Reconquista, 19 de janeiro de 2017
José Teodoro Prata
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017
domingo, 29 de janeiro de 2017
Conversas na Vila
Era
mais uma manhã escura de janeiro. Na vila, fazia frio e chovia. Corria um
daqueles invernos habituais, longos e modorrentos com chuva miudinha e
persistente. Com a humidade excessiva, os quintais, à ilharga das casas, onde
se acumulava o estrume dos animais, que se acomodavam na loja, por baixo ou ao
lado das habitações, tinham um cheiro peculiar a decomposição, pouco agradável!
O tempo passava lento, com aquele assardaniscar do carujo a ensopar a terra, mas
a fazer crescer as águas freáticas e a ribeira, o que era bom!
Mas
certo é que, com o tempo que fazia, a vida nas fazendas era muito agreste.
Mesmo assim, todos se levantavam logo pela manhã cedo, ainda ao lusco-fusco.
A
mulher punha o almoço em cima da mesa da cozinha. Comiam as migas ou as sopas
de leite ou o feijão pequeno e, ala que se faz tarde! Com o almoço na barriga,
os homens lá iam, casaco pelas costas, para se protegerem da humidade e do ar
frio da manhã, dar o almoço aos vivos, que já faziam a chinfrineira matinal com
a fome. A burra zurrava assim que ouvia a voz do dono e os porcos cuí, cuí,
pediam também o almoço! A manhã avançava e andavam por ali, entretidos, a dar
as forragens secas ao gado, guardadas desde o último verão. Ração de feno para
ovelhas e cabras. Palha triga e caneirões de milho para os animais de carga e
de tiro.
—
Raio de tempo este que não deixa fazer nada nas fazendas! — disse Bernardo
Garrancho, de si para si, arreliado com a invernia que tudo trazia enchapuçado! — As fazendas querem ver o dono todos os
dias! E ninguém as trata melhor! Por isso, lá diziam os antigos, “Quando o dono
morre, as fazendas vão com ele!”
Por
vezes passava ali pela porta da loja um vizinho ou mesmo um conviva habitual
dos domingos à tarde, na taberna:
—
Bons dias nos dê Deus!
—
Tu por aqui, Tonho?! Tu que moras da praça baixo, aqui no cimo de vila a esta
hora?! Anda por aí passarinho novo!
O
seu nome era António Dias, mas os amigos chamavam-lhe Tonho Racha! A alcunha
vinha-lhe de repetir muitas vezes na roda de conversadores, na praça ou na
taberna, sobretudo quando já estava com um copito: “Se for preciso, racha-se já
um diabo!” Apanharam-lhe o ponto! Mas lidava bem com a alcunha que, afinal, não
lhe arrancava nenhum bocado! À provocação de Garrancho respondeu:
—
Ná! Não quero, nem tenho idade para isso! A minha mulher tem feito vir muitos
ao mundo porque … é a parteira da terra!
—
Bem sei! E que tem isso?!
—
Tem que, para alvoroço de crianças, já basta as que tenho, que são minhas e
dela e as dos outros que ela vai ajudando a nascer!
—
Então e depois?!
—
Depois, é que vim só a dizer ali ao João Jarêto para falar com o patrão a ver
se me pode ir lá dar uma jeira daqui a um mês ou dois, à entrada da primavera.
Tenho a fazenda do Vale de Caria com o mato a querer avançar para um leirão que
este ano quero semear de batata. Aquilo tem que ser atalhado quanto antes.
Senão, os vizinhos vá de me censurarem a dizer que ali não entra ferro de
enxada nem charrua! E, como bem sabes, a semente quer mudar de terra de vez em
quando, senão deixa de luzir! Olha lá, ou!... Mas, que andas tu a fazer,
Bernardo?!
—
O que hei de andar a fazer, Tonho? — respondeu Bernardo Garrancho. — Com o
tempo como tem ido, ando aqui a dar de comer à burra e aos bácoros, porque as
cabras, essas, estão sempre na serra. O meu neto, que pode bem melhor que eu,
ainda hoje tem que dar lá um salto para lhes dar a ração, apesar do tempo que
faz! Tenho lá ainda as galinhas e os coelhos que também estão sempre a reclamar
a sua parte. Na semana passada a raposa fez-me lá estragos! Escavou um buraco
por baixo da parede de madeira e rede do galinheiro, conseguiu entrar e
matou-me meia dúzia de galinhas, o estupor! Aquilo deve ter sido um
desassossego! Mas quê?! Se é no verão, estamos a dormir lá ao lado, em casa, e
podemos acudir logo que haja alarido nos animais. De inverno vimos a dormir
para a vila e é o que se vê! Já
viste como vai este ano que ainda há dias começou?! Um alagoeiro que alto lá
com ele! Nada se pode fazer que as terras não estão capazes!
