A mina fora escavada no Cimo de Vila para captação
de água, a fim de abastecer o casario da Alta. Assim, escusavam os moradores de
descer à Fonte Velha e evitavam subir a rua da Costa e a rua Manuel Simões, a
alombar com grandes cântaros; os homens ao ombro e as mulheres à cabeça. Nunca
dera uma chisca de água! Os vizinhos tiveram mesmo que continuar a ir buscá-la
ao Fundo de Vila, por muitos e bons anos; até que, mais tarde, se construiu um
fontenário na esquina de baixo, encostado à casa de Bernardo Garrancho.
Nas imediações da entrada dessa escavação, no
entroncamento da rua da Cruz com a da Corredoura, estabelecera-se o ponto de
encontro da cachopada. Parte do pequeno adro compreendia a calçada velha, onde
se esfolavam joelhos e se davam topadas; no mais, era térreo. Mal se podia
transitar por ali no inverno e muito menos brincar, porque o local se
transformava num desconfortável lodaçal. Mas com o tempo escorrido, em manhã
soalheira, traçavam-se no chão, com uma pedra bicuda, as raias do jogo da
bilharda. Pouco tempo seria necessário, porém, para encher de terra as mãos, a
cara, as calças e as camisas.
Um dia de primavera, já lá vinha o sol a aquecer um
pouco, o ruído do folguedo aumentava à medida que rolava a manhã. Levantava-se
uma caramunha, um alvoroço, entre os inúmeros garotos, alguns deles taludos, que
ensurdecia.
— Eh lá, malta dum raio! Pariu aqui a galega?! — exclamavam
alguns dos que passavam de enxada ao ombro para a horta.
Com uns 40 metros de profundidade, a mina fora
sempre cavada a pé enxuto. Ir até ao cabo — local onde as entranhas da terra tolhiam
o avanço — era uma proeza de que nem todos se podiam gabar! Seria preciso levar
velas, pinhas ou pedaços de pneu acesos, para vencer a escuridão. Depois, faltava
ainda a coragem para enfrentar os receios! A boca escura de rasgo ogival, um
metro e noventa de alto e pouco mais de um metro de largo, metia respeito! Só
os mais arrojados se aventuravam! Tinha sido recortada no xisto da vertente
oeste da serra da Gardunha, onde se dispersava a povoação.
As mães, por sua vez, recomendavam aos filhos:
— Meninos, não venham para casa com a roupa suja! —
Era chover no molhado! As palavras caíam nas
veredas estéreis da lembrança e não produziam frutos! A excitação dos jogos
superava os cuidados a observar! A calcular pelas badaladas do sino do relógio
da torre, passava uma hora, se tanto, e logo principiavam a ouvir-se as
genetrizes a ralhar aos rebentos.
— Ah! Condenado! — gritava da janela a Leonor para
o filho Eduardo, um dos mais velhos do grupo dos travessos. — O que te disse eu
quando saíste para a rua…? Já p’ra dentro! — e apontava-lhe a porta de casa. — Da
próxima, ficas fechado e não vais para a calhandrice.
Vendo o rapaz em estado lastimoso e, como ele não lhe
obedecesse, Leonor desceu as escadas a correr e quis ir buscá-lo por uma orelha,
mas não logrou os seus intentos. Era já crescido. Então, descalçou um sapato,
mas de sorte conseguiu açoitar-lhe as nádegas. Ele protegia-se e fugia na sua
frente o melhor que podia, enquanto amparava com os braços as arremetidas do
calcante, que pareciam lume. Mas, sempre lhe assentaram três ou quatro, umas a
preceito, outras a raspar. E pôs-se a gritar em alta voz:
— Ai…! Ai! Que me querem matar!
— Cala-te palerma! — ralhava a mãe.
— Vossemecê não vê como bate?! Nem que fosse num
animal. Podia vir aí a Protetora…! — retorquia, dorido.
— Caluda! Mal empregadas as que caíram no chão! —
dizia a mulher depois da tentativa de correr atrás do filho e a deitar os bofes
pela boca!
