sexta-feira, 12 de março de 2010

Aljubarrota


Na terça-feira, dia 9 de Março, voltei ao campo de São Jorge, local onde foi travada a Batalha de Aljubarrota.
É sempre com uma pontinha de emoção que falo aos meus alunos da participação, nesta batalha, de D. Frei Fernando Rodrigues de Sequeira (1338-1431), filho de Rodrigo Anes de São Vicente da Beira e de Maria Afonso de Castelo Branco.
Era Fernando Rodrigues de Sequeira já adulto, quando el-rei D. Pedro entregou aos freires de Avis o seu filho ilegítimo, D. João. Ainda criança, foi nomeado Mestre da Ordem de Avis, por ser filho de quem era.
Mas precisava de um orientador e o escolhido foi o vicentino Frei Fernando Rodrigues de Sequeira, que se tornou seu aio.
Juntos vão passar as vicissitudes da crise de 1383-83. Defenderam Lisboa, no cerco que D. João I de Castela lhe fez, em 1384, e lado a lado estarão um ano mais tarde, nos campos de Aljubarrota.
Longo e trabalhoso foi aquele 14 de Agosto de 1385, véspera de Nossa Senhora da Assunção. Um sol abrasador e espanhóis em excesso para vencer (6 mil contra 30 mil). Ainda por cima, os castelhanos não gostaram da espera que os portugueses lhes prepararam, a norte, e desviaram-se para sul, obrigando a movimentar todas as tropas e a cavar novos buracos, onde os seus cavalos cairiam.
D. Fernando e os restantes freires de Avis ficaram ao lado do seu Mestre, na retaguarda.
As tropas inimigas romperam a vanguarda de Nuno Álvares Pereira, mas a retaguarda do Mestre de Avis e do filho de Rodrigo Anes aguentou firme, com uma fé inabalável na vitória.
Ao entardecer, os castelhanos estavam em fuga e Portugal reafirmou a sua independência.
Meses antes, o Mestre de Avis fora aclamado rei de Portugal, nas Cortes de Coimbra, com o título de D. João I. No ano seguinte (1386), Frei Fernando Rodrigues de Sequeira foi eleito Mestre de Avis.


Esquema da movimentação e da posição dos dois exércitos, na Batalha de Aljubarrota. No local onde estava a retaguarda portuguesa, ergue-se hoje o Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota.


Capela de São Jorge, erguida em agradecimento ao santo protector do exército de Portugal, no local onde se situava a vanguarda portuguesa, comandada por Nuno Álvares Pereira. Na janela da esquerda, há sempre uma bilha com água, em memória da sede que ali passaram os portugueses, nesse 14 de Agosto.


Pintura da época, representando a Batalha de Aljubarrota.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A fortaleza de Almeida

No princípio, eram os castelos, de madeira ou pedra, sempre altaneiros, a impedir a entrada dos inimigos.
Venciam-se pelo fogo, catapultando para dentro bolas de lume ou ateando as portas. Também pela doença, através do lançamento, para o interior, de cadáveres de vítimas da peste, designação genérica de doenças contagiosas de morte certa. Foi o início da guerra biológica. Por vezes, simplesmente, esperava-se. A fome e a sede levariam os sitiados à rendição. Habitualmente, tomava-se o castelo transpondo as muralhas, com engenhos e escadas.


O castelo do Sabugal: pátio interior, com a torre de menagem ao fundo.

Mas as técnicas militares começaram a mudar. Em 1453, os turcos tomaram Constantinopla (actual Istambul), usando canhões que “vomitavam fogo”, não os trons usados em Aljubarrota (1385), que apenas lançavam pedras esféricas.
Esta nova arma tornou os castelos medievais obsoletos, incapazes de resistir ao fogo cerrado do inimigo. Dois ou três disparos bastavam para abrir uma brecha na muralha e permitir a entrada e a conquista. Ficaram para alimentar o nosso imaginário romântico, de príncipes e princesas.
As fortificações tiveram de se adaptar à nova arma. A primeira, em Portugal, foi a parte inferior da Torre de Belém, de influência italiana. Mas seria a necessidade de defesa face a Espanha, após a Restauração de 1640, que obrigou Portugal a construir uma ampla rede de fortalezas modernas, nas fronteiras terrestres e marítimas.
Em vez das muralhas altas dos castelos, fizeram-se muros grossos e baixos, quase a nível do chão, intervalados por fossos fundos e largos, com canhões apontados para o exterior, em todas as direcções. No subsolo, escavaram-se abrigos, as casamatas.
Assim nasceu a fortaleza de Almeida. O velho castelo lá continuou, mas apenas a servir de paiol da pólvora. Uma estrela de pedra passou a circundar a sentinela da Beira, guardando uma das duas entradas naturais de Espanha em Portugal, com percurso favorável até Lisboa.


