Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
sábado, 27 de abril de 2024
quinta-feira, 25 de abril de 2024
25 de Abril - 50 Anos
Está a ser bonita a festa!
Tenho andado pelas escolas e sente-se um entusiasmo com o 25 de Abril / Democracia, como não me lembro de existir, mesmo em 1975.
Penso que o genocído em Gaza, patrocinado pelo Ocidente, a par do que se passa na Ucrâcia e da ânsia dos políticos europeus de levarem a guerra o mais longe possível, a par dos populismos de extrema-direita na Europa (tipo Chega em Portugal) estão a criar uma crise existencial nas pessoas, que as leva a agarrarem-se à nossa democracia, simbolizada no 25 de Abril.
Vemo-nos domingo, no nosso 25 de Abril, às 15:30h, na sala da Junta de Fregueisa,
Deixo-vos com o grande Fausto e o seu Marcolino, das longas viagens: https://youtu.be/v_1VjgA_7Go?si=OqJ8Mj1J9VwgYjZz
José Teodoro Prata
segunda-feira, 22 de abril de 2024
Discriminações
Na escola:
Quando
acabei o 2.º ano da Telescola, não foi fácil conseguir autorização dos meus pais
para continuar a estudar. Valeu-me uma enorme teimosia e as ajudas do Padre
Branco e da Dona Teresinha.
Naquele
tempo, em aldeias pobres como a nossa, muitas crianças não iam além da quarta
classe: começavam cedo a trabalhar no campo, nas obras, nas fábricas ou a
servir nas casas ricas da cidade. Das que continuavam a estudar, poucas
aspiravam chegar à faculdade, por isso iam quase sempre para a Escola Técnica, que
dava maior garantia de trabalho imediato (muitos rapazes iam par o seminário).
Eu, sem nenhuma razão consciente, matriculei-me no Liceu. Era o ano letivo de
1969/1970.
Por
essa altura, percebi depois, o Liceu de Castelo Branco era uma escola bastante elitista:
via-se pela arquitetura do edifício; pela figura de um reitor todo-poderoso que
raramente se deixava ver, mas temíamos; pelos professores que abusavam da
autoridade e do estatuto, e eram distantes no relacionamento com os alunos; pelo
rigor na separação entre sexos; sobretudo pelo critério discriminatório
utilizado na constituição das turmas.
Nas
turmas A e B andavam os filhos das famílias “bem” da cidade: advogados,
médicos, entidades administrativas do Concelho, militares, grandes
proprietários ou homens de negócios. Raramente se misturavam com os outros
alunos, nem nos corredores, nem nos recreios, muito menos na rua. Só faltava
terem uma porta diferente para entrar e sair. O modelo seria semelhante em todo
o país.
Eu
pertenci sempre à turma C ou D. Na altura, nem tive consciência de que esse
facto poderia estar a determinar o meu futuro. Só mais tarde percebi como aquela
escola era o instrumento de um sistema educativo injusto, competitivo e
elitista, que deixava para trás várias gerações de alunos, não por serem menos
competentes que outros, mas apenas com base na origem social e geográfica: os
professores, os livros e vários outros aspetos do contexto educativo poderiam
ser iguais para todos, mas as expetativas, crenças e preconceitos que se
criavam sobre o desempenho de cada um dos grupos influenciavam os resultados. Para
além deste efeito psicológico altamente penalizador dos alunos das classes
sociais mais baixas, sabia-se que os professores eram pressionados a não dar
notas mais altas aos alunos dessas turmas, que as que davam aos das turmas A e
B, mesmo que as merecessem.
Isto
acontecia ainda no início da década de setenta, já depois das reformas do Ministro
Veiga Simão, que prometiam introduzir alguma democratização no ensino. Só após o
25 de Abril de 1974, com o fim dos Liceus e Escolas Técnicas, a criação das
Escolas Secundárias e o alargamento da escolaridade obrigatória, o Sistema
Educativo se democratizou. Começou então a falar-se numa Escola para todos e na
Educação como elevador social. E foi de facto um dos setores da sociedade que
mais evoluiu neste meio século. Apesar disso, passados 50 anos, é evidente como
o elevador continua a subir mais facilmente para determinados grupos; para
outros é ainda muito vagaroso. As causas estarão, em grande parte, nas
assimetrias sociais que continuam a dividir o país, e permitem que haja ainda
escolas para ricos e escolas para pobres. Os rankings publicados anualmente são
disso uma evidência escandalosa.
No trabalho:
Numas
férias de verão fui oferecer-me para a vindima nas Vinhas do Poço (naquele
tempo as vindimas faziam-se em finais de setembro e as aulas começavam só em
outubro). Olharam-me com cara de quem não acreditava muito nas minhas
capacidades, mas devem-me ter valido os créditos herdados dos meus pais e avós,
gente de muito trabalho e boas referências. Disseram que me apresentasse na
segunda-feira de manhã na Fonte Velha, que era onde se juntava o pessoal
apalavrado. Só tinha que levar uma cesta, uma faca que cortasse bem e a
merenda. Estava tão ansiosa que fui das primeiras a chegar.