—
Deixá-lo — retorquiu Tonho Racha. — Uma temporada assim é boa para as couves
negras e, sobretudo, para as nascentes. Sem elas como é que, no verão, regamos
as batatas, os tomates e as alfaces?! Sofremos esta inclemência, se é que podemos
assim chamar-lhe, mas a partir da primavera, vamos gozar o que agora estamos a
amargar! E lá diz o ditado: “Quem manda, pode”!
S.
Pedro, que era quem podia, não estava a colaborar. Aquela invernia ensopava
tudo!
—
Mas — acrescentou Tonho Racha — volúvel, é a oração do crente! Agora quer chuva,
logo quer sol e calor! Por isso é que o santo decide como lhe apraz, sem
atender aos rogos dos homens!
O
resultado ver-se-ia na primavera, com a natureza a rebentar, prenhe vida.
O
“casarão”, assim designado pela família, era a loja térrea dos animais em casa
de Garrancho, onde os dois amigos se encontravam em amena conversa. Espaço em
parte coberto pela “casa velha”, também assim apodada pela família e, em parte,
a céu aberto. Tinha um portão largo que dava diretamente para a rua, por onde entravam
as carradas de mato e carqueja, mas também o feno, a palha e os caneirões para o
gado, no inverno. E de onde saía o estrume para todas as fazendas que ele
cultivava.
—
Mas, ó Tonho — disse Bernardo Garrancho — tenho aqui um barril de tinto na loja.
Está ali a ouvir a conversa! Vai um copinho? Olha que é de boa vontade!
Tonho
Racha era um grande apreciador de aguardente, a sua bebida preferida pela manhã
cedo, logo que se levantava! Depois, durante o dia, passava tanto para o vinho
tinto como para o branco! Dizia que nunca fora homem com preferência por qualquer
cor! E nunca recusava um copo à porta de uma adega, desde que fosse cheio de
uma bebida da família da uva fermentada.
—
Se vai?! Homessa! Ó Bernardo, isso nem se pergunta! Um homem, para ser um bom
cristão, nunca deve recusar um copo de vinho! É como se fosse uma obrigação e
até um preceito da nossa religião! Na adega, como na missa, há de beber-se
sempre vinho! — riram!
Bernardo
Garrancho estendeu-lhe o copo de meio quartilho que Tonho levou à boca e bebeu
sem descansar.
—
Aaah! — fez de satisfação!
A
seguir a um copo foi outro, que Garrancho gostava de tratar bem os amigos! E
Tonho Racha não se fez rogado.
—
Já fui a muitas adegas cá na vila a provar o deste ano — disse — e olha que este
é um dos mais bem apaladados! — concordaram os dois!
—
Espera! — disse Garrancho — tens ainda que beber mais um. Vou ali à salgadeira
buscar um bocado de presunto para acompanhar.
Veio
um pedaço de presunto. Febra bem curada de sal, com uma tira de gordura entremeada
para não saber a seco! Mas Bernardo foi ainda buscar um bom naco de queijo de
cabra curado que a mulher era hábil em fazer e metade de um casqueiro!
—
Mau, ó Bernardo, não me estejas já a arranjar o jantar! Olha que ainda é muito
cedo! Ainda agora é de manhã!
—
Nada disso. Hoje já comeste o almoço?
—
Bebi só um copo de aguardente com passas de figo.
—
Ora então aí tens! Isto é apenas uma bucha para aconchegar. Toca a comer e a
beber!
Depois,
aproveitaram para conversar sobre a agricultura e as sementeiras. Como é que ia
o tempo, como é que não ia. Se andava bom para as colheitas, se não andava. E
mal se descuidaram estava a chegar a hora do jantar. Despediram-se com mais um
copo para a sossega!
Não
fossem os afazeres com os animais nas lojas e os amigos para o palratório e
estes homens andariam ali por casa a rebolar, sem nada produzir, como que a
morrinhar ou sentados à lareira. Quando assim era, uma dormência tolhia-lhes o
corpo habituado que estava à exercitação diária do trabalho. As pernas entorpeciam.