Mapa de Portugal, com as duas estradas de ligação de Espanha a Lisboa, seguindo o percursos mais acessíveis: relevo pouco montanhoso e sem linhas de água intransponíveis.
Na entrada por Ciudad Rodrigo-Almeida, o rio Mondego era atravessado na ponte de Coimbra; na entrada Badajoz-Elvas, passava-se o Tejo de barco, junto à foz.
Neste mapa, as fortalezas referidas estão assinaladas com estrelas.




A praça-forte de Almeida: esquema e fotografia aérea.

Almeida merece a nossa visita, pois um dos concelhos que a fornecia de soldados era o de S. Vicente da Beira. Nos séculos XVII, XVIII e XIX, era principalmente para o Regimento de Cavalaria de Almeida que os oficiais das Ordenanças enviavam os nossos soldados, embora também houvesse vicentinos na fortaleza de Elvas, que guardava a outra entrada natural.
Na “Matrícula dos Moradores” de 1779, temos o registo de homens do concelho que pertenciam à força armada do Reino, o exército de primeira linha: Manoel da Gama do Freixial, marido de Izabel Pires, era soldado da praça de Almeida; Joaõ Antunes do Sobral, casado com Maria Agostinha, servia na praça de Elvas.
Indo a Almeida, visitar também Sortelha, para fazer o contraponto com um castelo medieval. Ali bem perto, o Sabugal oferece-nos uma torre de menagem majestosa, restaurantes ou uma praia fluvial para picnicar. No regresso, temos a Sé da Guarda, ampla nave de pedra que nos espera na frieza granítica dos seus muros e pináculos góticos.


O castelo de Sortelha: torre de menagem.


Almeida, "Casa da Amélinha": uma ginjinha de estalo!

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Invasões Francesas 11


A conquista de Ciudad Rodrigo
A 3.ª invasão francesa terminou, após a batalha do Sabugal (03/04/1811). Os franceses retiraram para Espanha, mas dominavam ainda a fortaleza fronteiriça de Ciudad Rodrigo, continuando a ser uma ameaça para Portugal.
No Inverno do ano seguinte, o exército luso-britânico, sob o comando de Wellington, tomou esta fortaleza, após um cerco que se prolongou de 8 a 19 de Janeiro de 1812.
Homens e bestas tinham de comer. E é aqui que entram os nossos antepassados.
No Verão e Outono de 1811, foram muitos os serviços prestados pelos nossos carreiros, todos a transportar mantimentos para as tropas que se começavam a concentrar na Comarca de Castelo Branco, que na época incluía o Sabugal.
Alguns transportes eram de âmbito local, mas a maioria destinava-se a trazer alimentos de Abrantes para a sede desta comarca.
Mas foi sobretudo para abastecer as tropas em Ciudad Rodrigo, após a sua conquista, que estes transportes ganharam uma particularidade que os diferencia dos restantes.
No concelho de S. Vicente da Beira, como aliás terá sucedido nos restantes concelhos da região, fez-se uma recolha de palhas e fenos, que depois se transportaram para um outro centro, este possivelmente regional, a vila de Alpedrinha.
Dali, as palhas e fenos foram levados para Bismula, no concelho do Sabugal, muito próximo de Aldeia da Ponte, povoação fronteiriça, por onde passava a estrada de ligação a Espanha (não assinalada no mapa, em baixo), quase em linha recta para Ciudad Rodrigo.


Mapa de localização da região referida no texto. Destaque para as fortalezas de Almeida e Ciudad Rodrigo. Bismula está apenas assinalada com uma linha fechada, sem nome, pois não consta deste mapa (clicar no mapa, para ver melhor).


