No passado, mostrei-vos uns pesticidas biológicos que começara a usar. Desisti deles, pois não resultavam (devem resultar, mas eu terei exigido demasiado deles).
Este ano, a chuva tem-me feito a cabeça em água com as doenças que provoca. Além dos pessegueiros e da produção de cerejas, que foram à vida, tinha tomateiros grandes que ficaram doentes. Investiguei na net e achei um remédio: regar a rama com água e leite (1 litro de leite para 4/5 litros de água). A rama absorve o potássio do leite, tornando-a mais forte contra as doenças.Tem é de ser aplicado de manhã, talvez para, com o calor, não criar uma película seca sobre as folhas, impedindo-as de respirar. Resultou, pois consegui salvar metade dos tomateiros e todos estavam muito mal!
Na mesma altura, encontrei um modo de fertilizar as hortícolas com um adubo natural: meter as urtigas dentro de água durante uma semana e depois regar a rama das plantas com essa água, muito rica em azoto, pois as folhas absorvem o azoto presente na água. A rega das folhas é asneira, pois queima-as parcialmente, tal a quantidade de azoto. Queimei parte das folhas, mas sem consequências de maior e o azoto fertilizou-as. Mas passei a usar a água para regar junto aos pés das plantas e não sobre a rama. Também comecei a mergulhar na água não só as urtigas, mas todo o género de ervas que arranco do meio das hortícolas. Esta vale a pena, o problema, não pequeno, é o pivete. Se tocarmos com as mãos nessa solução, andamos todo o dia a lavá-las.
Logo no início do ano, tentara um pesticida natural para queimar a grama, no Ribeiro Dom Bento. Li uma coisas e vi que a água da cozedura das couves era boa. Não fez nada. Penso que é a mesma coisa das urtigas/ervas mergulhadas em água durante 8 dias. Tentei com vinagre e resultou. Mas depois veio o covid e o vinagre esgotou logo. Interrompi. Ainda bem, pois a grama queimou-se superficialmente, mas passado um mês rebentou por baixo e tudo voltou ao mesmo.
Agora, com as cerejas, faço como me disse um dia o Zé Manel: como as boas e deixou as dos carneiros (ou deito-os fora e como-as na mesma).
Estas são as vicissitudes de um agricultor à procura dos melhores caminhos para a produção biológica.
José Teodoro Prata
Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para dosenxidrosgardunha@gmail.com
quarta-feira, 3 de junho de 2020
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Infestantes
Um ou dois anos após o penúltimo grande incêndio na Gardunha, há cerca de 15-18 anos, espantei-me e até me maravilhei com as encostas da Senhora da Orada todas floridas graças às giestas amarelas que cobriam tudo. Nesse dia da romaria, tentei percorrer parte do percurso da estrada romana, mas desisti, porque o caminho estava quase tapado com giestas que cresciam nas margens e já eram mais altas que eu.
Não tive então consciência do que acontecera e só agora me apercebi. O que aconteceu na Senhora da Orada há anos, sucedeu agora, com este incêndio de 1917, no Cabeço do Pisco, no Carvalhal Redondo e até na barreira junto à Tapada de Dona Úrsula: as giestas amarelas tomaram conta de tudo, este ano têm um metro de altura e para o ano terão dois, abafando todos os outros matos e ervas e assim reduzindo a biodiversidade.
Noutros locais foram os eucaliptos e as mimoseiras. Quando vi as plantas a rebentarem após o incêndio, tive a ilusão de que tudo voltaria a ser como dantes, mas não será. As infestantes aproveitam estes momentos de fragilidade dos ecossistemas para monopolizarem todo o espaço. Muitas plantas começam a rarear e até desaparecem e consequentemente a fauna também empobrece.
Lá pela meia encosta, esta é a beleza do momento. Até quando? Em primeiro plano já se veem giestas de meio metro de altura que para o ano vão começar a abafar este mato florido.
Ambas as fotos foram tiradas no Cabeço do Pisco, junto ao cruzamento do caminho que vem do Caldeira para as Quintas com o outro que sobe da Vila para as Lameiras. A das giestas é do lado do poente e a dos matos branco e sargaço é do nascente.
José Teodoro Prata
sábado, 23 de maio de 2020
A terra e as mãos
A mina fora escavada no Cimo de Vila para captação
de água, a fim de abastecer o casario da Alta. Assim, escusavam os moradores de
descer à Fonte Velha e evitavam subir a rua da Costa e a rua Manuel Simões, a
alombar com grandes cântaros; os homens ao ombro e as mulheres à cabeça. Nunca
dera uma chisca de água! Os vizinhos tiveram mesmo que continuar a ir buscá-la
ao Fundo de Vila, por muitos e bons anos; até que, mais tarde, se construiu um
fontenário na esquina de baixo, encostado à casa de Bernardo Garrancho.
Nas imediações da entrada dessa escavação, no
entroncamento da rua da Cruz com a da Corredoura, estabelecera-se o ponto de
encontro da cachopada. Parte do pequeno adro compreendia a calçada velha, onde
se esfolavam joelhos e se davam topadas; no mais, era térreo. Mal se podia
transitar por ali no inverno e muito menos brincar, porque o local se
transformava num desconfortável lodaçal. Mas com o tempo escorrido, em manhã
soalheira, traçavam-se no chão, com uma pedra bicuda, as raias do jogo da
bilharda. Pouco tempo seria necessário, porém, para encher de terra as mãos, a
cara, as calças e as camisas.