Depois, levantavam-se e iam ao janelo da cozinha, encostavam-se à vidraça a
olhar o horizonte. Lá fora, via-se a invernia muito agarrada que acaçapava todo
o vale onde se situa a vila, ao fundo da encosta da Gardunha. E depois punham-se,
absortos, a ver cair a água dos beirais, mesmo ali nas casas defronte. O regato
à roda das parede de ambos os lados da calçada lá ia, rua abaixo, com pouco
mais que uma chisca. Com as trovoadas e aguaceiros é que a valeta, pouco
profunda, não podia conter o caudal que extravasava para a calçada.
Mas
muitas vezes os homens, nestas manhãs molhadas, também iam para a taberna fazer
sociedade. Bebiam, riam em voz alta, jogavam as cartas, ao tanguinho ou ao
burro. Falavam dos negócios do gado, da vida agrícola e contavam passagens para
matar o tempo. E assim passavam a maior parte destes invernos feios e mortiços,
sem nada poder fazer!
Inverno
rima com inferno!
Seria
isto uma grande verdade, não fosse certo que a água é um bem precioso que não
podemos dispensar e que torna a natureza úbere!
Eram
estes homens, prisioneiros da sua própria condição, que vinham às portas das
lojas, das casas ou das tabernas. Olhavam, impotentes, o cinzento carregado do
firmamento, enquanto a chuva fazia o seu caminho do céu à terra, aspergindo-a
vagarosamente como uma canção dolente!
Nota:
neste texto foram utilizados termos ou expressões regionais ou locais.
José Barroso
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sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
Voltemos à foto de um casamento
Republico esta foto, para compreender melhor os últimos comentários do Zé Barroso e da Libânia.
Relembra que a foto, aqui publicada a 30 de setembro de 2016, foi-me dada pelo Francisco Matias.
Há alguns dias estive na vila e comecei a lembrar-me da fotografia do casamento dos anos sessenta publicada neste blogue em 30 de setembro de 2016. E tenho a certeza de que não é o casamento dos pais do Toninho. Por várias razões, entre as quais há esta: está uma pessoa identificada sem qualquer dúvida. Trata-se da Carmelinda, filha do Domingos Bispo do Caldeira. Na fotografia, está em frente da Maria do Carmo, esta filha do ti' Carlos do Chão da Bica, as duas com véu branco. A Carmelinda terá ali 6, 7 ou 8 anos. Falei com ela ao telefone. Disse-me que o Toninho é da idade dela. Logo, não pode ser o casamento dos pais deste.
Possibilidade: pode ser o casamento dos pais do (acho que se chamava assim) Tó Zé (nós conhecíamo-lo por Jarmelas). Se são estes, casaram e penso que foram para África. Vieram após 1974. O Jarmelas trabalhava no Sindicato dos Pescadores do Norte e veio à televisão várias vezes a falar em nome deste sindicato. Faleceu há uns anos, ainda novo. Julgo que reside (ou residia há muito pouco tempo) na vila (Caldeira) uma irmã dele (Alice). Esta é que poderá adiantar mais qualquer coisa. Será que pode? De qualquer modo, as idades destes irmãos, penso, é que já serão temporalmente compatíveis com o evento do casamento.
À atenção, se quiserem, da MLFerreira e do ZT.
Abraços.
ZB
Quanto à identidade dos noivos da fotografia publicada em Setembro último, talvez o Zé Barroso tenha razão, mas na altura mostrei-a à Maria José Agostinho que não teve dúvidas em identificar o noivo como um dos irmãos da mãe, a senhora Resgate, que aparece atrás dos noivos. O Senhor Vigário e a Menina Maria de Jesus Ramalho que também foram convidados, seriam primos da noiva, Eugénia Ramalho. Vou tentar esclarecer um pouco melhor, mas o problema é que as pessoas que mais podiam ajudar já estão todas faltas de vista…
M. L. Ferreira
Se a menina de
véu branco à frente da Maria do Carmo é mesmo a Carmelinda, (somos da mesma
idade), os noivos não podem ser os pais do Toninho que é pouco mais novo que
nós.
Mas para
ajudar a esclarecer o “mistério” mostrei hoje a fotografia ao Senhor António
Inês (O Marinheiro) que parece que também não teve dúvidas em identificar o
primo Manuel e muitas outras pessoas da família entre os convidados.
