segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Atafona

Na viagem que fiz, em julho, ao concelho do Sabugal, deparei-me com esta pedra de atafona, na povoação de Aldeia da Ponte. É utilizada como adorno, à porta de casa.
É de pequenas dimensões (cerca de 50/60 centímetros de diâmetro, incluindo o rebordo), embora na foto pareça maior. 
Uma atafona era um moinho manual, a sangue, isto é, movido à força de braços ou por animais. Eram utilizados nas zonas mais afastadas dos cursos de água, cuja corrente permitia a moagem a partir da força da água. Foram abundantes até surgir a moagem industrial. Algumas casas com mais posses tinham um para suprir as suas necessidades de farinha. No século XVIII, havia vários em Tinalhas, que moíam para a população.
Esta seria a pedra inferior, pois tem um corte no rebordo (em cima, o corte da esquerda é o rebordo partido) para sair a farinha. Esta pedra inferior estava fixa. A pedra de cima estaria presa à de baixo pelo eixo que existiria no buraco do centro. Na pedra de cima, talvez ligado a este eixo ou independente, haveria um pau para fazer rodar a pedra, manualmente.
Na área do nosso antigo concelho, ao engenho para moer azeitona, utilizando a força animal, chamava-se zangarra.
Segundo a Wikipédia, «Atafona, do árabe at-tahunâ, «moinho», é um tipo de mecanismo manual ou movido por força animal[1] destinado a transformar o andamento do animal em movimento rotativo para mover moinhosengenhos de açúcar, engenhos de ralar mandioca, engenhos de pastel, bombas para elevação de água, teares e outros equipamentos. Para além de seres humanos, foram utilizados para mover atafonas, entre outros animais, cavalosburroscamelos, bovinos, carneiros e cães.»

José Teodoro Prata

sábado, 16 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes

José Nunes nasceu em Ribeiro d´Eiras, no dia quatro de setembro de 1892. Era filho de António Nunes e Maria Joaquina. Como era habitual naquele tempo, começou a trabalhar muito cedo, na agricultura e como pastor.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de julho de 1914, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21. Segundo a sua folha de matrícula, era analfabeto e jornaleiro.

Embarcou para França, no dia 18 de janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 723 e a chapa de identidade n.º 9125. Desembarcou em Brest, no dia 4 de fevereiro.

Do seu boletim individual consta o seguinte:

a)   Baixa ao Hospital n.º 26, em cinco de fevereiro; alta em 20;

b)   Colocado na 1.ª Companhia com o n.º 723, em 16 de novembro de 1917;

c)   Baixa ao Hospital de Base 1, em 14 de abril de 1918; alta em 20;

d)   Baixa ao Hospital de Base 2, em 30 de maio;

e)   Em sessão de junta médica realizada em 14 de junho, foi-lhe concedida licença por 60 dias para convalescença; esta licença foi posteriormente reduzida para 30 dias;

f)     Embarcou para Portugal a bordo do navio Helenus, no dia 17 de março de 1919, e desembarcou em Lisboa a 20 do mesmo mês.

José Nunes, à direita, com dois companheiros

Passou à reserva territorial em dezembro de 1935.

Condecorações: Medalha militar de cobre comemorativa da participação de Portugal na Grande Guerra com a legenda: França-1917-1918.

Família:

José Nunes casou com Ana Maria no dia 27 de abril de 1920 e ficaram a viver na Partida, de onde era natural a esposa. Tiveram três filhos:

