, namorada e amigos e só parti terça-feira de manhã.

Quando entrei no quartel, os colegas disseram-me que eu já estava dado como desertor, já não escapava da TORRE ALTA, que era a prisão. Passei a noite um pouco apreensivo. No dia a seguir, levantei-me ao toque da alvorada, fiz a minha higiene pessoal e às oito horas fomos para a parada fazer a primeira formatura; de seguida fomos tomar o café; às nove horas, dirigi-me ao gabinete do comando e pedi para falar com o comandante; bati à porta e do outro lado ouvi uma voz a dizer que podia entrar; abri a porta e fiquei de frente com o comandante; fiz a continência e identifiquei-me; do outro lado, estava um senhor não muito alto, de bigode, com um aspeto de respeito próprio do comandante da companhia; era o CAPITÃO GUIRA.

Ele pediu-me que apresentasse uma justificação em relação à minha ausência; eu peguei na carta que levava comigo e entreguei-lha; abriu a carta e começou a lê-la; olhou para mim com alguma emoção e, após ler a carta escrita pelo meu Pai, disse-me o seguinte: «- Vou abrir uma exceção e dar-lhe duas hipóteses de escolha: dou-lhe voz de prisão e vai uns dias para a Torre Alta ou vai oito dias para o refeitório fazer serviço de faxina.»

Eu nem pensei duas vezes e respondi-lhe que queria ir para o refeitório; ele aceitou a minha escolha e mandou-me embora; quando cheguei à parada, estavam os colegas à minha espera para saberem a resposta; eu pu-los ao corrente da decisão do comandante e eles não acreditavam, porque este Capitão por tudo e por nada mandava o pessoal para a Torre Alta, que estava quase sempre lotada.

E assim se passou este episódio comigo, nas Festas de Verão do ano de 1973.

João Maria dos Santos

História contada na 5.ª sessão do projeto Conta-me histórias

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

 Manuel Vaz

Manuel Vaz nasceu em São Vicente da Beira, no dia 30 de abril de 1892. Era filho de Joaquim Vaz, jornaleiro e carvoeiro, e de Ana Maria, natural da Paradanta, residentes na rua Nicolau Veloso.

Assentou praça no dia 3 de julho de 1912 e foi incorporado a 15 de janeiro de 1913, como soldado condutor. Ficou pronto da recruta em 31 de maio de 1913 e foi licenciado em 1 de junho, indo domiciliar-se em São Pedro de Torres Vedras.

Foi novamente mobilizado para fazer parte do CEP e apresentou-se no dia 5 de setembro de 1916. Embarcou para França, no dia 8 de agosto, integrando a 2.ª Bateria do Regimento de Artilharia n.º 1, como soldado condutor. Tinha o número 253 e a placa de identificação n.º 26702- série A.

O facto de Manuel Vaz ter partido para França integrado o Regimento de Artilharia n.º 1 poderá dever-se ao facto de o pai ter falecido muito cedo, deixando cinco filhos ainda menores. A mãe terá partido para Lisboa com as crianças e foi lá que se criaram e viveram, pois não há em São Vicente qualquer registo de casamento ou óbito de nenhum deles.

O boletim individual de Manuel Vaz refere apenas o seguinte:

a)   Tomou parte na batalha de La Lyz de 9 de março de 1918;

b)   Esteve de licença de campanha por 10 dias, com princípio em 3 de fevereiro de 1919;

c)   Regressou a Portugal a 4 de maio de 1919.

Por fazer parte do Regimento de Artilharia n.º 1, Manuel Vaz foi um dos dois sanvicentinos a tomar parte na batalha de La Lyz.

Condecorações:

·        Medalha de cobre comemorativa da expedição a França, com a legenda: França 1917-1918;

·        Medalha da Vitória.




Após o regresso a Portugal, domiciliou-se em Lisboa, na rua das Escolas Gerais, n.º 15, mas terá mudado a residência pouco tempo depois.