E a propósito
desse casamento contou que nunca tinha visto uma noiva tão chorosa: chorava
antes, durante e depois do casamento (na fotografia até parece contente…)
porque o pai a tinha obrigado a acabar o namoro com o rapaz de quem gostava
desde os bancos da escola, e lhe fez o casamento com o outro que tinha mais
terras. Como se não bastasse esse desgosto, ficou viúva muito cedo e teve que
fazer pela vida sozinha com um filho nos braços. Passados muitos anos veio a
encontrar-se com o antigo namorado, também já viúvo, e decidiram viver juntos.
Mas também não foi feliz, porque ele morreu passado pouco tempo. Ele há amores
assim, infelizes, dê o mundo as voltas que der…
Acho que a
noiva ainda é viva. Será que não há ninguém que lhe mostre a fotografia?
Ninguém melhor que ela pode confirmar se é ou não a noiva.
M. L. Ferreira
quarta-feira, 25 de janeiro de 2017
Histórias dos enxidros aos casais
Uma colega, nascida e criada em Lisboa, mas com raízes na Beira, comprou um livro dos Enxidros e disse-me que o ia oferecer à mãe, pois ela gostaria de ler aquelas histórias antigas.
Afinal leu-o ela primeira, aproveitando uma viagem de comboio para Lisboa. Ficou maravilhada com as nossas histórias, lamentando-se de em Lisboa não ter tido vivências tão interessantes como as que nós tivemos por cá. Não concordo muito, pois o interesse das vivências depende sobretudo da importância que lhe dá quem as vive. Mas pronto, fiquei babado.
A imagem, dos alunos do 2.º ciclo do agrupamento de escolas José Sanches (Alcains) e S. Vicente da Beira, retrata o entardecer em que uma banda de rock inglesa nos veio desassossegar, no verão de 1975, com um ritmo maluco que nós mal conhecíamos ainda. No desenho, os autores puseram a assistência a vibrar com a música, porque já são deste tempo e por isso não estiveram entre aquela assistência pasmada.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
Natal beirão
UM AUTO DE NATAL
Natal Beirão
Da Etnografia da Beira, de Jaime Lopes
Dias,
transformado em texto
dramático por José Teodoro Prata,
adaptado a São
Vicente da Beira por José Manuel dos Santos
e representado, neste Natal, pelo Rancho Folclórico Vicentino.
e representado, neste Natal, pelo Rancho Folclórico Vicentino.
O espaço assemelha-se a uma Igreja, com um corredor
a meio e o público dos dois lados. No lado oposto à entrada, em local elevado,
está um presépio vivo, com as principais figuras (São José, Nossa Senhora e o
Menino Jesus) e eventualmente outras figuras tradicionais.
Um padre (ou um leigo com essa tarefa) aparece em local
visível por todos e fala:
Padre:
É Natal. Alegremo-nos, nesta noite santa.
Comemoramos o nascimento de Jesus, que é Deus feito
Homem.
Com alegria, cantemos todos:
Todos os presentes:
Alegrem-se os céus e a terra
Cantemos com alegria
Que já nasceu o Menino
Filho da Virgem Maria
Entrai pastores entrai
Por esse portal sagrado
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas deitado
Ao fundo da igreja, encontram-se as
personagens intervenientes.
Os
pastores avançam um passo e cantam:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
Avança o primeiro pastor, dando alguns passos em frente.
Entretanto, surge uma estrela que guia o
pastor até ao altar. Esta deve estar sincronizada com os movimentos e paragens
que os pastores vão fazendo até chegarem ao presépio.