Um dia de primavera, já lá vinha o sol a aquecer um
pouco, o ruído do folguedo aumentava à medida que rolava a manhã. Levantava-se
uma caramunha, um alvoroço, entre os inúmeros garotos, alguns deles taludos, que
ensurdecia.
— Eh lá, malta dum raio! Pariu aqui a galega?! — exclamavam
alguns dos que passavam de enxada ao ombro para a horta.
Com uns 40 metros de profundidade, a mina fora
sempre cavada a pé enxuto. Ir até ao cabo — local onde as entranhas da terra tolhiam
o avanço — era uma proeza de que nem todos se podiam gabar! Seria preciso levar
velas, pinhas ou pedaços de pneu acesos, para vencer a escuridão. Depois, faltava
ainda a coragem para enfrentar os receios! A boca escura de rasgo ogival, um
metro e noventa de alto e pouco mais de um metro de largo, metia respeito! Só
os mais arrojados se aventuravam! Tinha sido recortada no xisto da vertente
oeste da serra da Gardunha, onde se dispersava a povoação.
As mães, por sua vez, recomendavam aos filhos:
— Meninos, não venham para casa com a roupa suja! —
Era chover no molhado! As palavras caíam nas
veredas estéreis da lembrança e não produziam frutos! A excitação dos jogos
superava os cuidados a observar! A calcular pelas badaladas do sino do relógio
da torre, passava uma hora, se tanto, e logo principiavam a ouvir-se as
genetrizes a ralhar aos rebentos.
— Ah! Condenado! — gritava da janela a Leonor para
o filho Eduardo, um dos mais velhos do grupo dos travessos. — O que te disse eu
quando saíste para a rua…? Já p’ra dentro! — e apontava-lhe a porta de casa. — Da
próxima, ficas fechado e não vais para a calhandrice.
Vendo o rapaz em estado lastimoso e, como ele não lhe
obedecesse, Leonor desceu as escadas a correr e quis ir buscá-lo por uma orelha,
mas não logrou os seus intentos. Era já crescido. Então, descalçou um sapato,
mas de sorte conseguiu açoitar-lhe as nádegas. Ele protegia-se e fugia na sua
frente o melhor que podia, enquanto amparava com os braços as arremetidas do
calcante, que pareciam lume. Mas, sempre lhe assentaram três ou quatro, umas a
preceito, outras a raspar. E pôs-se a gritar em alta voz:
— Ai…! Ai! Que me querem matar!
— Cala-te palerma! — ralhava a mãe.
— Vossemecê não vê como bate?! Nem que fosse num
animal. Podia vir aí a Protetora…! — retorquia, dorido.
— Caluda! Mal empregadas as que caíram no chão! —
dizia a mulher depois da tentativa de correr atrás do filho e a deitar os bofes
pela boca!
Estava a entrar na idade crítica e já não podia
como dantes. Era então uma rapariga robusta. Outros tempos! Os anos e a vida de
casada, anafaram-na e sentia dificuldades em o alcançar! Punha-se a arrazoar de
longe:
— Anda cá malandro…! — mas desfalecia e procurava
amparo na parede. — Ai Jesus…! Estou cansada! Este patife mata-me! Sempre lhe
caíram algumas em cima. Isso, santa paciência! É para aprender! — dizia,
enquanto se ia sentando, ofegante, na pedra da escada que dava da rua para o
limiar da sua casa.
O pai punha-o na linha como tinha feito com os
irmãos; mas isso era também se estivesse mais novo! Na altura usava o cinto! A
maioria dos filhos temia mais o pai do que a mãe. Ela era mais persistente; ele
impunha-se menos vezes, mas costumava ser mais duro.
Dantes, para vergar certos filhos, era preciso os
pais terem pulso. Caso contrário, faziam-lhes o ninho atrás da orelha.
Os dele? É o fazes! Ná! Com ele não faziam farinha.
Por isso aí estavam, obedientes e serviçais. O que ganhavam, entregavam-no em
casa; e é se queriam comer! Ficavam apenas com uma parte para os seus gastos. Estavam
um bocado atrasados nos negócios de saias! Deixá-lo! Com toda a certeza que
andariam a olhar para as cachopas — que ele não queria lá maricas em casa! — e
tinham que ter um pé-de-meia a contar com o futuro.
O tempo passou e o João — assim se chamava o pai — envelhecera
e relaxara-se ainda mais um bocado no tinto. E a mãe com o Eduardo, o mais novo,
ora, ora! Uma brincadeira! Ela fazia lá nada dele! Sacudia-lhe a roupa e, vá
lá, vá lá! Qualquer dos dois progenitores parecia sentir-se já ultrapassado
para educar o mais tardio dos descendentes. Saíra forte e desempenado, como era
da estirpe, mas não tinha má índole. Eles é que já não tinham as forças de
outrora. E o rapaz tornara-se malhadiço!
— Vai já pôr água na bacia grande e lavar-te! — aventava
a mãe.