Estava a entrar na idade crítica e já não podia
como dantes. Era então uma rapariga robusta. Outros tempos! Os anos e a vida de
casada, anafaram-na e sentia dificuldades em o alcançar! Punha-se a arrazoar de
longe:
— Anda cá malandro…! — mas desfalecia e procurava
amparo na parede. — Ai Jesus…! Estou cansada! Este patife mata-me! Sempre lhe
caíram algumas em cima. Isso, santa paciência! É para aprender! — dizia,
enquanto se ia sentando, ofegante, na pedra da escada que dava da rua para o
limiar da sua casa.
O pai punha-o na linha como tinha feito com os
irmãos; mas isso era também se estivesse mais novo! Na altura usava o cinto! A
maioria dos filhos temia mais o pai do que a mãe. Ela era mais persistente; ele
impunha-se menos vezes, mas costumava ser mais duro.
Dantes, para vergar certos filhos, era preciso os
pais terem pulso. Caso contrário, faziam-lhes o ninho atrás da orelha.
Os dele? É o fazes! Ná! Com ele não faziam farinha.
Por isso aí estavam, obedientes e serviçais. O que ganhavam, entregavam-no em
casa; e é se queriam comer! Ficavam apenas com uma parte para os seus gastos. Estavam
um bocado atrasados nos negócios de saias! Deixá-lo! Com toda a certeza que
andariam a olhar para as cachopas — que ele não queria lá maricas em casa! — e
tinham que ter um pé-de-meia a contar com o futuro.
O tempo passou e o João — assim se chamava o pai — envelhecera
e relaxara-se ainda mais um bocado no tinto. E a mãe com o Eduardo, o mais novo,
ora, ora! Uma brincadeira! Ela fazia lá nada dele! Sacudia-lhe a roupa e, vá
lá, vá lá! Qualquer dos dois progenitores parecia sentir-se já ultrapassado
para educar o mais tardio dos descendentes. Saíra forte e desempenado, como era
da estirpe, mas não tinha má índole. Eles é que já não tinham as forças de
outrora. E o rapaz tornara-se malhadiço!
— Vai já pôr água na bacia grande e lavar-te! — aventava
a mãe.
Dizia aquilo mas sabia que o filho não lhe obedeceria;
pelo menos enquanto a contenda estivesse quente. Maior remédio é o tempo, que
tudo cura. Quando voltasse a casa para se lavar, o caso já teria arrefecido. Todas
as coisas têm a sua ocasião. Por isso, um nadinha mais tarde e já nem com um
dedo lhe tocaria. Seria descabido e o vigor também faltava.
Limitava-se a dizer:
— Qualquer dia, hás de ser tu a ir à fonte buscar
água para te lavares, porque a criada não está cá para isso.
A criada, bem entendido, era ela.
— É o que te digo, nunca vais tomar emenda! Está-te
na massa do sangue!
Com a gritaria, procurara o rapaz chamar a atenção
das vizinhas. Os pais não eram donos dos filhos e ele queria fazer parecer que
a atitude da mãe era demasiado severa. Tinha que haver uma entidade moralmente
superior para julgar o caso. E essa era o coro das vizinhas que, nestas coisas,
era quase sempre mais benevolente.
— Ó Maria Leonor, deixa o cachopinho! Coitadinho! —
diziam frequentemente.
Era como se fossem a família alargada. Várias opiniões
relativizavam-se mutuamente. A vontade de uma única pessoa, com ânsia de fazer justiça,
é sempre perigosa, tornando-se mais rígida e desproporcional. Não tem termo de
comparação. O rapaz ganiu, propositadamente, como cão que levara umas valentes arrochadas.
Não era assim que se batia numa criança!
Mas a mãe conhecia-o de ginjeira:
— Isto não é para tanta gritaria! Estás-te a fazer!
Cuidas que eu que sou parva? Pões-te a alardear para chamar a atenção, como se
fosses um infeliz, para virar as pessoas da rua contra mim; para pensarem que
eu é que sou a má! Estupor! Nunca hás de ser ninguém! Daqui amanhã, se o quiseres
ter na mesa, tens que o ganhar, pois então!