Primeiro
Pastor:
Vi uma estrela brilhante
E anjos a cantar
Levantei-me, comecei a andar
Até este local distante
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino adorado
Aqui tendes a visita
Dos pobres pastores de gado
O primeiro
pastor avança mais um pouco pela coxia e continua a declamar:
Ó estrela luminosa
Meus passos alumia
Que eu venho visitar
O filho da Virgem Maria
Perto da capela-mor:
Ó meu Menino Jesus
Estou muito admirado
De Vos ver com tanto frio
Nessas palhinhas deitado
Chega ao presépio, volta-se para o Menino dizendo:
A oferta que Vos trago
É simples e de pouco valor
É apenas um cordeiro
Dos que guarda o pastor
Ajoelha, beija o Menino e continua a declamar:
Também trago uma merenda
Das que me dá o patrão
Ó meu Menino Jesus
Tende de nós compaixão
A estrela inicia o caminho de regresso e o pastor despede-se
dizendo:
Adeus Menino Jesus
As costas Vos vou virar
Adeus, até para o ano
Se eu cá puder voltar
Desce a coxia e junta-se aos outros pastores. Cantam
todos:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
Um segundo
pastor entra em cena:
Junto ao gado eu dormitava
Quando ouvi anjos a cantar
Glória, paz na Terra, toca a levantar
Vamos adorar o Menino
Não há vida mais triste
Do que a vida de pastor
De inverno apanha frio
De verão muito calor
Avança e no meio da igreja e continua a declamar:
Eu vos peço meu Menino
Do fundo do coração
Que me livreis de guardar gado
E que eu venha a ser patrão
Em frente ao presépio:
Trago-Vos umas castanhas
Que tinha enterradas no chão
Não as roubei a ninguém
São das que me deu o patrão
Finda a atuação do segundo pastor, o
padre faz sinal à estrela para sair pela lateral e ela avança. O público zomba,
rindo, mas o segundo pastor diz:
Entrei pela porta principal
Por ela quero sair
De nada me importa
Que esta gente se esteja a rir
De frente para o presépio, despede-se:
Cá voltarei para o ano
Se ainda for pastor
A visitar-Vos Deus Menino
Que Vos tenho muito amor
Desce a coxia e junta-se aos outros e todos juntos
cantam:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
Um terceiro
pastor avança, levando um cabrito e um sarrão.
O cabrito berra e o pastor tenta
acalma-lo; como não consegue, pede ajuda ao padre:
Ó senhor padre Manuel
Mande-me cá o sacristão
Que se não quer calar
Este grande berrão
Entretanto, cala-se o cabrito e o terceiro pastor volta-se para as pessoas e diz:
Cá vem o pobre pastor
Que sempre usa seu cajado
Seu ofício, toda a vida
É andar a guardar gado
Chego a casa, enfadado
De andar lá pelo monte
Ainda a patroa me diz
Ó criaaado, vai à fonte
Em frente ao presépio:
Vem qui comigo
Um cabrito a saltar
Cá Vos o deixo meu Menino
Aos pés do Vosso altar
Entretanto, uma pessoa da assistência
comenta:
Fraquinho! Muito fraquinho…
O público ri, mas o terceiro pastor não se mostra muito incomodado com a crítica e responde:
Ó meu Menino Jesus
Bem me podeis perdoar
Isto de fazer versos
É para quem os sabe quadrar
O público retoma a risada e o pastor com voz cava vai
desabafando:
Ó meu Menino Jesus
Esta gente está-se a rir
Eu já nem vejo a porta
Por onde hei-de sair
A estrela começa a regressar e o terceiro pastor
despede-se:
Ó meu Menino Jesus
Não me posso demorar
Pró ano se tiver saúde
Cá tornarei a voltar
Regressa para junto dos outros e todos cantam:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
Um quarto
pastor avança e, voltando-se para o público, diz:
Esta noite de Natal
É noite de alegria
Vimos adorar o Menino
Filho da Virgem Maria
Vai subindo e no meio da coxia:
É meu Menino Jesus
É meu Deus verdadeiro
Foram-se-me os lobos ao gado
Levaram-me um cordeiro
Junto ao presépio:
Ó meu Menino Jesus
Eu vivo numas montanhas
Pouco mais tenho para vos dar
Do que umas tristes castanhas
Adeus, meu Menino Jesus
Filho da Virgem Maria
Se eu chegar a ser patrão
Até choro de alegria
Volta-se para o público:
Esta vida de pastor
É custosa de levar
Se não tira o gado a horas
O patrão começa a ralhar
Desce e todos cantam novamente:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
O quinto pastor
avança e começa a função dizendo:
Se algum ponto errar
Ninguém se deve rir
A porta do errar é larga
Todos lá podem cair
No meio da coxia, volta-se para o público:
Esta estrela luminosa
Por onde passa, alumia
Ela me vai ensinar
O filho da Virgem Maria
No presépio, beija o Menino e diz:
Aqui trago, Menino Jesus
Dentro do meu sarrão
Uma garrafa de Vinho
Que me deu o patrão
Faz menção para se retirar, mas volta-se novamente
para o Menino:
Ó meu Menino Jesus
Já me ia a esquecer
Ainda cá tenho uma chouriça
Que é para vos oferecer
Regressa e cantam todos:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
Padre:
Há mais alguém que tenha prendas para oferecer ao
Menino?