Dizia aquilo mas sabia que o filho não lhe obedeceria;
pelo menos enquanto a contenda estivesse quente. Maior remédio é o tempo, que
tudo cura. Quando voltasse a casa para se lavar, o caso já teria arrefecido. Todas
as coisas têm a sua ocasião. Por isso, um nadinha mais tarde e já nem com um
dedo lhe tocaria. Seria descabido e o vigor também faltava.
Limitava-se a dizer:
— Qualquer dia, hás de ser tu a ir à fonte buscar
água para te lavares, porque a criada não está cá para isso.
A criada, bem entendido, era ela.
— É o que te digo, nunca vais tomar emenda! Está-te
na massa do sangue!
Com a gritaria, procurara o rapaz chamar a atenção
das vizinhas. Os pais não eram donos dos filhos e ele queria fazer parecer que
a atitude da mãe era demasiado severa. Tinha que haver uma entidade moralmente
superior para julgar o caso. E essa era o coro das vizinhas que, nestas coisas,
era quase sempre mais benevolente.
— Ó Maria Leonor, deixa o cachopinho! Coitadinho! —
diziam frequentemente.
Era como se fossem a família alargada. Várias opiniões
relativizavam-se mutuamente. A vontade de uma única pessoa, com ânsia de fazer justiça,
é sempre perigosa, tornando-se mais rígida e desproporcional. Não tem termo de
comparação. O rapaz ganiu, propositadamente, como cão que levara umas valentes arrochadas.
Não era assim que se batia numa criança!
Mas a mãe conhecia-o de ginjeira:
— Isto não é para tanta gritaria! Estás-te a fazer!
Cuidas que eu que sou parva? Pões-te a alardear para chamar a atenção, como se
fosses um infeliz, para virar as pessoas da rua contra mim; para pensarem que
eu é que sou a má! Estupor! Nunca hás de ser ninguém! Daqui amanhã, se o quiseres
ter na mesa, tens que o ganhar, pois então!
Com a vozearia, uma a uma, as vizinhas que já andariam
pela cozinha a preparar o jantar — visto que a manhã girava para o meio-dia — começaram
a abrir as janelas! Se havia alarido matinal era comum elas assomarem. O rapaz escondeu
na dobra do braço um leve esgar de sorriso malicioso. E as mulheres reagiam com
vigor:
— Credo! Que raio se passa aqui, ó Leonor?! — adiantou-se
a Maria da Barroca, que morava na antiga Casa dos Expostos, a última ao cimo da
rua da Cruz. Além dela, tinham vindo dar conta do desaforo a Conceição, a ti’
Piedade, a Palmira, a Maria de Jesus e ainda a ti’ Nazaré que era mouca, o que
não a impedia de dar fé de tudo!
— É este desavergonhado! — e apontava o filho. — Tanto
faz dizer-lhe assim como assado! Olha como ele está! Encharcado em terra!
— Então, já sabes, os cachopos querem é brincadeira,
mulher! — volveu a vizinha pondo água na fervura. — É deixá-los!
De forma que, na maioria das ocasiões, as vizinhas valiam
ao moço para acalmar a sanha da mãe que, às vezes, parecia petrificada de tão
possessa, a querer dar pancada! Outras maneiras de ver a forma de educar, confrontadas
com a dela, de viva voz, sempre a faziam pensar; porque, afinal, também ela era
de carne e osso como as mais!
— Pois, mas este já é demasiado crescido para andar
ainda a brincar. E depois, quem tem que ir à fonte e lavar a roupa ao ribeiro
do Marzelo, sou eu! — disse Leonor.
— Ó mulher, então para que os tiveste?
— É a vida…! — lamuriava-se Leonor.
Fez uma pausa momentânea e lembrou-se do seu homem.
Ele e ela tinham uma boa prole, mas tudo cachopos. Se Nosso Senhor a ouvira
dando-lhe rapazes escorreitos, já não a tinha escutado nas orações quando lhe
pedira duas raparigas para a ajudarem nas tarefas de casa e para equilibrarem
forças à mesa, à hora da ceia. Nem uma, quanto mais duas! A natureza é diversa
e aleatória e a vontade de Deus soberana.
O marido e todos os outros filhos andavam, por dia,
a trabalhar nas mais diversas tarefas agrícolas. Levavam bucha e só vinham à
noite. O Eduardo ainda andava na escola e moía a cabeça à mãe. Pela idade,
começava a não fazer muito sentido andar pegado a livros. Deserta estava ela para
o ver ir trabalhar. Mas só podia deixar as aulas dos catorze para os quinze e
era consoante o mês em que fizesse os anos. Ordens do governo!
Para a Leonor, sobretudo quando estava mais
descoroçoada da vida, os homens tinham sempre a culpa das mulheres terem muitos
filhos. Se ela o dizia, era porque tinha experiência disso. Cala-te boca! Com o
João, o marido — e só o conhecera a ele — já lá iam quase trinta anos de
casamento e sacrifícios! Ao princípio, quando casaram, a bem dizer, era um cá
fora, outro na barriga!
Agora já não, mas em novo — passara entretanto uma
rima de tempo! — acontecia muitas vezes, quando regressava a casa, vindo da
taberna do Marcelino. Por volta das onze da noite, entrava sorrateiro e um
poucochinho tocado da pinga, dir-se-ia, atravessado. Nessas alturas era preado!