Com a vozearia, uma a uma, as vizinhas que já andariam
pela cozinha a preparar o jantar — visto que a manhã girava para o meio-dia — começaram
a abrir as janelas! Se havia alarido matinal era comum elas assomarem. O rapaz escondeu
na dobra do braço um leve esgar de sorriso malicioso. E as mulheres reagiam com
vigor:
— Credo! Que raio se passa aqui, ó Leonor?! — adiantou-se
a Maria da Barroca, que morava na antiga Casa dos Expostos, a última ao cimo da
rua da Cruz. Além dela, tinham vindo dar conta do desaforo a Conceição, a ti’
Piedade, a Palmira, a Maria de Jesus e ainda a ti’ Nazaré que era mouca, o que
não a impedia de dar fé de tudo!
— É este desavergonhado! — e apontava o filho. — Tanto
faz dizer-lhe assim como assado! Olha como ele está! Encharcado em terra!
— Então, já sabes, os cachopos querem é brincadeira,
mulher! — volveu a vizinha pondo água na fervura. — É deixá-los!
De forma que, na maioria das ocasiões, as vizinhas valiam
ao moço para acalmar a sanha da mãe que, às vezes, parecia petrificada de tão
possessa, a querer dar pancada! Outras maneiras de ver a forma de educar, confrontadas
com a dela, de viva voz, sempre a faziam pensar; porque, afinal, também ela era
de carne e osso como as mais!
— Pois, mas este já é demasiado crescido para andar
ainda a brincar. E depois, quem tem que ir à fonte e lavar a roupa ao ribeiro
do Marzelo, sou eu! — disse Leonor.
— Ó mulher, então para que os tiveste?
— É a vida…! — lamuriava-se Leonor.
Fez uma pausa momentânea e lembrou-se do seu homem.
Ele e ela tinham uma boa prole, mas tudo cachopos. Se Nosso Senhor a ouvira
dando-lhe rapazes escorreitos, já não a tinha escutado nas orações quando lhe
pedira duas raparigas para a ajudarem nas tarefas de casa e para equilibrarem
forças à mesa, à hora da ceia. Nem uma, quanto mais duas! A natureza é diversa
e aleatória e a vontade de Deus soberana.
O marido e todos os outros filhos andavam, por dia,
a trabalhar nas mais diversas tarefas agrícolas. Levavam bucha e só vinham à
noite. O Eduardo ainda andava na escola e moía a cabeça à mãe. Pela idade,
começava a não fazer muito sentido andar pegado a livros. Deserta estava ela para
o ver ir trabalhar. Mas só podia deixar as aulas dos catorze para os quinze e
era consoante o mês em que fizesse os anos. Ordens do governo!
Para a Leonor, sobretudo quando estava mais
descoroçoada da vida, os homens tinham sempre a culpa das mulheres terem muitos
filhos. Se ela o dizia, era porque tinha experiência disso. Cala-te boca! Com o
João, o marido — e só o conhecera a ele — já lá iam quase trinta anos de
casamento e sacrifícios! Ao princípio, quando casaram, a bem dizer, era um cá
fora, outro na barriga!
Agora já não, mas em novo — passara entretanto uma
rima de tempo! — acontecia muitas vezes, quando regressava a casa, vindo da
taberna do Marcelino. Por volta das onze da noite, entrava sorrateiro e um
poucochinho tocado da pinga, dir-se-ia, atravessado. Nessas alturas era preado!
Apanhava-a no torpor inicial, antes do sono profundo e disfarçava, como se não
soubesse o que estava a fazer, o espertalhão…! Sempre podia pôr as culpas no
vinho…!
O certo é que, em pouco tempo, aparecia mais um inocente
a embarrar-se nas saias da mulher, com todos os trabalhos, renúncias e lágrimas
que daí resultavam. Lá dizia a sabedoria das esposas mais experientes da época:
“O casamento para as mulheres é trabalhar, parir e chorar!”