Entrada da fortaleza de Ciudad Rodrigo


Ponte romana de acesso a Ciudad Rodrigo, sobre o rio Agueda, afluente do Douro


A catedral de Ciudad Rodrigo

Carreiros que fizeram serviços de transporte de S. Vicente para Alpedrinha:
Pedro, ganhão de Berardo Joze Leal, da Vila, em Fevereiro de 1812
(O ganhão de) Francisco Antonio Simoens, da Vila, Janeiro de 1812
Joam Francisco e Joze Mateos, do Mourelo, Março de 1812
Joam Antunes Piqueno, do Mourelo, Março de 1812
Faustino Roiz e Joze Morozo, do Mourelo, Março de 1812
Manuel Antunes Frade e Joze Alves, do Mourelo, Março de 1812
Manoel Leitam e Joam Antunes, do Mourelo, Março de 1812
Manoel Leitam e Joze Alves, do Mourelo, Março de 1812
Joaquim Roiz Diabinho, do Mourelo, Março de 1812 (de Rochas de Cima para S. Vicente)

De Alpedrinha para Bismula andaram os seguintes carreiros:
Domingos Silva, da Vila, em Janeiro de 1812, 18 dias
(O ganhão de) Ignes, viúva de Domingos Vas Rapozo, da Vila, Janeiro de 1812, 18 dias
Joaõ Leitaõ Canuto, da Vila, em Janeiro de 1812, 18 dias
(O ganhão de) Francisco Ferreira, da Vila, em data não indicada, 18 dias


Bismula: fonte romana


Bismula: procissão

Fora destes dois circuitos, outros carreiros trouxeram farinha e aguardente, de Abrantes para Castelo Branco:
Joam Antunes Piqueno e Joze Antonio, do Mourelo, Janeiro de 1812, 11 dias
Manoel Joaõ, da Partida, Janeiro de 1812, 11 dias

sábado, 27 de fevereiro de 2010

2.º Nevão

Na noite de domingo para segunda-feira de Carnaval, a neve voltou à nossa Gardunha, desta vez com menor intensidade.
O Frederico Candeias enviou-me estas fotos do Casal da Serra e da Senhora da Orada.




quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Corso Carnavalesco

Finalmente, as prometidas fotografias do corso de Domingo de Carnaval.
Este ano, a organização coube à Banda Filarmónica. E, em ano de centenário, não faltaram os pais fundadores: Padre Santiago e Ti Valério!







Fotografias do Dário Inês.


A Luzita Candeias também me mandou fotos, estas da contradança carnavalesca do ano passado, no Casal da Fraga, junto à capela de Santa Bárbara. Os entrudos-artistas são do Racho Folclórico. Deixo-vos algumas.










sábado, 20 de fevereiro de 2010

Culinária da matação

Queijo fresco de cabra
Ingredientes: leite de cabra, sal e coalho.
Ferve-se o leite e junta-se o coalho, que é um pedacinho do estômago seco de um cabrito morto no período da amamentação, antes de começar a comer erva. Deixa-se ficar até coalhar. Vai-se colocando a massa no cincho, com uma concha, e aperta-se com as mãos. Quando o cincho já estiver cheio e a massa bem apertada, sem largar soro, deita-se sal por cima e deixa-se ficar. Passadas horas, vira-se, sempre no cincho, e coloca-se sal no outro lado. Pouco depois, pode-se comer. O soro, com os pedacinhos de coalhada que escaparam do cincho, adoça-se e bebe-se ou come-se com sopas de pão.

Azeitonas
Ingredientes: azeitona cordovil, água, sal e orégãos.
Colhe-se a azeitona em fins de Outubro ou princípios de Novembro, antes de amadurecer. Depois de tirar as bichosas e as tocadas, colocam-se na talha, cheia de água. Muda-se a água uma vez por mês e em Março salgam-se. A tradição manda salgar em Abril, Em Abril, salga o teu olivil, mas pode ser tarde, porque há anos em que o calor vem cedo. Na medida de água a utilizar, deita-se sal e dissolve-se, até que um ovo lá colocado venha acima. Então tem a medida certa de sal e junta-se às azeitonas, na talha. Em Maio ou Junho, acrescentam-se ramos de orégãos. No Verão, já estão boas para comer.


Primeiro salga-se a água.


Depois junta-se a água salgada às azeitonas.

Arroz do osso da sevã
Ingredientes: arroz, alho, cebola, sal, azeite e osso da sevã.
Faz-se um refogado de cebola, sal, azeite e alho. Depois deita-se água e, ao levantar fervura, junta-se o osso da sevã, cortado em pedaços. Quando a carne estiver cozida, acrescenta-se o arroz e deixa-se ferver, até estar feito.