Apanhava-a no torpor inicial, antes do sono profundo e disfarçava, como se não
soubesse o que estava a fazer, o espertalhão…! Sempre podia pôr as culpas no
vinho…!
O certo é que, em pouco tempo, aparecia mais um inocente
a embarrar-se nas saias da mulher, com todos os trabalhos, renúncias e lágrimas
que daí resultavam. Lá dizia a sabedoria das esposas mais experientes da época:
“O casamento para as mulheres é trabalhar, parir e chorar!”
— Esconjurados sejam os homens e mais a sua maldita
lascívia! — apregoava ela aos quatro ventos. Apontava o dedo ao sexo oposto como
o grande responsável por virem ao mundo tantas crianças e muitas delas sem
condições! Por isso e porque em casa só tinha varões e, em questão de opiniões
não podia bulir, adquiriu uma certa desconfiança de género. Os homens eram
impenetráveis, egoístas e interesseiros. Se tinham que trabalhar, era porque se
viam a isso obrigados, porque a sua verdadeira natureza era cuidar apenas do
que lhes pedia o corpo.
Mas, atrás de tempo, tempo vem. E este não perdoa. A
idade tudo traz e não é coisa boa. A inflexibilidade e a fogosidade tinham-se-lhe
acabado. Os anos tornaram o João mais doidivanas e a fraqueza fez dele um homem
mais tolerante. Quanto mais envelhecia, mais apreciava o tinto!
Leonor espertou deste pensamento momentâneo e trouxe
a consciência de volta à rua onde se estava a passar a cena naquela manhã.
Ainda foi a tempo de exclamar com um azedume existencial para as vizinhas e com
o filho a escutar:
— Deixá-lo! São homens! É tudo o mesmo! Ele é como
o pai! E o pai é que tem o maior pecado. O que quer é andar também por aí, perdido
e achado, nas baiucas! Se não está a trabalhar, está na taberna. Isso é pela
certa! Raios parta o vinho! — clamava.
Apesar de culpar sempre os homens pelas agruras da
sua vida, acabava, também ela, por acusar, ainda que indiretamente, o vinho. Tinha
Baco as costas largas!
E continuou o farelório para o soalheiro:
— Quando o rapaz sai, à tarde, da escola — onde já
é dos mais atrasados, porque é cabeça de burro! — o pai, se for capaz, que o ponha
a guardar as duas cabras que aí temos e a ir ao mato e à lenha, a ver se sabe o
que custa a vida; que eu não quero cá mandriões! Não quero ociosos na família. Qualquer
dia tem idade para se casar e ainda anda a brincar na rua como os meninos
pequeninos! Ora com ‘feito! A quem é que este maroto sai? A mim não é, com
certeza, porque eu sempre lhe dei para trás!
— Ele já tem mais força qu’a ti! — calculou a vizinha Zefa, a mulher do Chico Tenente que,
afinal, também viera cá fora por mor do barulho. Sentara-se no seu balcão de
pedra de cantaria e trazia a faca, o alguidar e o punhado das couves que estava
a migar para a sopa.
— Pois é! Vê lá tu, Zefa! O machacaz! É o que eu
digo. A culpa é do pai! — insistia Leonor na ira que a movia contra os homens. —
Correão dos infernos! Já que não quer tomar tento, há de aprender à custa dele!
Tanto tombo há de dar que um dia toma juízo; ai isso toma! Porque a vida não
está p’ra festas! — arengava. Pelas suas contas, o filho devia levar uma sova
todos os dias porque, se lhe dessem só uma por semana, era pouco!
Eduardo, o agente principal do aparato dramático, estava
agora indolente, desbarrigado, por mor do jogo da bilharda e das correrias. Encostara-se
à parede da casa defronte da da mãe, toda levantada em granito, à vista, amarelado
do tempo. Falou devagar, com ar macambúzio mas, no íntimo, a rir-se, porque
sempre tinha conquistado uns pontos para o seu ego.
— O que é que eu fiz? —
deixou escapar entre dentes.
— Diz antes o que não
fizeste! — respondeu-lhe a mãe. — Passas a vida na brincadeira como se fosses
ainda uma criança. Nem um molho de mato vais buscar para o quintal. A loja das
cabras e o galinheiro estão cheios de estrume; é preciso tirá-lo e pôr cama
nova. — atirou. E prosseguiu: — Deixa lá! Também não hás de comer ovos, nem pôr
leite no café, que te leva o diacho! És só ossos! Só se te veem as costelas! Descamisado!
Pareces mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado. Mas o que tu és, deveras, é
o Canhoto em pessoa, salvo seja, cruzes! Olhem-me para aquele preparo! Só umas
gemadas de ovo batidas com açúcar todos os dias, durante um mês, podem tapar-te
as gaivas do arcaboiço da caixa de ar. Não é porque cá em casa passes fome —
mal disfarçava a Leonor — o que tu és, é avenado, esquisito. Levanta um bocado essa
camisa! — ordenou com rispidez.
