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domingo, 12 de novembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Simão

José Simão nasceu no Casal da Fraga, a 17 de maio de 1893. Era filho de Joaquim Simão, jornaleiro, natural da freguesia de S. Vicente da Beira, e de Felícia Maria, doméstica, natural de Rochas de Cima.

Assentou praça no dia 9 de julho de 1913, como recrutado, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21 em 13 de janeiro de 1914, como atirador de 1.ª classe.

Pronto da instrução da recruta em 30 de abril, foi licenciado em 1 de maio, regressando a São Vicente da Beira.

Apresentou-se novamente em 5 de maio de 1916 e, fazendo parte do CEP, embarcou para França em 21 de janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, no posto de soldado com o n.º 92 e a chapa de identidade n.º 44924.

Da sua folha de matrícula e boletim individual do CEP consta o seguinte:

a)   Punido em maio de 1916, pelo Comandante da Companhia, com 2 faxinas, por estar sentado na cama durante o dia e não se ter levantado prontamente à voz de sentido dada quando o comandante entrou na caserna;

b)   Punido em 20/08/1917, pelo Comandante da Companhia, porque, quando se fez a distribuição do vinho à Companhia, disse para alguns dos seus camaradas que os rancheiros não lhes davam a ração que era dado e eram todos uns ladrões;

c)    Punido em 16/03/1918, pelo Comandante da Companhia, com 10 dias de detenção, por faltar aos trabalhos de S. Naast, no dia 13;

d)   Punido em 02/05/1918, pelo Comandante da Companhia, com 4 dias de detenção, por ter faltado aos trabalhos, em 28 de abril;

e)   Punido em 17 /9/1918, com 12 dias de detençã,o por ter feito uso dum passe regulamentar fora da data, que lhe tinha sido concedido em vez de o ter entregado, saindo da sua área de estacionamento sem autorização;

f)     Aumentado ao efetivo do Depósito Disciplinar 1, em 26 de setembro de1918, onde ficou com o n.º 718, porque, de acordo com a folha de matrícula "encontrando-se com prevenção de marcha para um novo acampamento mais avançado em relação à frente do inimigo, insubordinou-se, recusando a desarmar as barracas e a entrar na formatura, ameaçando matar com granadas de mão e a tiros de metralhadora todo aquele que tal fizesse, como também se recusando a entrar em ordem às intimações que lhe foram feitas pelos seus superiores";

g)   Marchou em diligência do Depósito Disciplinar 1 para o Tribunal de Guerra, a fim de ali ficar à disposição daquele tribunal, em 22/02/1919;

h)   Em 16 de março de 1919, foi condenado pelo Supremo Tribunal de Guerra, na pena de 7 anos de presídio militar e mais na pena acessória de igual tempo de deportação militar ou, em alternativa, na pena de dez anos de deportação militar;

i)     Repatriado para Portugal, no dia 05/06/1919, com o Serviço de Adidos, na condição de condenado;

j)     Passou ao presídio militar de Santarém, em 28 de junho, a fim de cumprir a pena a que tinha sido condenado;

k)    Amnistiado pela Lei n.º 1198 de 2 de setembro de 1921, foi solto por ordem da Secretaria da Guerra e passou ao Regimento de Infantaria 21, em 26 de Setembro de 1921. Foi licenciado em janeiro de 1922 e domiciliou-se em São Vicente da Beira.

Passou ao Regimento de Infantaria de Reserva 21, em 31 de dezembro de 1923, e ao Regimento de Infantaria 11, em 17 de julho de 1931, por ter transferido a residência para a freguesia de Bocage, em Setúbal.

Passou à reserva ativa em abril de 1928 e à reserva territorial em Dezembro de1934. Em 31 de dezembro de 1934, foi-lhe dada baixa por ter cumprido toda a obrigação de serviço militar.    

Família:

José Simão casou com Gertrudes Rosa, na Conservatória do Registo Civil de Setúbal, no dia 21de outubro de 1925. Sabe-se que tiveram filhos e netos, mas não mantiveram um relacionamento de grande proximidade com os familiares em São Vicente da Beira. Não existem, por isso, muitas memórias deste ramo da família.

O casal terá vivido sempre na cidade de Setúbal e foi ali que José Simão faleceu, na freguesia de Nossa Senhora da Anunciada, no dia 19 de Fevereiro de 1975. Tinha 81 anos de idade.

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Conversas de autocarro

 Os passageiros eram, quase todos, homens e mulheres a quem o trabalho duro de uma vida inteira fazia aparentar uma idade que não tinham.