— Esconjurados sejam os homens e mais a sua maldita
lascívia! — apregoava ela aos quatro ventos. Apontava o dedo ao sexo oposto como
o grande responsável por virem ao mundo tantas crianças e muitas delas sem
condições! Por isso e porque em casa só tinha varões e, em questão de opiniões
não podia bulir, adquiriu uma certa desconfiança de género. Os homens eram
impenetráveis, egoístas e interesseiros. Se tinham que trabalhar, era porque se
viam a isso obrigados, porque a sua verdadeira natureza era cuidar apenas do
que lhes pedia o corpo.
Mas, atrás de tempo, tempo vem. E este não perdoa. A
idade tudo traz e não é coisa boa. A inflexibilidade e a fogosidade tinham-se-lhe
acabado. Os anos tornaram o João mais doidivanas e a fraqueza fez dele um homem
mais tolerante. Quanto mais envelhecia, mais apreciava o tinto!
Leonor espertou deste pensamento momentâneo e trouxe
a consciência de volta à rua onde se estava a passar a cena naquela manhã.
Ainda foi a tempo de exclamar com um azedume existencial para as vizinhas e com
o filho a escutar:
— Deixá-lo! São homens! É tudo o mesmo! Ele é como
o pai! E o pai é que tem o maior pecado. O que quer é andar também por aí, perdido
e achado, nas baiucas! Se não está a trabalhar, está na taberna. Isso é pela
certa! Raios parta o vinho! — clamava.
Apesar de culpar sempre os homens pelas agruras da
sua vida, acabava, também ela, por acusar, ainda que indiretamente, o vinho. Tinha
Baco as costas largas!
E continuou o farelório para o soalheiro:
— Quando o rapaz sai, à tarde, da escola — onde já
é dos mais atrasados, porque é cabeça de burro! — o pai, se for capaz, que o ponha
a guardar as duas cabras que aí temos e a ir ao mato e à lenha, a ver se sabe o
que custa a vida; que eu não quero cá mandriões! Não quero ociosos na família. Qualquer
dia tem idade para se casar e ainda anda a brincar na rua como os meninos
pequeninos! Ora com ‘feito! A quem é que este maroto sai? A mim não é, com
certeza, porque eu sempre lhe dei para trás!
— Ele já tem mais força qu’a ti! — calculou a vizinha Zefa, a mulher do Chico Tenente que,
afinal, também viera cá fora por mor do barulho. Sentara-se no seu balcão de
pedra de cantaria e trazia a faca, o alguidar e o punhado das couves que estava
a migar para a sopa.
— Pois é! Vê lá tu, Zefa! O machacaz! É o que eu
digo. A culpa é do pai! — insistia Leonor na ira que a movia contra os homens. —
Correão dos infernos! Já que não quer tomar tento, há de aprender à custa dele!
Tanto tombo há de dar que um dia toma juízo; ai isso toma! Porque a vida não
está p’ra festas! — arengava. Pelas suas contas, o filho devia levar uma sova
todos os dias porque, se lhe dessem só uma por semana, era pouco!
Eduardo, o agente principal do aparato dramático, estava
agora indolente, desbarrigado, por mor do jogo da bilharda e das correrias. Encostara-se
à parede da casa defronte da da mãe, toda levantada em granito, à vista, amarelado
do tempo. Falou devagar, com ar macambúzio mas, no íntimo, a rir-se, porque
sempre tinha conquistado uns pontos para o seu ego.
— O que é que eu fiz? —
deixou escapar entre dentes.
— Diz antes o que não
fizeste! — respondeu-lhe a mãe. — Passas a vida na brincadeira como se fosses
ainda uma criança. Nem um molho de mato vais buscar para o quintal. A loja das
cabras e o galinheiro estão cheios de estrume; é preciso tirá-lo e pôr cama
nova. — atirou. E prosseguiu: — Deixa lá! Também não hás de comer ovos, nem pôr
leite no café, que te leva o diacho! És só ossos! Só se te veem as costelas! Descamisado!