Com a roupa em desalinho, repleta
de manchas de terra seca e gesto indiferente, o moço afastou com muito má
vontade, mais um bocado da camisa desazada que trazia vestida e alanzoou:
— O que é que vossemecê
quer ver?! Hã! É só ossos o quê? Não tenho as costas direitas? Foi vossemecê
que mas fez; ou não foi? Se tenho as costas aleijadas a culpa é sua.
— Huum! Vê lá se te
acomodas com a língua! Isso são maneiras? Já sabes como é que elas te queimam! Se
vou aí, levas com o sapato nessas nalgas que nem sabes a que freguesia
pertences! Olhem lá o paspalho! Até já a morte tem vício! Hã! — insurgia-se ela
contra a resposta do filho; mas sabia que só tinha forças para o ameaçar de
largo.
—
Não tens as costas deformadas, não, que eu bem sei. Não és nenhum coitadinho;
bem se vê pelo corpaço que tens! O que tu andas é magro que nem um cangalho! Quando
nasceste vinhas muito direitinho, graças ao Senhor Santo Cristo que me atendeu
nas orações. Vieste são e perfeito, graças a Deus! Se alguma coisa tens agora
que está desconforme, é porque não tens juízo. Não sei o que andas a fazer. A
idade anda a criar-te vícios. Estafermo! Ainda hás de dar cabo de ti. Só te
puxa para o mal e para a brincadeira. Ladrão! — afirmava Leonor com a sua suspeita
por tudo o que era masculino.
De maneira que era assim…
Mas, num outro dia de galderice, a somar a tantos,
neste caso em pleno verão, apareceram ali no largo, não se sabe muito bem
porquê, alguns cachopos do Fundo de Vila e do Cabeço que fica por cima da
Oriana. A manhã ia já adiantada e o astro-rei caminhava para o seu auge. Embora
os recém-chegados não morassem no local, todos se conheciam uns aos outros dos
tempos de escola, da catequese, dos jogos na praça e de irem à missa ao
domingo.
Não se sabia muito bem a razão da sua presença. Pelo
buço que lhes aflorava a superfície da face, percebia-se que não eram nenhuns
meninos de colo. Com aquela idade, se não andassem já a trabalhar a ganhar para
casa, estariam, por natureza, adstritos aos afazeres nas leivas de família ou a
carregar lenha para empilhar na loja, porque o inverno era sempre rigoroso. O
trabalho da criança é pouco, mas quem o perde é louco.
Para estarem ali àquela hora, alguns deviam ter-se
escapulido ao pai. Com certeza que andavam a vagabundear, à boa vida, em vez de
cumprirem as suas ordens. Iriam talvez para a Senhora da Orada pelo caminho de
cima, a passear e a beber água, feitos vadios. Ora, todos os dias eram de
trabalho! O domingo à tarde era o único tempo de lazer semanal de que dispunham
os homens e os rapazes assazoados, já com namoros para fins sérios. Depois da
missa, passavam pelas tabernas a beber uns tintos e a falar de negócios, ambiente
habitualmente não frequentado por mulheres e filhos pequenos. A civilidade
guardada pelos cânones sociais, não permitia que as palavras rudes em contexto
de interesses próprios dos homens, ferissem os ouvidos da dona de casa honrada ou
da menoridade casta.
De resto, não havia cá vida rica p’ra ninguém! E
quem não quisesse dobrar a espinha e agarrar numa ferramenta para trabalhar,
estava sujeito a uma valente malha. Algo parecia então não estar certo com os
recém-chegados. E as suspeitas vieram a revelar-se verdadeiras.
Com efeito, de repente, sem que ninguém se
apercebesse, surgiu sorrateiramente, vindo de trás da esquina da casa da
Leonor, do lado da rua da Cruz, o José Covas, homem fero, com unhas para a vida,
que morava no Cabeço. Trazia uma corda enorme e grossa dobrada ao ombro. O
filho dele, o Henrique — conhecido como Tolaia entre os seus pequenos pares — iniciara
uma partida de bilharda e andava tão entretido que não deu pela chagada do pai.
Se tivesse dado por ele, tinha fugido a sete pés e tomado o caminho de casa. Já
acontecera antes! Quando assim era, se o homem lhe atirava com uma vergastada que
o apanhava apenas a escapar — porque o rapaz era mais ágil que um cabrito — o
progenitor ameaçava:
— Anda lá, meu velhaco, que em chegando a casa levas
mais!
Mas o José Covas, naquele dia, aproveitando o facto
de o filho andar a jogar descuidado, chegou-se perto, pela retaguarda, sem que ele
se apercebesse, enrolou-lhe a corda à volta do pescoço por uma ponta, pegou na
outra e puxou como se faz com um animal de grande porte, cavalo ou burro. O
rapaz, atado pelo pescoço, nada podia fazer e tornou-se submisso como um
cordeiro.
— Ah! Ladrão, que desta vez apanhei-te! — disse o
seu captor triunfante. — Gatuno! Anda um vagabundo destes a vadiar… Calmeirão, desavergonhado!
Um homem feito, a brincar na rua! — vociferava o Covas. — Se o quiseres, tens
que o ganhar!