Sem domicílio conhecido desde 2 de outubro de 1921, passou ao 1.º Grupo de Baterias de Reserva, em 31 de dezembro de 1922, e à Companhia de Trem Hipomóvel, a 9 de outubro de 19130. Passou à reserva territorial em 31 de outubro de 1933.

Não foi possível encontrar documentos ou familiares que pudessem informar sobre a vida de Manuel Vaz após o regresso de França. No seu registo de batismo também não consta qualquer averbamento que dê conta de um possível casamento ou a data e local do seu falecimento.

Maria Libânia Ferreira

Do livro Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Memórias da Praça

 

A minha Praça não é a dos tempos idos da História, atravessada por presidentes, juízes, tabeliães, condes e viscondes; nem a dos vigários e outros vultos negros a caminho da igreja; ou a da gente presa na enxovia, açoitada no pelourinho ou levada para a forca; nem sequer a dos gabões que invadiram a câmara, queimaram os papéis e acabaram com o concelho.

A minha Praça é a das olaias floridas, mal chegava a primavera; a dos bancos todos com gente; a dos sinos a tocar as Ave-marias, para a missa, por ser festa, haver fogo ou ir alguém a enterrar.

É a Praça das tendas, nos dias de feira, onde os olhos nos ficavam presos a tanta coisa linda a que mal podíamos chegar. 

É a Praça das tabernas a toda a roda, que aos domingos, depois da missa, se enchiam de homens na conversa e a beber em sociedade; que quando o vinho falava mais alto e qualquer questão de lana-caprina dava azo a zaragatas, era ver as mulheres aflitas e as crianças curiosas, todas a correr, não fosse algum parente chegado andar metido na bulha.

É a Praça das procissões, dos foguetes, da banda a tocar no coreto, das cantigas de Natal, à roda da fogueira, à saída da Missa do Galo.

É a Praça onde ríamos à gargalhada, sentados no chão ou em bancos levados de casa, quando vinham as comédias; ou quando, nas noites de circo, de coração aos pulos, até fechávamos os olhos quando os acrobatas davam voltas no trapézio ou tentavam equilibrar-se em cima do arame.

É a Praça dos ceguinhos que apareciam aos domingos e nos dias de feira, e cantavam histórias fabulosas de amor e tragédia que alimentavam um imaginário sem limites.

É a Praça onde, nas vésperas da Senhora da Orada e das Festas de Verão, chegavam as excursões vindas de Lisboa: uma camioneta grande, cheia de gente, e era uma alegria se vinha algum parente próximo, que, quase de certeza, havia de nos trazer uma prenda.  

É a Praça da escola: horas sem fim a dizer a tabuada, as serras, os rios e caminhos-de-ferro, na ânsia do recreio. E o tempo era pouco para as rodas, o paspelho, a linda falua, os jogos da pela, da corda, do anel, do espeta ou das conchinhas; às vezes só a partilha de segredos íntimos, inocentes, com a melhor amiga.

É a Praça onde ia à fonte e ficava horas esquecida na brincadeira ou na conversa, enquanto esperava a vez para encher o cântaro; e a minha mãe à espera da água, às vezes já com o chinelo à mão…

É a Praça onde, aos domingos à tarde, paravam carros com senhoras bem vestidas ao lado de homens engravatado, que vinham à procura de raparigas sérias e despachadas para criadas de servir; uma vez quiseram levar-me e tive de fugir para casa. Passei o resto da tarde encolhida debaixo da cama, com medo que a minha mãe desse comigo e me obrigasse a ir para a Covilhã.

É a Praça onde esperava sempre, no dia certo, a carrinha da Gulbenkian; às vezes tinha que me esconder para ler os livros que levava para casa; talvez por isso me davam tanto prazer.

É a Praça dos primeiros bailes de domingo, no balanço das músicas da moda, tocadas num gira-discos manhoso. Foi num desses bailes que dancei o primeiro slow e quis o primeiro beijo.

Passaram muitos anos, e o mundo deu tantas voltas, que a minha Praça já é quase só memórias…

ML Ferreira