Saíram das suas terras, ainda jovens; alguns seguiram o rasto dos pais, que, antes deles, procuraram lá fora a vida que em Portugal nem podiam sonhar.

Eram do Alentejo, das Beiras, de Trás-os-Montes, do Minho… mas as memórias que partilhavam eram o testemunho do atraso e da pobreza comuns, quase hereditários, que se vivia em todo o país.

Falavam do frio e das molhas, ainda crianças, atrás de um rebanho de cabras ou à frente de uma junta de bois; do calor escaldante dos dias da ceifa ou do alcatrão a ferver que espalhavam nas estradas que cresciam por todo o lado; dos molhos de mato e das sacas às costas, cada vez mais pesados, na pressa de se fazerem homens e mulheres e terem um salário melhor; alguns ainda foram à guerra, outros livraram-se por pouco, e quase todos lá tiveram um irmão mais velho ou parente chegado.

Mas ainda não esqueceram os jogos e as cantigas de outros tempos; as festas e romarias com procissões e bailaricos; a mesa farta desses dias com a família toda à roda. As mulheres, essas, trocavam receitas de bolos, mesinhas e orações para todos os males, e mostravam, orgulhosas, as fotografias dos netos e das flores do jardim à frente da casa com que sempre sonharam.

Foram difíceis, os primeiros tempos em França. Durante anos não houve domingos nem dias santos; mesmo as férias eram passadas a levantar mais um bocado da casa ou a tratar das terras que, a pouco e pouco, iam juntando aos bocados que herdaram dos pais ou já tinham comprado; não se sabia o que era ir a um restaurante e muito menos a uma praia. Também quiseram dar aos filhos outras ferramentas para a vida: a maior parte não tinha passado da quarta classe, quando muito do segundo ano, quando foram obrigados. É que os pais deles, sobre a importância das letras, o que sabiam era dizer aos professores que lhes chegassem sempre que fosse preciso.

Agora, quarenta e muitos anos depois, e já todos reformados, voltam à terra duas ou três vezes por ano, por altura das festas e para a apanha da azeitona ou da castanha, mas demoram-se por cá pouco. E já não pensam regressar de vez, que é lá que têm os filhos e os netos, e esses cada vez menos querem vir a Portugal.

Não admira que as terras estejam a ficar cada vez mais vazias de gente. Algumas já nem têm escola, nem padre, nem crianças pelas ruas. Por este caminho, qualquer dia, só velhos e os mortos no cemitério, que é também o que os vai trazendo até cá por estes dias.

M.L.Ferreira

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Os Sanvicentinos na 1.ª Guerra Mundial

Voltei à escola, a convite dos meus colegas, para falar sobre a participação dos beirões na 1.ª Guerra Mundial.

Precisei de fazer um pouco de estatística, que agora quartilho convosco:

Participaram na guerra, como combatentes, um total de 77 rapazes da freguesia de São Vicente da Beira: 56 integraram o Corpo Expedicionário Português (CEP), que lutou na frente ocidental, na Flandres (fronteira entre a Bélgica e a França, perto da cidade de Lille, junto ao rio La Lys): e 21 participaram nas campanhas militares no Sul de Angola e no Norte de Moçambique; nos três locais contra os alemães.

Cerca de 60% dos nossos combatentes eram analfabetos.

Faleceram 6 combatentes, durante a guerra ou imediatamente após o regresso.  Um número muito reduzido, em comparação com Penamacor que mandou um batalhão para Moçambique e teve mais de 100 mortos. Ou as freguesias do distrito de Portalegre, pois o Regimento de Infantaria 22 (RI 22), daquela cidade, esteve envolvido diretamente na Batalha de La Lys, uma pequena incursão alemã (comparada com as grandes batalhas desta guerra), mas que aos portugueses diz muito, pois os alemães atacaram e devastaram o setor português (e inglês).

Treze combatentes ficaram bastante doentes por toda a vida: stresse psicológico, pulmões queimados pelos gases, tuberculose…

Dos 56 militares do CEP, 20 deles (36%) sofreram castigos e/ou estiveram mesmo presos por atos de indisciplina e até revolta militar; incluindo o Major Fabião, que inicialmente era um dos oficiais do RI 22 de Portalegre, mas que depois desempenhou funções noutro regimento.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Silvestre 

José Silvestre nasceu na Paradanta, a 1 de outubro de 1893. Era filho de Silvestre dos Santos, carvoeiro, e de Anna Rita, natural do Vale d’Urso.

Como era habitual nas famílias mais pobres, começou a trabalhar desde muito cedo, primeiro no campo, como jornaleiro, e mais tarde como pedreiro.