E ia puxando
de um lado da corda, com o rapaz preso no outro, aqui caía, ali se levantava,
lá iam os dois pela Corredoura fora, a caminho de casa, debaixo das imprecações
do pai. O filho tinha que ir trabalhar nas fazendas como lhe ordenara nessa
manhã — pois quê! — meter as mãos na terra, a desterroá-la com a enxada,
endireitá-la e fazer regos para batatas ou a guardar o rebanho. A existência
era dura, não era nenhuma brincadeira. E era se queria comer! Só desta maneira
não se perderia, como homem, ao longo dos caminhos da vida. Não estava escrito
como as profecias da Bíblia, mas era como se estivesse. Não eram também os
profetas a origem de grandes proles — como o Covas — e não eram eles obedecidos?
Pois, se sempre assim fora, por que razão tudo havia agora que mudar?
As mulheres que ali moravam, porém, durante aquela
operação de caça ao filho, sobretudo quando viram o calabre no pescoço do moço,
assanharam-se um bocado contra o homem.
— Ó Covas, olha que isso é demais! Não é coisa que
se faça a um filho, homem. — alegavam.
Mas ele conhecia bem as linhas com que se cosia,
porque aquilo não era a primeira vez.
— Ó santas mulheres, estejam sossegadas e não
tenham pena que eu também não! Vamos ver qual de nós é que manda lá em casa! Se
sou eu ou se é ele!
O José Covas bem sabia que tinha feito um laço não
corredio abaixo da travinca para não o atafegar! Mas, as mulheres sem saberem disto,
continuavam a gritar:
— Olha que podes dar cabo do rapaz! — insistiam.
— Dar cabo? Qual carapuça! Isto é mais rijo que um
canelo!
Dizia isto ao mesmo tempo que se ia afastando e acabou
por desaparecer na rua da Corredoura, levando o filho pela arreata.
Foi um alarido dos diabos com semelhante acontecimento,
tão pouco usual ali no largo da mina no Cimo de Vila, lá isso foi! As surras
que o João e a Leonor davam aos filhos, mesmo nos seus tempos áureos de homem e
mulher fortes e destemidos, não eram nada, comparadas com o que aconteceu ao
Tolaia com a corda enrolada à volta do pescoço! Nunca se tinha visto ali uma
coisa assim!
Isto passou-se. Mas muitas outras ocorrências se repetiam
frequentemente — talvez não tão graves como aquela — ali à esquina, nas
imediações da mina; fosse com o chão ainda húmido, na primavera, fosse a desfazer-se
em pó como a cinza, no verão. Para tanto, bastava que brilhasse a estrela do
sol.
Os pequenos atores da paródia de rua nada tinham,
porém, de seu; os brinquedos eram improvisados em paus, latas e pedras! E se assim
fora durante tanto tempo, era porque a ordem das coisas no universo devia estar
certa! Concordasse-se ou não. Havia, pois, que aproveitar, pelo menos, a
acolhedora luz solar quando não houvesse nuvens e chuva. Poucas coisas restavam
à miudagem que não fosse divertir-se, jogar às guerras e sujar as mãos naquele chão.
Para quem era, o sol e a terra bastavam!
Enquanto os filhos berravam e algaraviavam, as mulheres
iam dar de comer às galinhas que criavam nas lojas ou no quintal e ainda cuidavam
da pequena courela ali perto, nas Tapadas. O resto do santo dia, tratavam da
casa, faziam o jantar, adiantavam logo a ceia e observavam, comentavam e
ralhavam sobre o que se passava no terreiro ali ao pé. Enquanto os homens lá iam
de manhã cedo, a bater terreno, a pé, para as fazendas da Oles e do Vale
Feitoso, já quase noutra freguesia, feitos negros, a ganhar a côdea.
Os tempos iam maus e as leiras herdadas dos pais ou
que, à custa de mourejar, com grande sacrifício — muitas vezes tirando-o à
barriga — lograram angariar, tinham vindo a ser perdidas. Nesses escassos metros
quadrados de terreno semeavam as parcas couves negras e umas poucas de batatas
para o inverno.
Mercê de períodos difíceis, foram abrindo mão das
pequenas hortas, a favor das casas de linhagem da Vila, por uma ninharia. Podia
ser uma broa ou meio alqueire de milho. Era conforme o sítio e a qualidade do
terreno. Tudo tinha que ser sopesado. Até parecia que as partes se encontravam
em análoga posição para negociar! A diferença, porém, era haver ou não pão na
arca lá de casa! Coisa de pouca monta! No mais tudo era idêntico: tratava-se de
dois contratantes, ambos homens, um de cada lado, e qualquer deles tinha
estômago…!
Os compradores, por aquele justo preço e cheios de
boas intenções, juntavam — pois, quê! — mais umas leiras ao que aprouvera ao
erário real conceder aos seus antepassados pelos muitos feitos prestados; e que
a eles viera, pelo grande esforço que, como herdeiros, tinham que despender, para
arcar com o peso de tão insignes nomes!
Suas senhorias, vinham à Vila de vez em quando,
vestidos a condizer, ter a maçada de recolher as colheitas da época.
Dignavam-se, então, descer ao terreno do seu parceiro de sinalagma, a sujar um
pouco os pés!
Deixá-lo! Era a penalização que de boa vontade suportavam.