Pareces mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. Mas o que tu és, deveras, é
o Canhoto em pessoa, salvo seja, cruzes! Olhem-me para aquele preparo! Só umas
gemadas de ovo batidas com açúcar todos os dias, durante um mês, podem tapar-te
as gaivas do arcaboiço da caixa de ar. Não é porque cá em casa passes fome —
mal disfarçava a Leonor — o que tu és, é avenado, esquisito. Levanta um bocado essa
camisa! — ordenou com rispidez.
Com a roupa em desalinho, repleta
de manchas de terra seca e gesto indiferente, o moço afastou com muito má
vontade, mais um bocado da camisa desazada que trazia vestida e alanzoou:
— O que é que vossemecê
quer ver?! Hã! É só ossos o quê? Não tenho as costas direitas? Foi vossemecê
que mas fez; ou não foi? Se tenho as costas aleijadas a culpa é sua.
— Huum! Vê lá se te
acomodas com a língua! Isso são maneiras? Já sabes como é que elas te queimam! Se
vou aí, levas com o sapato nessas nalgas que nem sabes a que freguesia
pertences! Olhem lá o paspalho! Até já a morte tem vício! Hã! — insurgia-se ela
contra a resposta do filho; mas sabia que só tinha forças para o ameaçar de
largo.
—
Não tens as costas deformadas, não, que eu bem sei. Não és nenhum coitadinho;
bem se vê pelo corpaço que tens! O que tu andas é magro que nem um cangalho! Quando
nasceste vinhas muito direitinho, graças ao Senhor Santo Cristo que me atendeu
nas orações. Vieste são e perfeito, graças a Deus! Se alguma coisa tens agora
que está desconforme, é porque não tens juízo. Não sei o que andas a fazer. A
idade anda a criar-te vícios. Estafermo! Ainda hás de dar cabo de ti. Só te
puxa para o mal e para a brincadeira. Ladrão! — afirmava Leonor com a sua suspeita
por tudo o que era masculino.
De maneira que era assim…
Mas, num outro dia de galderice, a somar a tantos,
neste caso em pleno verão, apareceram ali no largo, não se sabe muito bem
porquê, alguns cachopos do Fundo de Vila e do Cabeço que fica por cima da
Oriana. A manhã ia já adiantada e o astro-rei caminhava para o seu auge. Embora
os recém-chegados não morassem no local, todos se conheciam uns aos outros dos
tempos de escola, da catequese, dos jogos na praça e de irem à missa ao
domingo.
Não se sabia muito bem a razão da sua presença. Pelo
buço que lhes aflorava a superfície da face, percebia-se que não eram nenhuns
meninos de colo. Com aquela idade, se não andassem já a trabalhar a ganhar para
casa, estariam, por natureza, adstritos aos afazeres nas leivas de família ou a
carregar lenha para empilhar na loja, porque o inverno era sempre rigoroso. O
trabalho da criança é pouco, mas quem o perde é louco.
Para estarem ali àquela hora, alguns deviam ter-se
escapulido ao pai. Com certeza que andavam a vagabundear, à boa vida, em vez de
cumprirem as suas ordens. Iriam talvez para a Senhora da Orada pelo caminho de
cima, a passear e a beber água, feitos vadios. Ora, todos os dias eram de
trabalho! O domingo à tarde era o único tempo de lazer semanal de que dispunham
os homens e os rapazes assazoados, já com namoros para fins sérios. Depois da
missa, passavam pelas tabernas a beber uns tintos e a falar de negócios, ambiente
habitualmente não frequentado por mulheres e filhos pequenos. A civilidade
guardada pelos cânones sociais, não permitia que as palavras rudes em contexto
de interesses próprios dos homens, ferissem os ouvidos da dona de casa honrada ou
da menoridade casta.
De resto, não havia cá vida rica p’ra ninguém! E
quem não quisesse dobrar a espinha e agarrar numa ferramenta para trabalhar,
estava sujeito a uma valente malha. Algo parecia então não estar certo com os
recém-chegados. E as suspeitas vieram a revelar-se verdadeiras.