1.     João Nunes, que casou com Maria do Carmo e tiveram 1 filha;

2.     Maria de Jesus Nunes, que casou com Joaquim Martins e tiveram 4 filhos;

3.     Celestina Nunes, que casou com César Alves e tiveram 2 filhos.

«Quando o meu avô regressou à terra foi recebido como um herói; mas vinha tão traumatizado que não conseguia falar de outra coisa que não fosse a guerra. Todas as conversas iam dar ao mesmo: as muitas tropas do seu batalhão; os muitos homens nas trincheiras; os muitos mortos que uma vez viu espalhados pelo chão, uns sem pernas, outros sem braços, outros com a cabeça ou a barriga abertas; os que morreram quando tiveram que atravessar um rio agarrados a umas cordas, com a roupa atada ao corpo com umas correias e o pouco dinheiro que tinham, dentro da boca. Referia-se sempre a eles utilizando a expressão «Mais de mil homens!» um número que ele achava ser o maior para definir todas as atrocidades que por lá viu e dificuldades por que passou. Por causa disto puseram-lhe a alcunha de “Mil Homens” e toda a família ficou assim conhecida.

Quando andava na escola também me tratavam por “Mil Homens”. Eu ficava muito envergonhada, porque não sabia a origem do nome e achava-o muito feio. Atualmente, depois de conhecer a história que deu origem à alcunha da família, tenho o maior orgulho nela e no meu avô. (testemunho da neta Celestina Nunes)

A filha Celestina Nunes também se lembra de ouvir o pai contar que, quando chegou a Portugal, por trazer uma caderneta tão limpa, lhe quiseram dar emprego em Lisboa, mas ele não aceitou, porque o que queria era voltar para perto da família, das suas cabras e das suas hortas.

Toda a vida trabalhou na agricultura, quase sempre como jornaleiro numa casa de gente abastada da Partida. No verão raramente faltava a um quinto e no inverno fazia quase todas as campanhas da azeitona. Mas do que ele gostava mais era da sua Metanhosa, uma terra, quase brava, que ele transformou numa propriedade que era o seu orgulho e onde cultivava de tudo para a casa. Também teve quase sempre um rebanho de cabras, que era uma grande ajuda para o sustento da família.

José Nunes faleceu no dia 24 de maio de 1962. Tinha 69 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Celestina Nunes e da neta Celestina Nunes)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Estou de volta

Andei por fora, não demasiado tempo, mas o suficiente para me desligar. Por lá apagou-se-me o telemóvel e não tinha comigo nem me lembrava do código para o voltar a ligar. Uma sorte! Li o Grande Sertão: Veredas, do João Guimarães Rosa, um livro apaixonante mas difícil, pois está escrito na linguagem do sertão brasileiro.

Ainda por cima estou a gozar os primeiros dias da minha reforma e supreendentemente, até para mim, não me apetece fazer rigorosamente nada. Eu que, segundo me dizem, ando sempre a correr.

A exceção é a agricultura, mas tenho de ir com calma, pois fui operado a uma hérnia há meses e tenho uma tendinite de um enorme trambolhão que dei em abril.

Já semeei os nabos nos Cebolais e fui ver como paravam as modas lá pelo Ribeiro Dom Bento. As abelhas estão catitas, mas as figueiras cheias de figos podres nos ramos e no chão. Valeram-me as passas que a São e o Cassiano apanharam antes de começar a chover. A macieira grande do lameiro tinha as maçãs todas no chão, podres, uma pena. Surpreendentemente, colhi boas uvas de mesa, o que não era costume, pois um texugo encarregava-se delas todos os anos. Fiquei triste por, eventualmente, ter perdido esse amigo.

Passei pela Tapada e bebi um copo com o João Candeias, que andava nos preparativos para a vindima. Nem eu nem ele nos lembrávamos de um início de setembro tão chuvoso.

Ando pr'aqui a matutar num projeto que pode vir a ser interessante. Darei notícias dele, em breve.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Um padre visionário

 Estive há dias na apresentação do livro «Estêvão Dias Cabral» de Lídia Barata, jornalista do Reconquista. É um livro pequeno, quase todo de investigação sobre os trabalhos na área da engenharia hidráulica em que Estêvão Dias Cabral participou (ou apenas sonhou...), mas que revela muita pesquisa.