Seventre
Ingredientes: alho, louro, salsa, sal, azeite, pimento, sangue, vinho, toucinho entremeado e fígado.
Corta-se o toucinho entremeado em pedaços pequenos e coze-se na caçola, em pouca água, temperado com azeite, sal, alho, louro, pimento e salsa. Quando estiver quase feito, junta-se o fígado, também cortado em pedaços, e um copo de sangue do porco, já misturado com vinho, logo quando se sangrou o porco. Coze mais um pouco e está pronto.

Ervas
Ingredientes: nabos, alho, vinagre, farinha, sal e azeite.
Miga-se a rama dos nabos e coze-se. Depois escorre-se bem a água e colocam-se na caçola, temperados com azeite, sal e alho picado. Vão-se mexendo com uma colher de pau e por fim adiciona-se o vinagre e a farinha, para ficarem mais macias.

Feijão grande guisado
Ingredientes: feijão grande, vinagre, alho, salsa, sal, azeite e pimento.
Coze-se o feijão em água e sal. Depois coloca-se num tacho, juntamente com os temperos e uma pequena quantidade da água da cozedura. Vai-se mexendo com uma colher, enquanto ferve um pouco, acrescenta-se o vinagre e está feito.

Sopa de feijão encarnado com couves
Ingredientes: água, sal, azeite, couve, feijão encarnado, batata e botelha.
Coloca-se ao lume a panela grande de ferro, mais de meia de água. Quando estiver a ferver, deitam-se para dentro a batata e a botelha. Depois de cozidas, esmagam-se com o garfo na colher de pau ou passam-se pelo passe-vite. Coze-se o feijão num tacho e deita-se para a panela com a água da cozedura, juntamente com as couves migadas. Tempera-se com sal e azeite. Quando estiver quase cozida, acrescenta-se um pouco de massa, ferve o suficiente para cozer a massa e está pronta.

Cagarrapos
Ingredientes: massa das farinheiras e azeite.
Deitam-se colheradas de massa das farinheiras para a frigideira com o azeite a ferver e deixam-se fritar. Tiram-se e comem-se, depois de arrefecerem.

Chouriças
Ingredientes: alho, vinho, sal, água, pimento, febras miúdas e a tripa do intestino delgado do porco.
Numa bacia, temperam-se as febras miúdas, cortadas em pedacinhos, com muito alho esmagado, pimento, bastante sal e vinho. Cobrem-se com água e deixam-se a macerar quase uma semana. Depois, com as enchedeiras, mete-se a massa nas tripas miúdas do intestino delgado do porco, apertando para sair o líquido e o ar. Atam-se e penduram-se na latada do fumeiro.

Chouriços
Ingredientes: sal, alho, vinho, água, pimento, as febras grossas, o lombo e a tripa mais grossa do instestino grosso.
Temperam-se as febras grossas, cortadas em pedaços, com muito alho esmagado, bastante sal e vinho. Cobrem-se com água e deixam-se a macerar quase uma semana. Depois, com as enchedeiras largas, mete-se a massa nas tripas mais grossas do intestino grosso do porco, apertando para sair o líquido e o ar. Com a tripa maior, do cego, faz-se o paio, enchendo-a com a língua do porco inteira e com as febras mais grossas. Atam-se e penduram-se na latada do fumeiro.

Morcelas de assar
Ingredientes: sangue, cominhos, sal, salsa, alho, vinho, véu de gordura da barriga do porco e tripa do intestino delgado do porco.
Miga-se a gordura miudinha e tempera-se com os outros ingredientes, picando o alho e a salsa. De seguida, mete-se a massa nas tripas miúdas e atam-se. Cozem-se as morcelas em lume brando, para não rebentarem, e penduram-se na latada do fumeiro.

Morcelas de cozer
Ingredientes: vinho, cominhos, alho, sumo de laranja, sal, sangue, carnes ensanguentadas, rins, bofe e pâncreas e a tripa mais miúda do intestino grosso do porco.
Migam-se as carnes, temperam-se com os restantes ingredientes, picando previamente o alho e a salsa, e mete-se a massa na tripa mais miúda das tripas grossas. Depois de atadas, cozem-se em lume brando, para não rebentarem, e penduram-se na latada do fumeiro.