Assentou praça a 9 de julho de 1913, no Regimento de Artilharia de Montanha, em Castelo Branco, e foi incorporado em 13 de janeiro de 1914. Ficou pronto da Instrução da Recruta em 4 de julho e passou ao quadro permanente em virtude de sorteio.

Mobilizado para a província de Angola, embarcou em 11 de setembro de 1914, integrando a 1.ª Expedição enviada para aquele território ultramarino. Chegou ao porto de Moçâmedes em 1 de outubro.

Participou na ação do dia 18 de dezembro de 1914 contra os alemães, fazendo parte das tropas que ocuparam o vau de Calueque. Pertencia ao destacamento que reconquistou e ocupou o Cuamato, de 12 a 27 de agosto, tendo participado também na ação do Ancongo, em 13 de agosto de 1915, e no combate da Inhoca, em 15 do mesmo mês, dia em que o seu destacamento entrou no Forte de Cuamato.

Com o mesmo destacamento avançou em 20 de agosto sobre Cunhamano, a fim de restabelecerem as comunicações que haviam sido cortadas pelo inimigo. No dia 24 participou também no combate da Chana da Mula, dia em que, com o mesmo destacamento do Cuamato, se reuniu às forças do destacamento de conquista do Cuanhama. Fez parte do estacamento da N’giva, de 28 de Agosto a 18 de Setembro de 1915.

Regressou à Metrópole em 16 de novembro de 1915 e foi licenciado em 15 de março de 1916, regressando à Paradanta. Mas voltou a ser mobilizado passado pouco tempo, em 27 de abril. Contava que nessa altura andava a trabalhar longe de casa e, quando recebeu a carta para se apresentar novamente, teve que regressar a correr. Só teve tempo de meter qualquer coisa dentro duma bolsa e partiu a pé para Portalegre, onde ficava o quartel a que pertencia.

Embarcou para Moçambique, no dia 24 de junho de 1917, integrando o contingente de reforço à 3.ª Expedição que já se encontrava naquele território. Regressou à Metrópole a 21 de março de 1918, muito doente.

Passou ao 2.º Escalão do Exército e ao 7.º Grupo de Bateria, em 31 de dezembro de 1923, e ao depósito de licenciados do R. A., 4 em 1/7/1926.

Passou à reserva territorial em dezembro de 1941.

Condecorações:

·        Medalha Comemorativa das Operações no Sul de Angola 1914-1918;

·        Medalha Comemorativa das Operações em Moçambique 1914-1918. Recebeu também a Medalha da Vitória.

Família:

José Silvestre casou com Maria Rosa, no Posto do Registo Civil de São Vicente da Beira, no dia 6 de maio de 1924. Tiveram 10 filhos:

1. Silvestre Silva dos Santos, que casou com Maria da Piedade Lopes e       tiveram 2 filhas;

      2. Francisco Silva dos Santos, que casou com Carminda de Jesus António e tiveram 3 filhos;

3. José dos Santos, que casou com Maria de Jesus dos Santos e tiveram     3 filhos;

4.    Duas gémeas que morreram com 24 dias de idade;

5. Maia José Silvestre, que casou com José da Assunção António e    tiveram 2 filhos;

      6. João Silvestre Santos, que casou com Maria José dos Santos e     tiveram 2 filhos;

      7. Augusto Santos Silvestre, que casou com Maria da Conceição Martins e tiveram 3 filhos;

      8. Albertino Santos Silvestre, gémeo com o Augusto, faleceu com seis anos          de idade.

«O meu pai queixava-se muito do tempo que esteve em África, sobretudo da fome que por lá passou e do medo que tinha de já não voltar à terra para ver os pais. Mas do que ele nunca se esqueceu foi do desgosto de um dia ter visto um amigo morrer mesmo ao lado dele, e ter que seguir caminho e deixá-lo para trás. Dizia que era isto que faziam quando algum militar morria em combate ou era ferido com gravidade.

Também me lembro de o ouvir contar que, quando andavam pelo mato e se aproximavam de alguma aldeia, às vezes tinham que se esconder ou fingir que eram alemães porque se não eram atacados pelos nativos, que não gostavam muito dos portugueses.

Veio de lá muito doente, com uma doença que por lá arranjou, e passava muito tempo de cama, sem poder ganhar um tostão. Era a minha mãe que tinha que andar a trabalhar no campo, a ver se arranjava qualquer coisa com que matar a fome a tanto filho. Depois também já éramos nós que começámos a trabalhar e a ganhar qualquer coisa, mas, mesmo assim, vivemos sempre com muitas dificuldades porque, ainda por cima, o meu pai nunca conseguiu que lhe dessem uma pensão, apesar do mal que de lá trouxe da guerra, e que o atormentou até ao fim da vida.» (testemunho da filha Maria José)

José Silvestre faleceu no hospital do Fundão, em abril de 1977. Tinha 83 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria José Silvestre)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

sábado, 23 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes Caetano

José Nunes Caetano nasceu no Casal da Serra, a 22 de fevereiro de 1895. Era o filho mais velho de Pedro Caetano e Joaquina Nunes, cultivadores.