Sobe um ganhão
e diz:
Eu também quero adorar o Menino
Depois, junto ao presépio:
Eu Vos ofereço esta garrafinha
De vinho moscatel
Bem sei que não é para Vós
Mas para o senhor padre José Manuel
Uma camponesa sobre também
e declama:
Eu deixo este agasalhinho
Para Vos aquecer
Fi-lo para Vo-lo oferecer
É de lã e bem quentinho
Uma
costureira trazendo roupinhas:
Menino Jesus
Tenho que Vos dar
Pelos Vossos pés
Hei-de começar
O primeiro dado
Hão-de ser sapatos
Hemos de ir à feira
Comprá-los baratos
Já tendes sapatos
Precisais de meiinhas
Eu Vo-las farei
De linhas bem finas
Já tendes camisa
Precisais jaleque
Eu Vo-lo darei
De pano de crepe
Menino Jesus
Que mais Vos hei de dar!
Uma rica cama
Para Vos deitar
Uma padeira, com açafate
na mão, sobe a coxia e declama:
Eu sou a padeira
Trago pães bem fresquinhos
Ouçam meus queridinhos
Quero ser a primeira
A adorar o Salvador…
Tão bonito que Ele é
Filho de Maria e José
Lindo, lindo, um amor
Atrás vem uma
lavadeira:
Eu sou a lavadeira
Seus cueiros quero lavar
Hei-de pô-los a corar
Na nossa ribeira
Avança a leiteira
e diz:
Eu venho dar ao Divino
Um queijinho amanteigado
Há muito o tinha guardado
Para o oferecer ao Menino
No meio das pessoas surge uma voz:
Estou muito contente
Hoje nasceu o Salvador
Nosso rei e Senhor
Protege São Vicente
Ampara, guarda, dá saúde à nossa gente
Pereiros, Partida, Casal da Serra ou Mourelo
Vale de Figueira, Paradanta, Tripeiro ou Violeiro
Menino Jesus, é povo de São Vicente
Todos as
personagens recitam:
Bendito e louvado seja
O Menino Jesus nascido
No ventre da Virgem Maria
Nove meses andou escondido
A assistência, com uma
flor ou um raminho de oliveira na mão, intromete-se dizendo:
Pai-nosso vimos pedir
Paz, alegria, misericórdia e amor
Aceita Menino esta flor
Já é tarde, vamos dormir
Ó meu Menino Jesus
Dorme um soninho descansado
Muito obrigado
O padre o termina o
auto:
A todos os presentes
Tenham uma noite descansada
Apesar de estar gelada
Espero que estejam contentes
O Menino está dormindo
Nos braços da Virgem pura
Os anjos Lhe estão cantando
Meu amor, minha doçura!
As personagens,
no fundo da igreja, cantam:
O Menino está dormindo
Nos braços da Virgem pura
Os anjos Lhe estão cantando
Meu amor, minha doçura!
Todos batem palmas
e, enquanto vão saindo, cantam:
Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
Fim
José Teodoro Prata
domingo, 22 de janeiro de 2017
Casas unidas
Uma das
virtudes deste blogue é ajudar-nos a olhar para alguns aspetos da nossa terra
com mais atenção e ver coisas que durante muito tempo nos escaparam. Até a
razão de ser da sua toponímia de que já foram dados alguns exemplos
interessantes.
Sobre as ruas
Manuel Lopes e Manuel Simões, e as casas em que provavelmente moraram os homens
que lhes deram o nome, deixou-me curiosa o facto de existir uma passagem entre
elas. Perguntei ao Joaquim Pereira (Reinoco) que viveu na da rua Manuel Lopes
se se lembrava dessa passagem e ele confirmou que havia essa e outras que
comunicavam com a casa da ti Marizé Gata e a do Maiaca. Terão sido casas de
judeus? E seriam os Lopes, os Simões e os Guerra, descendentes de judeus? Os
nomes são comuns nos Cristão Novos que tiveram que abdicar do direito de usar
os seus nomes judaicos para poderem permanecer em Portugal.
É interessante
o nome de Grácia, mulher de Manuel Lopes. Era também o nome de uma das mulheres
mais poderosas do século XVI, nascida em Portugal e herdeira de uma das maiores
famílias de banqueiros Cristão Novos da Europa – Os Mendes.
Casa com janela manuelina, na Rua Manuel Lopes.
Balcão seiscentista em casa da Rua Manuel Simões.
M. L. Ferreira
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