Afinal, além do produto de teres e haveres que ali fruíam — apesar de viveram fora
na roda do ano — também se pelavam por algumas donzelas que brotavam na aldeia
como papoilas salpicando a seara, pele de pêssego de S. João, que apreciavam
como galula! E assim, por pouco mais que o preço por que era transacionada a
courela — talvez mais uma broa — era também alienada a dignidade do vendedor. Porque,
quer a filha deste, quer a courela, fazia tudo parte do mesmo negócio!
Ao sol é que suas senhorias ainda não podiam chegar.
Caso contrário, nem essa chama celeste deixariam a alumiar o mundo! Por isso, os
miúdos, na sua rebeldia, se divertiam ali naquele chão, com os olhos cheios de
luz, sujando as mãos; bem se importavam eles! E os graúdos, por sua vez, educavam-nos
a seu modo. Era a vida e as gerações no seu ciclo, recobrando forças para
enfrentar o futuro. Porém, o sol e a terra, era quase tudo o que, por enquanto,
lhes sobrava!
NOTA: Episódios ficcionados a partir de vivências populares. As
condições que o país impunha, retirava, a muita gente, a autoestima e a própria
consideração que lhes devia a comunidade.
Como de costume, alerta-se para o facto de poderem ter sido utilizadas
palavras ou expressões que não constam da ortografia oficial.
JOSÉ BARROSO
quarta-feira, 20 de maio de 2020
domingo, 17 de maio de 2020
Biodiversidade
A revista National Geographic deste maio de 2020 traz um estudo sobre os insetos.
São dela as duas imagens que se seguem, resultantes de recolhas de insetos, na mesma região da Alemanha, em 1989 e 2016, usando o mesmo método de captura.
O 1.º copo é de 1989 e o 2.º de 2016. Entre estes dois anos, registou-se, naquela região, uma diminuição de 76% da biomassa de insetos.
Segundo li há uns tempos, no Alqueva deslocam abelhas entre olivais, para fazerem a polinização das oliveiras, uma vez que a monocultura intensiva da oliveira destruiu o habitat dos insetos.
Segundo os autores deste estudo, as causas de tão drástica descida da população de insetos serão as alterações climáticas, o uso de pesticidas e a destruição dos habitat naturais.
A propósito de pesticidas, ainda não percebi porque é que os nossos autarcas teimam em pulverizar as ruas das nossas terras com pesticidas, várias vezes por ano.
José Teodoro Prata
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Os Sanvicentinos na Grande Guerra
Carlos Moreira
Carlos Moreira nasceu em São Vicente da
Beira no dia 10 de novembro de 1892. Era filho de Francisco Moreira, criado de
servir, e Perpétua Maria, residentes na rua do Convento.
Assentou praça em 12 de julho de 1912
e, presente no Regimento de Infantaria 21, foi incorporado no 2.º Batalhão, no
dia 14 de janeiro de 1913.
Foi licenciado em 1 de maio de 1913,
por ter concluído a instrução da recruta, e regressou à terra. Nessa altura,
era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.
Foi novamente convocado em setembro
desse ano, mas não se apresentou na sua unidade dentro do prazo estabelecido,
possivelmente porque já teria mudado a residência para Águeda e não terá
recebido a convocatória atempadamente. Por este facto foi acusado do crime de
deserção. Na sua folha de matrícula, não é referida a data em que se apresentou,
nem a punição que sofreu, pelo que pode significar que foi ilibado.
Em 24 de maio de 1915, passou ao
Regimento de Infantaria n.º 28, de Águeda.
Voltou a ser convocado em 17 de abril
de 1916, e foi mobilizado para a província de Moçambique, para onde seguiu em
24 de junho integrado na 3ª Expedição enviada para aquele território. Terá
participado nas operações que tinham como objetivo ultrapassar as margens do
rio Rovuma, para norte, e ocupar alguns postos que estavam na posse dos
alemães.
Regressou à Metrópole em agosto de 1918,
e desembarcou em Lisboa no dia 5 de outubro. Após ter sido licenciado, em 1 de
julho de 1919, regressou a Águeda onde ficou a residir.
Passou ao Regimento de Infantaria de
Reserva n.º 28, em 31 de dezembro de 1922, à reserva ativa, em 31 de dezembro
de 1926, e à reserva territorial, em 31 de dezembro de 1933.
Condecorações:
· Medalha de cobre
comemorativa das campanhas em Moçambique.
Família:
Carlos Moreira casou com Ângela
Madeira, na Conservatória do Registo Civil de Águeda, no dia 10 de outubro de
1925. O casal viveu na Borralha, onde Carlos Moreira trabalhava como motorista
e feitor do Conde. Foi lá que lhes nasceram os dois filhos que tiveram:
1.
João Moreira, que faleceu com 11 anos de idade;
2.
Maria de Fátima Moreira, que casou com Ângelo Miranda e tiveram duas
filhas.
Vinha frequentemente à terra, principalmente quando
tinha que conduzir o Conde da Borralha nas suas deslocações a S. Vicente da
Beira. Um dos sobrinhos, Albino Moreira, lembra-se desses tempos e conta que «era uma alegria para a família quando ele cá
chegava. E então para nós, os sobrinhos, estávamos sempre desertos que ele cá
viesse porque nos “convidava” sempre a todos com vinte e cinco tostões. Era
dinheiro, naquele tempo; e se nós já éramos muitos!...». Durante muitos
anos veio também com a mulher e os filhos, mas, a pouco e pouco, à medida que
foram morrendo os familiares mais próximos, os contactos foram rareando.