Assentou praça no dia 19 de junho de 1915 e foi incorporado no dia 14 de janeiro de 1916, no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21 de Castelo Branco. Era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.

Pronto da instrução em 29 de abril de 1916, embarcou para França no dia 21 de janeiro de 1917, integrado na 6.ª Companhia do 2.º Regimento de Infantaria 21, com o número 507, placa de identificação n.º 9920.

No seu boletim individual de militar do CEP consta o seguinte:

a)    Baixa hospitalar em 22 de abril de 1917, com alta em 22;

b)    Diligência para o posto de retaguarda, em 20 de janeiro de 1918, diligência para a frente em 5 de fevereiro;

c)    Baixa à ambulância n.º 4 em 13 de outubro de 1918; alta em 18, seguindo para a sua unidade;

d)    Regressou a Portugal no dia 5 de março de 1919, indo domiciliar-se no Casal da Serra.

Passou à reserva ativa em 11 de Abril de 1928 e à reserva territorial em 31 de Dezembro de 1936.

Família:

José Caetano casou com Felicidade da Conceição, no dia 26 de janeiro de 1925, mas a esposa morreu de parto no dia 1 de Novembro do mesmo ano. Voltou a casar com Ana dos Anjos, em 23 de Fevereiro de 1930, e tiveram quatro filhos:

  1. Antónia dos Anjos que casou com Albertino Barroso e tiveram 3 filhos;
  2. Maria dos Anjos que casou com Joaquim Caio e tiveram dois filhos;
  3. Salete dos Anjos que casou com António Dias e tiveram uma filha;          
  4. Albino Pedro que casou com Albertina Amoroso e tiveram quatro filhas.

«O meu pai era duma família muito pobre e era o mais velho de quatro irmãos. Quando tinha sete anos puseram-no logo a servir como pastor, numa casa da Vila. Diz que o patrão o mandava com o rebanho para a Serra e ele ficava por lá sozinho, a dormir no meio do gado. Diz que, para espantar o medo, se punha a cantar; que ele sempre cantou muito bem, mesmo depois de homem feito.

Quando o meu pai foi para a tropa, diz que a Alemanha declarou uma guerra muito grande aos outros países e o Afonso Costa, que era quem mandava cá em Portugal, vendeu os soldados portugueses para irem para a França.

Ele falava pouco desses tempos, mas diz que passaram por lá muita miséria, porque não havia nada que comer. Às vezes até fugiam e iam durante a noite por aquelas baixas à procura de qualquer coisa que lhes enganasse a fome; mas o mais das vezes a única coisa que conseguiam achar era uns nabos e comiam-nos mesmo crus e tudo. Mas diz que os graduados andavam bem comidos e bem bebidos. Um dia, uns mais afoitos foram espreitar a cozinha deles e viram que tinham lá de tudo, do bom e do melhor. Eles é que tiveram muito medo e não conseguiram roubar nada.

Para além da fome que passaram, o que mais lhe custou a ver naquela guerra tão feia foi os que eram feridos ou mortos ficarem ali tanto tempo ao abandono, caídos no chão, no meio da lama, e pensar que o mais certo era acontecer-lhe o mesmo a ele. Ainda me lembro de o ouvir cantar uns versos que ele tinha feito lá na França, que eram assim:

Mãezinha, que horroroso aquilo foi,

Eu lutei, é verdade, não o nego,

Todos me dizem que eu fui um herói,

Mas eu apenas fiquei cego.

 

Os gases, as granadas e os morteiros

Deixam toda a terra envolta em chama,

E os meus pobres companheiros

Envoltos em cal, sangue e lama.

Ainda hoje penso muitas vezes como é que o meu pai, que não sabia uma letra, fez assim uns versos tão lindos!

Diz que um dia houve lá um bombardeamento tão grande, perto de Lille, que só se viam as mulheres a fugirem com os filhos ao colo, ou pela mão, para se esconderem dentro duma igreja. Quando souberam, os alemães atearam fogo à igreja e morreram lá aqueles inocentes todos queimados. Contava isto sempre com a lágrima no olho e dizia que foi a maior barbaridade que um homem podia ter visto na vida.