É o caso do “capítulo” A PROJEÇÃO DE UMA FÁBRICA DE PAPEL NA BEIRA BAIXA”, que achei extraordinário, apesar de nunca se ter concretizado:

«Na Beira Baixa, seu berço, Estêvão Dias Cabral também estudou com detalhe as potencialidades que a Serra da Gardunha oferecia para a instalação de uma fábrica de papel, projeto que nunca vingou e nunca saiu do seu pensamento técnico nem do papel, sendo à época, seguramente, visto como visionário e arrojado, ou até mesmo megalómano.

Além do potencial em termos de matéria prima, o seu foco terá incidido na quantidade de nascentes de água das quais a Gardunha é fiel guardiã, ou não fosse a água um dos elementos fundamentais no fabrico de papel.

Além de científico, o seu pensamento também se refletia no campo económico, considerando que com este projeto havia potencial para Portugal deixar de importar papel e, além de colmatar as necessidades de consumo interno, poderia até vendê-lo a outros países.

No seu manuscrito “Memória sobre o Papel”, Estêvão Dias Cabral realça a importância da oferta que cada país tem para a criação da sua imagem. “Paciência, se somos obrigados a comprar em casa alheia o que a nossa terra não dá”, referindo-se a produções naturais, mas no que toca à manufatura, o que depende da arte e do engenho do homem, o Jesuíta considera que “ muitas vezes a boa indústria converte miséria em felicidade e pobreza em riqueza”. Pensamento assente no facto de, à época, Portugal desembolsar anualmente “duzentos mil cruzados” na compra de papel, sobretudo a Génova e Holanda. Cabral reitera assim que não tínhamos necessidade de comprar um produto que podíamos vender. E fundamenta e explica porquê.

E foi como “boa indústria” que classificou a fábrica de papel que projetou para a Beira Baixa. Precisava apenas de garantir que os três pilares fundamentais estavam cumpridos, nomeadamente trapos de linho (mas também papel usado e de livros velhos), água e uma máquina para transformar a mistura dos outros dois elementos.

Certo já de que tudo se aproveita e transforma, considerava que seria fácil, com uma pequena compensação financeira, convencer as criadas das casas abastadas e os mais pobres sem ocupação, a recolher todo este tipo de material, fosse na casa dos patrões, fosse nas ruas. Isto seria, na sua perspetiva, um pequeno investimento que geraria um grande retorno. Introduzia à época o conceito daquilo a que hoje chamamos reciclagem.

Quanto à água, que defendia ter de ser “clara, abundante e com queda tal que possa voltar rodas e mover máquinas”, achou-a em abundância num passeio no Outono de 1790 pela sua região natal.

Num local que designou por serra de Alpedrinha, próximo da localidade de Louriçal do Campo, Torre e Casal da Serra, a água do Ocreza servia perfeitamente o propósito, tal como a proximidade das aldeias, que poderiam fornecer a mão de obra necessária. E mais uma vez, olhando à redução dos custos, apontava que os trabalhos mais leves podiam ser feitos por mulheres, rapazes e raparigas, que ganhavam menos que os “dois tostões” diários pagos aos homens.

Este local ficava, como sublinhou, a ”quatro léguas de Castelo Branco e a sete ou oito de Vila Velha”, Vila Velha de Ródão que, no seu entender, seria o local ideal para fazer escoar o produto final, já que beneficiava da navegabilidade do Tejo. Escoamento que também podia ser feito por Abrantes, em alternativa. A facilidade dos acessos era um fator relevante para o seu estudo. Faltava o terceiro pilar, uma máquina que poderia ser como as referenciadas na literatura francesa, onde esta indústria estaria mais avançada, mas também sugeria que se pudesse visitar uma fábrica que, à data, já laborava na Lousã. Em 1716 a qualidade do Engenho de Papel do Penedo, valia-lhe o prestígio de fornecer a tipografia da Companhia de Jesus de Coimbra, vindo depois a juntar à sua lista de clientes a Tipografia Académica e a Casa da Moeda. De qualquer forma, esta tipografia da Lousã seria de menor dimensão que a projetada por Cabral para a Gardunha.