Farinheiras
Ingredientes: farinha, sal, vinho, água, pimento, tripa de vaca e todas as gorduras do porco que não foram utilizadas noutros enchidos ou que não foram salgadas na salgadeira.
Cozem-se todas as gorduras, temperadas com os restantes ingredientes, excepto a farinha. Depois de bem cozidas, migam-se miudinhas com as tesouras. Juntam-se à água em que cozeram e adiciona-se a farinha, até a massa estar boa. Depois enchem-se as tripas, com as enchedeiras, atam-se e penduram-se na latada do fumeiro. As tripas são de vaca, compradas nas mercearias, pois as de porco não chegam para todo o enchido.

Presunto
Ingredientes: sal, pimento, azeite e as partes carnudas das patas traseiras do porco, também chamadas presuntos.
Os dois presuntos salgam-se no dia a seguir à matação. Primeiro, fazem-se uns buracos nas partes mais altas da carne e enchem-se de sal. Colocam-se os presuntos inteiros no fundo da salgadeira, sobre uma camada de sal, e cobrem-se com sal e depois camadas sucessivas de outras carnes e de sal. Passados três meses, retiram-se da salgadeira, limpam-se do sal e esfregam-se com uma mistura de pimento e azeite. Penduram-se na cozinha, tapados com um pano, que os protege das moscas e do pó, e poucas semanas depois começam-se a comer.

(Publicado em: PRATA, José Teodoro – “Instantes saborosos”, Estudos de Castelo Branco, Julho de 2007, Nova Série, N.º 6, Direcção de António Salvado)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A matação do porco

E que tal a choradela de entrudo modernista ("...por linhas tortas")? Um abraço a todos os visados!
Hoje vamos à matação* do porco, antes que o tempo aqueça e dê cabo dos enchidos.
Concluímos amanhã, com a culinária da matação.


O frio para matar o porco só chegava por alturas do Natal. Mas então a vida fazia-se em volta da azeitona e não havia vagar para mais nada. Entretanto, comprava-se um cesto de bagaço*, para acabar de engordar o porco.
Uma vez, num dia de Outono, o meu pai levou-me com ele à Oles. De saca vazia ao ombro, íamos comprar bolota para a carne do porco ficar mais saborosa. Mas o ti Zé Maria sorriu e lamentou-se, porque os sobreiros eram cada vez menos e há muito tempo que nem havia bolota com fartura para as ovelhas.
Quando a azeitona já ia estando colhida, lá por fins de Janeiro, não havia domingo em que não se ouvissem, logo pela manhã, os guinchos de um porco, a quem interrompiam a rotina da furda*.
Três semanas antes do domingo marcado, ia-se à carqueja ao Cabeço do Pisco, primeiro o meu pai e mais tarde eu, quando já dava conta do recado. Se estivesse bom tempo, deixava-se o molho na rua, se chovia, metia-se na loja.
A matação era trabalho de homens e os homens tinham que beber vinho. Por isso, uma das principais coisas a fazer, dias antes, era arranjar vinho, não o de todos os dias, que se vendia na mercearia, mas fazia doer a cabeça e não se sabia se era de uva. Não, o vinho tinha que ser bom e agradar a quem o ia beber.
O meu pai levava-me com ele ao Caldeira, a casa do ti Jaquim Macedo, que vendia vinho e era amigo do meu pai. Contava-me histórias da tropa, de quando andou a prender frades nos dias a seguir à República. Trazíamos dois garrafões de vinho, que devia chegar para o jantar e para o porco.
No dia da matação, levantávamo-nos cedo, porque era preciso preparar tudo antes dos homens chegarem. Eles eram o tio Zé Candeias, o meu padrinho, que morava ao nosso lado, o tio João Teodoro, o tio Chico Bernardino, o meu avô Francisco e o tio Joaquim, todos do Casal da Fraga. Quem matava o porco era o meu avô Francisco, mas o tio Joaquim aprendeu com ele e passou a ser o matador. Depois dos cumprimentos, almoçávamos café com leite ou vinho e pão com queijo fresco de cabra ou curado de ovelha e azeitonas. E íamos ao trabalho.