Com efeito, de repente, sem que ninguém se
apercebesse, surgiu sorrateiramente, vindo de trás da esquina da casa da
Leonor, do lado da rua da Cruz, o José Covas, homem fero, com unhas para a vida,
que morava no Cabeço. Trazia uma corda enorme e grossa dobrada ao ombro. O
filho dele, o Henrique — conhecido como Tolaia entre os seus pequenos pares — iniciara
uma partida de bilharda e andava tão entretido que não deu pela chagada do pai.
Se tivesse dado por ele, tinha fugido a sete pés e tomado o caminho de casa. Já
acontecera antes! Quando assim era, se o homem lhe atirava com uma vergastada que
o apanhava apenas a escapar — porque o rapaz era mais ágil que um cabrito — o
progenitor ameaçava:
— Anda lá, meu velhaco, que em chegando a casa levas
mais!
Mas o José Covas, naquele dia, aproveitando o facto
de o filho andar a jogar descuidado, chegou-se perto, pela retaguarda, sem que ele
se apercebesse, enrolou-lhe a corda à volta do pescoço por uma ponta, pegou na
outra e puxou como se faz com um animal de grande porte, cavalo ou burro. O
rapaz, atado pelo pescoço, nada podia fazer e tornou-se submisso como um
cordeiro.
— Ah! Ladrão, que desta vez apanhei-te! — disse o
seu captor triunfante. — Gatuno! Anda um vagabundo destes a vadiar… Calmeirão, desavergonhado!
Um homem feito, a brincar na rua! — vociferava o Covas. — Se o quiseres, tens
que o ganhar!
E ia puxando
de um lado da corda, com o rapaz preso no outro, aqui caía, ali se levantava,
lá iam os dois pela Corredoura fora, a caminho de casa, debaixo das imprecações
do pai. O filho tinha que ir trabalhar nas fazendas como lhe ordenara nessa
manhã — pois quê! — meter as mãos na terra, a desterroá-la com a enxada,
endireitá-la e fazer regos para batatas ou a guardar o rebanho. A existência
era dura, não era nenhuma brincadeira. E era se queria comer! Só desta maneira
não se perderia, como homem, ao longo dos caminhos da vida. Não estava escrito
como as profecias da Bíblia, mas era como se estivesse. Não eram também os
profetas a origem de grandes proles — como o Covas — e não eram eles obedecidos?
Pois, se sempre assim fora, por que razão tudo havia agora que mudar?
As mulheres que ali moravam, porém, durante aquela
operação de caça ao filho, sobretudo quando viram o calabre no pescoço do moço,
assanharam-se um bocado contra o homem.
— Ó Covas, olha que isso é demais! Não é coisa que
se faça a um filho, homem. — alegavam.
Mas ele conhecia bem as linhas com que se cosia,
porque aquilo não era a primeira vez.
— Ó santas mulheres, estejam sossegadas e não
tenham pena que eu também não! Vamos ver qual de nós é que manda lá em casa! Se
sou eu ou se é ele!
O José Covas bem sabia que tinha feito um laço não
corredio abaixo da travinca para não o atafegar! Mas, as mulheres sem saberem disto,
continuavam a gritar:
— Olha que podes dar cabo do rapaz! — insistiam.
— Dar cabo? Qual carapuça! Isto é mais rijo que um
canelo!
Dizia isto ao mesmo tempo que se ia afastando e acabou
por desaparecer na rua da Corredoura, levando o filho pela arreata.
Foi um alarido dos diabos com semelhante acontecimento,
tão pouco usual ali no largo da mina no Cimo de Vila, lá isso foi! As surras
que o João e a Leonor davam aos filhos, mesmo nos seus tempos áureos de homem e
mulher fortes e destemidos, não eram nada, comparadas com o que aconteceu ao
Tolaia com a corda enrolada à volta do pescoço! Nunca se tinha visto ali uma
coisa assim!
Isto passou-se. Mas muitas outras ocorrências se repetiam
frequentemente — talvez não tão graves como aquela — ali à esquina, nas
imediações da mina; fosse com o chão ainda húmido, na primavera, fosse a desfazer-se
em pó como a cinza, no verão. Para tanto, bastava que brilhasse a estrela do
sol.