(…)

Na Gardunha abundava a pedra para facilitar a construção do edificado. Carecia de madeira, sempre alvo fácil de incêndios, mas poderia ser fornecida pelas matas de castanho de Alcongosta ou pelo carvalho do Souto da Casa, madeiras nobres que considerava até poderem ser usadas na construção de navios, pela sua qualidade.

Estêvão Dias Cabral defendia que, havendo método, o papel poderia dar ao Estado o mesmo lucro que este já retirava dos lanifícios da Covilhã. Uma coisa era certa na sua cabeça, a beira baixa reunia todas as condições para acolher a “melhor fábrica de papel do mundo”. 

M. L. Ferreira

NOTA: Para quem possa não saber, Estêvão Dias Cabral, filho de Theodoro Faustino Dias, de Tinalhas, e Maria Cabral de Pina, do Violeiro, foi padre jesuíta e engenheiro hidráulico. Nasceu em Tinalhas, a três de fevereiro de 1734, e faleceu em São Vicente, no dia um de fevereiro de 1811.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Humor popular

 

A relação do povo simples com os padres sempre foi uma relação dual, de respeito e escárnio. Respeito/reverência porque eram os representantes de Deus, escárnio/crítica pois, com muitas exceções, que sempre existiram, o clero integrava o pequeno grupo (2%) dos privilegiados (clero e nobreza), a elite que detinha o poder político, económico, social, cultural e, no caso do clero, também religioso.

Isso está presente na literatura popular como a que integra a coletânea publicada na Etnografia de S. Vicente da Beira, pela Isabel Teodoro.

Das recolhas de Leite de Vasconcelos temos os “Dez mandamentos dos padres”:

1.     Amar a Deus por dinheiro.

2.     Enganar todo o mundo.

3.     Comer boa carne de carneiro.

4.     Jejuar depois de farto.

5.     Beber do branco e do tinto.

6.     Beijar as meninas bonitas todas a eito.

7.     Dar a bula por empréstimo.

8.     …nem da cabeça, nem do rabo.

9.     Dormir quando tem sono.

10.Não cobiçar as coisas alheias, nem precisar dos outros, depois das barrigas cheias.

Estes 10 mandamentos encerram-se em dois:

Deus dê aos padres, o que deu aos bois.

 

E que dizer do que o povo imaginava que os padres pensavam nos funerais?

Se é rico e tem dinheiro,

Faz-se-lhe o ofício inteiro;

Se é pobre e não tem nada,

Faz-se-lhe uma trapalhada.

Passo lento, passo lento,

Que este é rico e paga a tempo.

Enrola, enrola,

Deita o defunto à cova.

Se é viúva fica bem,

Não é para mais ninguém.

 

Quanto a doações/ofertas/pagamentos...

Se é para obras de castanho,

Venha a nós o vosso ganho.

E por alma do defunto,

Que venha mais um presunto.

 

O meu pai (António Teodoro) era um Teodoro, e isto só por si implica(va) ser uma pessoa muito religiosa e respeitadora das convenções sociais. Mas também era um Jerónimo, gente com açougues e comércio de gados, habituada ao contacto com outras terras e diversas gentes.

Quando os filhos eram pequenos, a nossa mãe foi operada em Castelo Branco e ele teve de ser pai e mãe por uns dias e isso implicava preocupar-se em transmitir-nos a religião. Rezava connosco todos os dias na cama, antes de adormecermos, bastante mais do que a minha mãe nos impunha! Mas fora desses dias, a religião era tarefa da minha mãe. Por isso ele, esporadicamente, aventurava-se em brincadeiras que refletiam o ancestral humor do povo com todas as coisas, mesmo com as de Deus.

Experimentem dizer esta lengalenga fazendo o sinal da cruz na testa, na boca, no peito e finalmente abrangendo todo esse espaço:

Pelo sinal,

Do Ingarnal.

Comi toucinho,

Fez-me mal.

Comi farinheira,

Fez-me caganeira.