Éramos
um rancho grande de homens e mulheres, toda a gente muito animada, a pé, pela estrada
adiante até às Vinhas. Era a minha primeira vez numa vindima assim tão grande,
mas estava determinada a dar tudo para mostrar que era capaz de merecer o salário.
E ia fazendo contas a ver se o que ia ganhar chegaria para os sapatos que
andava a namorar há que tempos.
Quando
chegámos, as mulheres distribuíram-se pela vinha, cada uma no seu carreiro, a
colher as uvas. Trabalho duro: costas curvadas o dia inteiro e o olhar do
feitor, sempre em cima de nós, atento ao que fazíamos, principalmente se
levávamos tudo a eito ou metíamos à boca mais que a conta de bagos de uva. Os
homens carregavam os cestos que íamos enchendo, até ao sítio onde pisavam as
uvas. A minha cesta, mal a despejava, voltava a encher-se num instante. Fui até
repreendida por me adiantar um pouco às outras mulheres: «Na vindima há que andar
todas a par umas das outras; é mais bonito». A partir daí fiz por acompanhar o
passo do grupo: nem à frente, nem atrás, cumprindo o ritual que, a pouco e
pouco, fui percebendo.
Não
me lembro de quanto tempo durou a vindima, mas, à medida que passavam, parece
que os dias iam ficando maiores e as costas cada vez mais doridas; mas aguentei
sem me queixar nem dar parte de fraca até ao fim. No dia do pagamento estava
ansiosa; era o meu primeiro salário! Mas o entusiasmo passou assim que vi que
aos homens pagavam uma coisa, às mulheres um pouco menos e a mim uma miséria. Perguntei
porquê e responderam-me que toda a vida os homens ganharam mais que as mulheres,
e eu também não podia querer o mesmo que uma mulher já feita. Foi uma desilusão;
e senti-me discriminada não apenas pelo patrão, mas também pelas outras
mulheres, que olhavam para mim a achar que era justo que assim fosse. Na altura
nem percebi que era a luta pelo pão a sobrepor-se a qualquer tentativa de
solidariedade. Naquele tempo, pensava-se lá em enfrentar os patrões por
melhores condições e igualdade no trabalho?!
Já
lá vão mais de cinquenta anos desde que isto aconteceu. Entretanto a situação
laboral das mulheres melhorou significativamente, mas, reminiscências de um
passado que não queríamos tão presente, uma das grandes reivindicações das
mulheres continua a ser o fim da discriminação salarial relativamente aos
homens. Salário igual para trabalho
igual!
M.L.
Ferreira
terça-feira, 26 de março de 2024
25 de ABRIL - 50 Anos: Atalaia do Campo
Memórias:
«Andava no Externato de Alpedrinha e era hábito um dos alunos almoçar na mesa dos professores (diziam que era para aprendermos como nos devíamos comportar à mesa). Nesse dia coube-me a mim. Percebi que alguma coisa se passava porque, já estávamos todos sentados quando chegou o padre (?). Parecia que vinha nervoso e ouvi-o dizer para os outros professores: “A coisa lá por Lisboa está feia. Dizem que o Marcelo Caetano não se quer render e parece que até já há mortes”.»;
«Eu era freira e trabalhava numa Missão em Angola. No dia 25 de Abril, estava num hospital de Luanda para onde levavam os soldados feridos na guerra. Eram rapazinhos novos, alguns já sem pernas ou sem braços; brancos para um lado, pretos para o outro; diziam-nos que em primeiro lugar tínhamos que acudir aos brancos, mas eu sempre tratei todos por igual. O 25 de Abril foi bom porque acabou com aquela guerra que matou tanta gente»;
«Antes do 25 de Abril, ainda em solteiro, trabalhei uns tempos na prisão de Caxias. Fazia o que fosse preciso, que me ajeitava para tudo. Vi por lá muita coisa, mas o que mais me dava que pensar era ver entrar gente quase todos os dias, e raramente de lá via sair alguém.»;
«Não tenho lembrança nenhuma desse dia. Deve ter sido igual aos outros, a trabalhar. E naquele tempo a gente nem tinha televisão em casa para ver as notícias, só os ricos é que tinham. Depois começou a aparecer por cá muita gente para falar connosco e diziam-nos que agora era o povo que mandava, e já podíamos votar todos, até as mulheres.»;
«No dia 25 de Abril não houve escola. Fui para casa duma colega que tinha televisão e ficámos a ver. Lembro-me que à noite, quando os meus pais chegaram a casa, vinham preocupados, a dizer que se calhar a fábrica ia fechar e eles ficavam sem trabalho.»;
«Não me lembro muito bem do dia 25 de Abril porque era pequena. Do que mais me lembro, depois, foi de ir com os meus pais às manifestações e aos comícios, de ver muita gente na rua, todos contentes, de braços no ar. Para mim, aquilo era uma festa!»;