As azeitonas

Desde cedo me calhou meter a corda na pata do porco, mas sempre tive medo, das dentadas e das voltas repentinas dele, que me podiam apertar contra a parede. Como ele nunca queria sair da furda, puxávamos pela corda, empurrávamos pelo rabo e agarrávamos pelas orelhas. Em pouco tempo, estava estendido em cima do banco. O tio Joaquim atava-lhe o focinho, para não morder, e a minha mãe chegava com uma colher de pau e uma bacia com um pouco de vinho e uma mão cheia de sal.
O matador espetava-lhe a faca e a minha mãe persignava-se e depois apulava o sangue, sempre a mexer, para não coalhar. Nós segurávamos, à espera dos esticões que nos podiam atirar ao chão, mais ao porco, e fazer passar uma envergonhadela.
Com a morcela da banca* cá fora, a dar pretexto para brincadeiras e larachas*, começava-se a chamuscar com a carqueja e a raspar com facas velhas. Alguém protestava que já era hora de matar o bicho* e eu lá vinha com as passas e a aguardente. Comecei também a beber meio copo, para ajudar a levar o porco até à loja. Mas antes ainda o lavávamos e raspávamos com navalhas afiadas. O matador lavava as orelhas com água bem quente, fazia o cu*, cozia a ferida do pescoço, punha o chambaril* e estava pronto. Os homens, todos fortes, preveniam-se para o esforço final com mais um mata-bicho e o porco era então carregado em braços para a loja e pendurado na sonave*.


O chambaril

O tio Joaquim abria o porco, com dois cortes na barriga, do cu ao focinho. Primeiro tirava o toucinho entremeado, para o seventre, e logo se apreciava se o porco era februdo ou se tinha muito toucinho. A minha mãe chegava com bacias e alguidares, para as carnes. Depois apulavam-se as tripas para o tabuleiro, que se colocava em cima do banco de matar o porco. Antes de arrefecerem, a minha mãe separava as tripas umas das outras, tirando as gorduras que as ligavam.
Os meus tios do Casal iam-se embora, a arranjarem-se para a missa. Nós não podíamos. Fechávamos a loja, para os gatos lá não irem, e íamos ajudar no jantar. A minha mãe, as minhas irmãs e uma das irmãs da minha mãe, a tia Estela ou a tia Carlota, preparavam a comida, na cozinha. Eu e o meu pai arranjávamos a mesa, na sala. Abria-se a mesa e, como as cadeiras não chegavam, colocávamos umas tábuas dos lados, para nos sentarmos. Depois, eram as toalhas, os pratos, as colheres, os garfos e os copos. Tudo pronto. Na cozinha também, a adivinhar pelo cheiro do seventre*, que fervia na caçola* de ferro ou de barro, em cima das trempes, ao lume.
Chegavam os meus tios, as minhas tias e os meus primos. Sentávamo-nos à mesa, bem apertados, para cabermos. Mas não cabíamos, os mais pequenos iam para a cozinha e algumas mulheres ficavam a servir e comiam no fim.
Primeiro a sopa de feijão encarnado com couves. A seguir o arroz de bacalhau, se havia dinheiro, ou do osso da sevã*, o osso do peito do porco, acabado de matar. Para os homens, vinho, para as mulheres, meio copo. Depois as ervas, o feijão grande guisado, as batatas cozidas e o seventre. Era o melhor, mas já mal cabia. Mais uns copos e a fruta, laranjas da Oriana, do meu avô João Prata.
Depois de jantarem, as mulheres iam ao ribeiro lavar as tripas. Também levavam sal grosso, vinagre e limões ou laranjas azedas. A minha mãe às vezes ficava, para ir adiantando as morcelas. Os homens jogavam às cartas, conversavam e bebiam vinho.
Ao fim da tarde, a cozinha enchia-se de mulheres e alguidares de carnes ensanguentadas. Migava-se o véu da barriga, bem miudinho, com as tesouras da costura. Depois misturava-se com sangue e temperava-se. Com enchedeiras*, ia-se metendo a massa nas tripas miúdas, cortadas em pedaços, com uma ponta já atada. Depois de cheia, atava-se a outra ponta, com fio suficiente para as pendurar nas varas. Coziam-se ao lume, lentamente, para não rebentarem, e depois penduravam-se na latada do fumeiro*. Aos mais pequenos davam-se umas pequeninas, as netas, que se assavam nas brasas, logo à saída da panela de ferro.
O dia terminava com a prova das morcelas de assar e todos regressavam a suas casas com um presente de toucinho entremeado e morcelas.
No dia seguinte, de manhã, o matador vinha desmanchar o porco com o meu pai. Depois temperavam-se as carnes para os chouriços, para as morcelas de cozer e para as farinheiras. As outras carnes eram metidas na salgadeira, entre camadas de sal. Com os presuntos era preciso ter cuidado, para tomarem bem de sal e não se estragarem. Como eram altos, faziam-se furos nas carnes e enchiam-se de sal. Depois também iam para a salgadeira, mas só por três meses. Eram então tirados, limpos e barrados com pimento e azeite. E começavam-se a comer.
Os enchidos ocupavam as mulheres da casa durante uns dias. Quando se enchiam os chouriços, fazia-se um grande com a tripa do cego*, onde se metia a língua inteira. Tinha que se atar em toda a volta, pelos quatro lados, para a linha não rebentar com o peso. No dia das farinheiras, as últimas a fazer, não se gastava a massa toda, para fritar cagarrapos*.
A latada do fumeiro ficava a enfeitar a nossa cozinha durante meses: na primeira vara, junto à chaminé, mais perto do lume, ficavam os chouriços, depois as chouriças, as morcelas de cozer, as de assar e por último as farinheiras.
Eu ia logo aos tojos*, que cresciam atrás da casa, nos eucaliptos do Padre Tomás. Eram para afastar os gatos das varas do fumeiro. Punham-se nas pontas das varas, do lado do alçapão do forro*, que era por onde os gatos vinham.
E tínhamos carne para todo o ano.


