Quando
o meu pai era pequeno o meu avô trabalhava na casa de uma das famílias mais
ricas cá da terra e por isso era onde a professora ficava hospedada. Nessa
altura o meu pai ainda não tinha idade para entrar para a escola, mas a mãe foi
pedir à filha do patrão que falasse à professora a ver se o deixava entrar, só para
o tirar da rua. A professora disse que sim, que podia ir, mas que levasse um
banquinho de casa, que não tinha onde o sentar. E assim foi. Arranjaram um
banco e o menino passava o dia sentado ao lado da secretária da professora, com
a pedra no colo, e lá ia fazendo uns riscos com o ponteiro, a imitar as letras
e os números que a professora fazia no quadro para os outros copiarem.
Mas
aquilo era um inferno para o cachopinho, avesado a andar a correr pelas ruas ou
a apanhar peixes na ribeira. Sempre que ouvia os chocalhos dos rebanhos a
passar no caminho, ao pé da escola, e os pastores atrás, a assobiar, ficava
numa tristeza tão grande que só visto. Mas ficava calado e assobiava baixinho,
só para ele, a sonhar com o dia em que também pudesse ter um rebanho de cabras
e andar por lá o dia todo com elas. Uma vez chegou a casa a chorar e voltou-se
para a mãe:
-
Também não sei porque é que eu nasci tão desgraçadinho e os outros cachopos são
tão felizes!
-
Porque é que dizes uma coisa dessas, filho?
-
Então não vejo os outros atrás das cabras, e eu ali o dia todo, assentado num
banco a olhar p’ó cu da professora?
Mal
fez o exame da 4ª classe começou logo a trabalhar como os da idade dele: à
frente das vacas, atrás das cabras, a colher azeitona ou aos molhos de mato e de
lenha. Era o que havia para fazer, e às vezes nem havia domingos nem dias
santos. Havia alturas que já andava tão farto daquela vida que até sentia
saudades dos tempos que passou sentado no banquinho ao lado da professora. Um
dia, ainda bem cedo, chegou a casa todo derreado debaixo de um molho de mato
que tinha ido roçar lá para uma lonjura que só visto. Antes de o traçar e fazer
a cama ao porco foi beber o café, que ainda estava em jejum. Nisto, a mãe
ouve-o a lamuriar-se:
-
Sou um desgraçadinho! Os meus primos ceguinhos é que são felizes, que nem têm
que ir ao mato nem à lenha. Quem me dera ser com’ a eles!
A
mãe nem queria crer no que estava a ouvir:
-
Benza-te Deus, filho! Tu nem digas ma coisa dessas que o Nosso Senhor ainda te
castiga!
-
Digo pois, que s’ eu fosse ceguinho com’ a eles ainda estava na cama a estas
horas…
Sempre
gostou muito de cagarrapos. O dia em que enchiam as farinheiras, por alturas da
matação, era uma festa. À ceia eram sempre dois ou três, ainda quentinhos, com
um naco de pão por cima da sopa.
Uma
vez, quando se levantou da cama, no dia a seguir, foi a correr chamar a mãe:
- Eh mãe, venha cá aqui à cozinha, que está uma
farinheira caída no meio do chão!
- Deixa lá! É da maneira que já temos conduto
p’rá noite!
O
pior é que, durante quase uma semana, todas a manhãs aparecia uma farinheira caída
por baixo do fumeiro.
-
Rais parta o diabo, qu’inté parece que m’ imbruxaram as farinheiras! - Lamentava-se
já a mãe.
-
Anda pr’aí mistério; ai anda, anda… - Respondia o filho, ansioso que chegasse a
ceia.
Mas
um dia a mãe, estranhando que se andasse a levantar da cama primeiro que todos,
foi espreitá-lo e descobriu que era ele que andava a afrouxar os nós das
baraças das farinheiras.
Um ano, já era pastor sozinho, começaram
a usar-se as camisas de meia manga. Havia cá na terra uns rapazes do ano dele que
tinham uma tia em Lisboa e que, pela festa do Santiago, trouxe uma dessas
camisas da moda para cada um deles.
No
dia da festa, quando viu os amigos com as camisas novas, não tirava os olhos
delas, de tão lindas que as achava. À noite moeu o juízo à mãe:
-
Sou um desgraçadinho que nem tenho uma camisa de manga curta, com’os outros
cachopos! Corte-me lá as mangas a esta aqui.
-
Tu vê se tomas tino e não m’atentes o juízo! E depois no inverno, com’ é que
fazes? Apegas outra vez as mangas à camisa?
Calou-se.
Quando foi ao outro dia, que saiu com as cabras, levou um podão bem afiado e,
mal chegou lá a um certo sítio, despiu a camisa, pôs as mangas em cima dum cepo
e cortou-as pelo meio. Passou o dia numa ânsia, a ver quando é que o Sol descia
para arrecadar o gado na corte. Mal entrou em casa e a mãe encarou com ele, ia
caindo o Carmo e a Trindade; mas ele, bem ralado! Engoliu a ceia à pressa e
saiu porta fora com as mãos nos bolsos, a assobiar, todo inchado, para que
todos lhe pudessem ver bem a camisa de manga curta.
Era assim, o meu pai! E o que a
gente se divertia a ouvi-lo contar estas histórias à roda do lume…
M. L. Ferreira