«Já não me lembro muito bem como é que foi o 25 de abril, mas lembro-me que já há uns poucos de anos fui numa excursão a Fátima, e também fomos a Peniche. Entrámos lá num sítio onde nos disseram que tinha sido ali que esteve preso o Álvaro Cunhal. Também nos contaram que ele se tinha atirado ao mar para fugir. Até me arrepiei toda.»;
«No 25 de Abril ainda andava no liceu, em Castelo Branco. Uns tempo antes já eu e mais alguns colegas, às escondidas, andávamos a deixar panfletos contra o regime pelos corredores e salas do liceu. Os contínuos andavam de olho alerta, mas nós trocávamos-lhes as voltas. Acho que nunca chegaram a saber ao certo, mas desconfiavam de nós: no dia 24, o reitor chamou-nos ao gabinete, um de cada vez, e ameaçou expulsar-nos por “mau comportamento”. Não era a primeira vez, mas aquela foi a última. Nos dias a seguir, foi uma festa, com foguetes e tudo! Até ao fim do ano já poucas aulas tivemos.»;
«Tinha acabado de ser mãe e acordei durante a noite para dar de mamar ao meu filho. Liguei a telefonia, um hábito antigo, mas a música que estava a dar era diferente da que costumava ouvir àquela hora. Gostei daquela música diferente, e fiquei a ouvir, sem imaginar ainda o que estava a acontecer. No aconchego do berço, o meu filho já dormia tranquilamente; de vez em quando parecia sorrir, como se estivesse a ter um sonho lindo.».
M. L. Ferreira
25 de ABRIL - 50 Anos: Mulheres da Liberdade
Mural na Avenida de Berna, em frente da Gulbenkian, onde a figura de Salgueiro Maia se destaca, mas as mulheres aparecem também com muita força (da Internet)
Muitas estiveram na primeira linha da
resistência contra a ditadura do Estado Novo, opressor de um povo inteiro, mas
sobretudo das mulheres. Nos campos, nas fábricas, nas prisões, nas
universidades, ou na clandestinidade, as suas vidas ficaram imortalizadas nas
nossas memórias. Outras, sendo pilares fundamentais da vida dos maridos,
ficaram na sombra da sua luta heróica, e delas não reza a História.
Há
tempos estive num almoço em Alcains. O pretexto era a comemoração de mais um
aniversário de Ramalho Eanes, mas a presença do jornalista Fernando Alves, dos
maiores do nosso tempo, e de Carlos Beato, um dos milicianos que acompanharam Salgueiro
Maia até Lisboa na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, foram a motivação
principal. Nada como ouvir falar da História (várias histórias) pelas palavras
de quem a fez.
Na
mesa estava também Ju Beato, a mulher de Carlos Beato e foi bonito ouvi-lo
falar do papel determinante que o apoio dela também teve naquele SIM, sem
qualquer dúvida, quando foi abordado por Salgueiro Maia.
Foram tempos difíceis para ela: muito jovem e casada há pouco tempo; vinda do Alentejo para Santarém, cidade que lhe era completamente estranha; inquieta por saber o marido envolvido numa missão daquela grandeza e sempre à espera que fosse a PIDE, cada vez que a campainha tocava. Mas manteve firme o seu apoio à causa dele, que era também a sua (partilhavam o gosto pelas cantigas do Zeca Afonso, do Sérgio Godinho, do José Mário Branco e outros cantores censurados pelo regime e lhes alimentavam a esperança). Naquela noite de tanta ansiedade, quase desejou que a senha não chegasse a ser dada, mas quando começou a ouvir na rádio a Grândola Vila Morena, mesmo de coração apertado, não teve dúvidas.
E lembrei-me de Lourdes Pedro, “Esteio da Vida de Edmundo Pedro”, como consta do título da biografia escrita por Amílcar Faustino. Uma mulher com uma coragem e força fora do comum no apoio ao marido, perseguido, preso e torturado várias vezes; na ajuda a muitas outras pessoas perseguidas pelo regime, que precisavam de ajuda; a quem a PIDE revirou do avesso, várias vezes, a casa e a vida, mas soube sempre levantar-se com enorme determinação; que enfrentou o sistema, reivindicando melhores condições para os presos político; que quase passou fome e, num dia de aniversário, o que lhe valeu foram os cem escudos que a mãe lhe deu para comprar uma prenda, mas foi com eles que pagou as viagens até Caxias para visitar o marido na prisão; que se viu privada de ver o crescimento da filha como qualquer mãe ou pai desejam, por ter que trabalhar pelos dois ou por andar escondida a fugir à prisão, acusada de ser cúmplice nas atividades e tentativas de fuga do marido.
São apenas dois exemplos de mulheres de coragem, determinantes na luta dos companheiros pelo fim de uma ditadura de tantos anos. É também a elas, e a tantas outras heroínas desconhecidas, que devemos a Democracia, a Liberdade e a Igualdade, ainda imperfeitas e sempre em construção, em que vivemos há quase 50 anos.
M. L. Ferreira