Sobre o tempo da guerra, a filha Maria de Fátima
diz que se lembra de o ouvir contar que «… passaram
por lá muitos maus bocados, principalmente por causa da fome e da sede. Muitas
vezes o que lhes valia era a água da chuva que ficava nas poças que as patas dos
elefantes deixavam no chão».
Quem o conheceu, diz que era um homem bom,
trabalhador e muito generoso. Carlos Moreira faleceu no dia 14 de junho de
1975. Tinha 82 anos.
(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria de
Fátima Moreira e do sobrinho Albino Moreira)
Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
domingo, 10 de maio de 2020
Os Sanvicentinos na Grande Guerra
Bernardo da
Cruz
Bernardo da Cruz nasceu no Casal da Serra, a 1 de dezembro de 1894. Era filho de Bartolomeu Cruz e Anna de Jesus, esta natural de Alcongosta.
Bernardo da Cruz nasceu no Casal da Serra, a 1 de dezembro de 1894. Era filho de Bartolomeu Cruz e Anna de Jesus, esta natural de Alcongosta.
Segundo a
sua folha de matrícula, era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro quando
se alistou em 9 de julho de 1914. Ficou pronto da recruta no dia 12 de maio de
1915 e foi licenciado nesse mesmo dia, indo domiciliar-se no Casal da Serra.
Apresentou-se
novamente em 1916 e, fazendo parte do CEP, embarcou para França no dia 21 de janeiro
de 1917, integrado na 1.ª Companhia do 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria
21, como soldado com o n.º 379 e a placa de identidade n.º 8872-A.
Do seu
boletim individual e folha de matrícula militar consta o seguinte:
a) Baixa ao
hospital, em Março de 1917, onde permaneceu por quatro dias;
b) Em Junho,
ficou adido junto do Quartel-General da 1.ª Divisão, onde prestou serviço até
Fevereiro de 1918. Seguiu depois para a sua Unidade, onde chegou no dia 9 desse
mês;
c) Em Abril,
foi colocado no Batalhão de Infantaria 11, 1.ª Companhia. Talvez por esta
mudança de batalhão, terá sido um dos poucos vicentinos a participar na batalha
de La Lyz, que ocorreu no dia nove desse mês;
d) Em três
de Maio, foi internado na ambulância n.º 6, onde permaneceu cinco dias. Foi
dado como incapaz e ficou a aguardar o repatriamento, aprovado nos termos da
circular 475/11 de 25/05 /1918.
e) Embarcou
para Portugal, a bordo do navio Gil Eanes, e chegou a Lisboa no dia 23 de Julho
de 1918.
Condecorações:
· Medalha
Militar de cobre com a legenda: França 1917-1918;
· Medalha
da Vitória.
O seu
boletim individual do CEP não o refere, mas, de acordo com a relação dos militares
que participaram no raide de 9 de março de 1918, apresentada em "A Covilhã e a I
Grande Guerra 1914/1918", Bernardo Cruz também participou no referido raide e
deve, por isso, ter sido louvado.
Quando
chegou à terra, vinha ainda convalescente dos ferimentos e bastante perturbado
pelos gases e traumas de guerra. Apesar disso, ainda foi castigado por faltar à
inspeção no ano de 1921, tendo sido considerado ausente e sem domicílio
conhecido. Passou à reserva ativa, em 1928, e em 1931 foi considerado incapaz.
Em 1939, foi internado no Asilo de Inválidos Militares Princesa Maria Benedita,
em Runa, de onde saiu em 1945, por vontade própria.
Na sua folha
de matrícula constam ainda alguns castigos durante este período de internamento
psiquiátrico:
a) Punido
pelo comandante do asilo, em fevereiro de 1942, com privação de vinho por 30
dias, por levar para fora do refeitório a ração de manteiga que lhe estava
atribuída e tentar vendê-la a outros internados;
b) Punido
com 15 dias de detenção, porque tendo-lhe sido chamada a atenção por um seu
superior, por o não ter cumprimentado militarmente, tomou a rigorosa posição de
sentido e, com ar de troça, fez e desfez a continência 2 vezes, perguntando, no
fim, ao superior se estava satisfeito;
c) Punido
com 5 dias de prisão disciplinar, por não ter cumprido prontamente a ordem de
formatura para a 2.ª refeição, dizendo que não estava ali para isso.
Terá posteriormente
sido internado na Casa de Saúde do Telhal, onde passou o resto da vida. Ainda
recebeu a visita de alguns familiares, mas nunca mais voltou à terra.
Dizem que
era uma pessoa muito religiosa e, durante o tempo em que permaneceu no Casal da
Serra, passava os dias a ensinar a doutrina às crianças. Quando elas aprendiam
bem as orações, até lhes dava umas moedas para comprarem rebuçados. Também há
quem diga que foi ele que ofereceu a Sagrada Família que, durante muitos anos,
andou de casa em casa, no Casal da Serra.
Bernardo
Cruz faleceu na freguesia do Algueirão, no dia 22 de janeiro 1970.
(Pesquisa
feita com a colaboração de vários moradores do Casal da Serra)
Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
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