Os pequenos atores da paródia de rua nada tinham,
porém, de seu; os brinquedos eram improvisados em paus, latas e pedras! E se assim
fora durante tanto tempo, era porque a ordem das coisas no universo devia estar
certa! Concordasse-se ou não. Havia, pois, que aproveitar, pelo menos, a
acolhedora luz solar quando não houvesse nuvens e chuva. Poucas coisas restavam
à miudagem que não fosse divertir-se, jogar às guerras e sujar as mãos naquele chão.
Para quem era, o sol e a terra bastavam!
Enquanto os filhos berravam e algaraviavam, as mulheres
iam dar de comer às galinhas que criavam nas lojas ou no quintal e ainda cuidavam
da pequena courela ali perto, nas Tapadas. O resto do santo dia, tratavam da
casa, faziam o jantar, adiantavam logo a ceia e observavam, comentavam e
ralhavam sobre o que se passava no terreiro ali ao pé. Enquanto os homens lá iam
de manhã cedo, a bater terreno, a pé, para as fazendas da Oles e do Vale
Feitoso, já quase noutra freguesia, feitos negros, a ganhar a côdea.
Os tempos iam maus e as leiras herdadas dos pais ou
que, à custa de mourejar, com grande sacrifício — muitas vezes tirando-o à
barriga — lograram angariar, tinham vindo a ser perdidas. Nesses escassos metros
quadrados de terreno semeavam as parcas couves negras e umas poucas de batatas
para o inverno.
Mercê de períodos difíceis, foram abrindo mão das
pequenas hortas, a favor das casas de linhagem da Vila, por uma ninharia. Podia
ser uma broa ou meio alqueire de milho. Era conforme o sítio e a qualidade do
terreno. Tudo tinha que ser sopesado. Até parecia que as partes se encontravam
em análoga posição para negociar! A diferença, porém, era haver ou não pão na
arca lá de casa! Coisa de pouca monta! No mais tudo era idêntico: tratava-se de
dois contratantes, ambos homens, um de cada lado, e qualquer deles tinha
estômago…!
Os compradores, por aquele justo preço e cheios de
boas intenções, juntavam — pois, quê! — mais umas leiras ao que aprouvera ao
erário real conceder aos seus antepassados pelos muitos feitos prestados; e que
a eles viera, pelo grande esforço que, como herdeiros, tinham que despender, para
arcar com o peso de tão insignes nomes!
Suas senhorias, vinham à Vila de vez em quando,
vestidos a condizer, ter a maçada de recolher as colheitas da época.
Dignavam-se, então, descer ao terreno do seu parceiro de sinalagma, a sujar um
pouco os pés!
Deixá-lo! Era a penalização que de boa vontade suportavam.
Afinal, além do produto de teres e haveres que ali fruíam — apesar de viveram fora
na roda do ano — também se pelavam por algumas donzelas que brotavam na aldeia
como papoilas salpicando a seara, pele de pêssego de S. João, que apreciavam
como galula! E assim, por pouco mais que o preço por que era transacionada a
courela — talvez mais uma broa — era também alienada a dignidade do vendedor. Porque,
quer a filha deste, quer a courela, fazia tudo parte do mesmo negócio!
Ao sol é que suas senhorias ainda não podiam chegar.
Caso contrário, nem essa chama celeste deixariam a alumiar o mundo! Por isso, os
miúdos, na sua rebeldia, se divertiam ali naquele chão, com os olhos cheios de
luz, sujando as mãos; bem se importavam eles! E os graúdos, por sua vez, educavam-nos
a seu modo. Era a vida e as gerações no seu ciclo, recobrando forças para
enfrentar o futuro. Porém, o sol e a terra, era quase tudo o que, por enquanto,
lhes sobrava!
NOTA: Episódios ficcionados a partir de vivências populares. As
condições que o país impunha, retirava, a muita gente, a autoestima e a própria
consideração que lhes devia a comunidade.
Como de costume, alerta-se para o facto de poderem ter sido utilizadas
palavras ou expressões que não constam da ortografia oficial.
JOSÉ BARROSO