Alcatruz,

Ámen Jesus.

 

Ou este sermão que deve ser dito imitando o padre Leal das Minas da Panasqueira que vinha cá pregar na Semana Santa. Não sei como é que a minha irmã o conseguiu, pois ele raramente o dizia.

Prego o meu sermão,

Carriça dum cão.

Sr. João Coelho,

Com seu barrete vermelho,

Sua espada de cana na mão,

Pra matar a garrana,

A garrana deu um berro,

Toda a gente atormentou,

Só uma velhinha ficou,

Embrulhada nuns farrapinhos,

Atolada num chocalho de merda até ao pescoço.

Meus irmãos,

Cortai os dedos e olhai prás mãos!

 

Parafraseando Picasso, ao contemplar as pinturas rupestres da gruta de Lascaux: o Gil Vicente, o Bocage e o Herman José não inventaram nada.

 

José Teodoro Prata

sábado, 22 de julho de 2023

Lugares onde se para

 

Quase no limite entre a Beira Baixa e o Alto Alentejo, a passagem por este lugar é de paragem obrigatória: pelo rio; pela vegetação, tão característica daquele local, que trepa pelas margens; pelas muitas espécies animais, principalmente aves, que frequentemente se avistam; sobretudo pela grandiosidade das Portas do Ródão, aquele monumento natural a que Hipólito Raposo chamou «As ombreiras mutiladas de um arco do triunfo que um capricho plutónico quisesse ter deixado em honra do grande rio nas primeiras auroras do mundo.» (citação que se encontra num cartaz explicativo do local)

Da última vez que por lá passei, há uma semana, o motivo da paragem não foi nenhum dos habituais, mas a cor verde das águas. A má qualidade da fotografia não diz muito da situação, mas a vista no local deixa-nos apreensivos. Como se não bastasse já a poluição de Almaraz, as algas estão a alterar o maior rio que atravessa o país, e a afetar a biodiversidade a toda a roda.     

Não sei se foi coincidência, mas nem uma avezinha se avistou no céu; muito menos um peixinho a saltitar na água…

M. L. Ferreira

terça-feira, 18 de julho de 2023

O culto ao Santo Cristo

Conduzo por entre por entre pinheiros e carvalhos. Penso na nossa Teodósia da Paixão, que por ali passou, como eu agora passo. Encavalitada num burrito, talvez acompanhada pelo pai ou por homem de confiança da família. Mas também lhe poderia ter acontecido como ao Leonardo Nunes, um homem da sua terra que partira com uns padres jesuítas de passagem por São Vicente.

A torre do castelo do Sabugal ergue-se majestosa, mas eu passo sem parar e sigo em direção à fronteira, no sentido de Vilar Formoso. Agora quase só carvalhais e os campos muito mais arborizados do que eu os imaginava, áridos como o planalto da Guarda.

Freguesias do concelho do Sabugal (da net)

A placa na estrada anuncia NAVE e eu surpreendo-me com a pequenez do lugar. Julgava-a grande na minha adolescência, pois os meus colegas do seminário tanto falavam dela. Afinal, grande é Alfaiates, que avisto lá mais ao longe e que identifico pelo mapa mental que fiz antes da viagem.

Tenho de parar na NAVE, aos anos que quero vir aqui! Pergunto a uma senhora pela capela do Santo Cristo e ela explica-me o caminho. Digo-lhe que sou de São Vicente da Beira, cuja devoção principal é ao Santo Cristo, porque uma senhora da minha terra viveu no convento que existia junto à capela e quando voltou transmitiu às pessoas a adoração a Cristo. A senhora acena com um sorriso embevecido e eu vou procurar a capela. Viro à direita e perco-me num labirinto de ruas curtas e ruelas estreitas e tortas. Surpreendem-me as placas, com os nomes das ruas a preto em fundo vermelho vivo. Volto a avistar árvores e hortas e lá está ela, a resplandecer de brancura. A placa da cruz na rua confirma: CAPELA DO SANTO CRISTO.