O tojo

Vocabulário
•Apular - Apanhar algo que vem de cima, que cai.
•Bagaço - Resíduo sólido da azeitona, depois de triturada e prensada, para lhe tirar a parte líquida.
•Caçola - Pronúncia local de caçoula; caçarola.
•Cagarrapos - Pronúncia local de cadarrapos (Castelo Branco), alimento confeccionado a partir da massa das farinheiras.
•Cego - Parte inicial e mais larga do intestino grosso.
•Chambaril - Instrumento artesanal, feito de madeira dura, habitualmente de oliveira, castanho ou sobreiro. O pau deve ter uma curvatura de cerca de 130 graus e fazem-se-lhe cortes nas extremidades aguçadas, em forma de cavilha, para prender nos tendões das patas do porco. O animal é pendurado para a desmancha, suspenso pelo chambaril.
•Enchedeira - Espécie de funil, em lata, para encher o enchido.
•Fazer o cu - Tirar os dejectos fecais da parte final do intestino grosso, com água e/ou palha, cortar em volta do ânus, por fora, até à profundidade de cerca de um palmo, atando firmemente esta extremidade do intestino com uma baraça forte, para impedir a saída de dejectos durante a extracção das tripas, quando o porco é aberto.
•Forro - Espaço superior da casa, junto ao telhado. Ali se guardavam as batatas, as pinhas, ferramentas...
•Furda - Sítio onde vive o porco.
•Laracha - Graça; chalaça; dito jocoso, que provoca riso.
•Loja - Piso térreo da casa, para alojar os animais e guardar as alfaias agrícolas.
•Matação - Matança; morte do porco em casa de quem o criou, com todo o ritual tradicional.
•Matar o bicho (ou mata-bicho) - Beber um copo de aguardente no início da manhã; neste caso, durante os trabalhos da matação do porco, que ocorrem ao longo da manhã.
•Morcela da banca - Dejectos fecais do porco, expelidos involuntariamente nas afrontas da morte.
•Osso da sevã - Osso do peito do porco, correspondente ao externo. Sevã é a maneira local de dizer suã. Esta designa os ossos da espinha e das vértebras, mas em S. Vicente da Beira refere-se apenas ao osso do externo.
•Seventre - Comida regional, confeccionada a partir do sangue, do fígado e do toucinho entremeado do porco.
•Sonave - Trave-mestra; viga.
•Tojo - Arbusto com espinhos e folhas reduzidas, de flor amarela.
•Trempes - Arco de ferro, assente em três pés, onde se colocam as panelas ao lume.

(Publicado em: PRATA, José Teodoro – “Instantes saborosos”, Estudos de Castelo Branco, Julho de 2007, Nova Série, N.º 6, Direcção de António Salvado)