Capela ao Santo Cristo do convento de Nossa Senhora do Loreto das religiosas franciscanas, na Nave, Sabugal, onde viveu Teodósia da Paixão

Então foi aqui que tudo começou, nesta capela e num convento anexo do qual nada resta.

Pinharanda Gomes, nome maior da historiografia da diocese da Guarda, escreveu no seu livro História da Diocese da Guarda:

«Teodósia da Paixão ou Teodósia Vaz, fora para Almeida ida da Nave, entre 1556 e 1564, e decidiu fixar-se em S. Vicente da Beira onde, em 1572, já vivia em comunidade com outras religiosas. Sór Teodósia vivia o mais pobremente possível num tugúrio da vila, abrindo, apesar de tudo, uma enfermaria.»

O convento da Nave era devoto a Nossa Senhora do Loreto e a capela do Santo Cristo fazia parte dele. As religiosas abandonaram-no, devido às frequentes incursões castelhanas, e foram para Almeida, uma fortaleza que lhes garantia mais segurança.

Igreja Matriz de Almeida (tirada da net)

Do convento de Almeida, também a Nossa Senhora do Loreto, resta atualmente o templo que é hoje a Igreja Matriz. E também o nome da porta sul da fortaleza, a Porta de São Francisco, porque o convento das religiosas franciscanas se situava nas imediações.

Mas voltemos a Teodósia da Paixão. Faleceu em 1577, mas antes deslocou-se a Lisboa para obter da rainha D. Catarina, avó do futuro rei D. Sebastião, a licença para fundar um convento em S. Vicente da Beira. Como D. Catarina deixou de ser regente em 1562, é possível que Teodósia da Paixão tenha regressado à sua terra logo que as religiosas de mudaram para Almeida e imediatamente tenha ido a Lisboa pedir autorização régia para a criação de um convento franciscano em São Vicente da Beira, do qual foi a primeira abadessa.

Pinho Leal (em Portugal Antigo e Moderno) escreveu que Maria da Cruz, outra abadessa do convento, «Mandou fazer uma imagem de Cristo com a cruz às costas, ofereceu-a aos moradores da Vila, para a procissão dos Passos, e obteve do Romano Pontífice [o papa] muitas indulgências para todos os fiéis que assistissem à mencionada procissão.»

Essa imagem de Cristo com a Cruz encontrava-se nos Claustros aquando da extinção do convento e foi registada no inventário de 1835-36, como «imagem de Nosso Senhor dos Aflitos com a cruz às costas». É certamente a imagem do Senhor dos Passos que se encontra na Igreja da Misericórdia e sai em procissão na Semana Santa.

Em 1758, já a Igreja da Misericórdia se tornara no centro do culto ao Santo Cristo. As Memórias Paroquiais desse ano referem que «Na capela-mor da dita Misericórdia, em uma tribuna de entalhado dourado, está colocada uma devotíssima e milagrosa imagem de Cristo Crucificado, a quem recorrem todos os moradores desta vila nas suas aflições, e acham os ditos ajuda e alívio, e tem dado lugar a conhecer os inumeráveis milagres todos os que recorrem ao seu patrocínio. Concorrem ao Senhor não só os moradores desta vila, mas das terras circunvizinhas muita gente de romagem.» Quanto à data da romagem, o nosso vigário respondeu que «há frequência de gente de romagem em todo o ano ao Santo Cristo.»

Igreja da Misericórdia de São Vicente da Beira, aquando do lançamento do livro Dos Enxidros aos Casais (da net - Diário Digital)

Assim, da pequena capela do Santo Cristo do convento de Nossa Senhora do Loreto, da Nave, Sabugal, as religiosas franciscanas trouxeram a devoção ao Santo Cristo para o seu convento de São Vicente da Beira, devoção que passaram à população da Vila, através da irmandade da Misericórdia, cuja igreja se tornou o centro do culto ao Santo Cristo.

José Teodoro Prata