Quando regressou da guerra, casou com uma rapariga de São Vicente que se chamava Felicidade, mas como por cá havia pouco onde ganhar a vida, foi para a Espanha trabalhar nas minas. Passado pouco tempo, recebeu lá a notícia de que a mulher tinha morrido de parto, ela e o menino. Alguns anos mais tarde casou com a minha mãe e tiveram quatro filhos.

Foi sempre muito bom pai. Muito nosso amigo, mas impunha um grande respeito e nós sabíamos que, quando dava uma ordem, só falava uma vez. Gostava de nos ver sempre asseados e rezava sempre connosco antes de comermos e de irmos para a cama.

E fez questão de nos meter a todos na escola, que era a melhor ferramenta que ele nos podia deixar; mas só eu é que aprendi alguma coisa, porque os outros meus irmãos não tinham queda para as letras. Ao meu irmão até lhe disse que, nem que lá andasse até ir para a tropa, havia de fazer, nem que fosse, a 3.ª classe; mas por fim teve que desistir. Foi o maior desgosto que lhe podiam dar.

E também era muito sério. Uma vez foi festeiro e naquele ano tinha havido aí uma invernia tão grande que o povo não tinha muito para dar para a festa. Quando chegaram ao fim das contas, os ganhos não davam para a despesa. Ele foi ter com o Senhor Vigário e pediu-lhe que perdoasse parte daquilo que pedia por ter feito a festa, mas ele disse logo que se arranjasse como quisesse, mas que não perdoava nem um tostão. O meu pai não teve mais nada, pegou numa corrente de ouro que tinha e tanto lhe custara a ganhar e vendeu-a para pagar a missa e a procissão.

Era muito trabalhador, mas naquele tempo havia pouco quem desse que fazer a um homem e ele teve que abalar outra vez para a Espanha. Ainda por lá andou uns poucos de anos, mas depois arranjou trabalho nas minas da Panasqueira e foi para lá. Ainda lá esteve sete anos, mas aquilo era um trabalho muito duro e como ele quando veio da guerra já trazia o mal dos pulmões, o pó da mina ainda lhe piorou a doença. Ainda viveu uns anos, mas sempre muito doente.

Em vida nunca lhe deram a pensão por ter andado na guerra. Só depois de morto é que a minha mãe um dia foi a Castelo Branco e, quando mostrou a caderneta dele, um senhor até lhe disse assim:

- Parece impossível como é que o seu homem com uma caderneta destas, tão limpinha, não começou logo a receber a pensão!» (testemunho da filha Maria dos Anjos).

José Nunes Caetano faleceu no dia 29 de Novembro de 1969; tinha 74 anos.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria dos Anjos)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

sábado, 16 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes

José Nunes nasceu em Ribeiro d´Eiras, no dia quatro de setembro de 1892. Era filho de António Nunes e Maria Joaquina. Como era habitual naquele tempo, começou a trabalhar muito cedo, na agricultura e como pastor.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de julho de 1914, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21. Segundo a sua folha de matrícula, era analfabeto e jornaleiro.

Embarcou para França, no dia 18 de janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 723 e a chapa de identidade n.º 9125. Desembarcou em Brest, no dia 4 de fevereiro.

Do seu boletim individual consta o seguinte:

a)   Baixa ao Hospital n.º 26, em cinco de fevereiro; alta em 20;

b)   Colocado na 1.ª Companhia com o n.º 723, em 16 de novembro de 1917;

c)   Baixa ao Hospital de Base 1, em 14 de abril de 1918; alta em 20;

d)   Baixa ao Hospital de Base 2, em 30 de maio;

e)   Em sessão de junta médica realizada em 14 de junho, foi-lhe concedida licença por 60 dias para convalescença; esta licença foi posteriormente reduzida para 30 dias;

f)     Embarcou para Portugal a bordo do navio Helenus, no dia 17 de março de 1919, e desembarcou em Lisboa a 20 do mesmo mês.

José Nunes, à direita, com dois companheiros

Passou à reserva territorial em dezembro de 1935.

Condecorações: Medalha militar de cobre comemorativa da participação de Portugal na Grande Guerra com a legenda: França-1917-1918.

Família:

José Nunes casou com Ana Maria no dia 27 de abril de 1920 e ficaram a viver na Partida, de onde era natural a esposa. Tiveram três filhos:

1.     João Nunes, que casou com Maria do Carmo e tiveram 1 filha;

2.     Maria de Jesus Nunes, que casou com Joaquim Martins e tiveram 4 filhos;

3.     Celestina Nunes, que casou com César Alves e tiveram 2 filhos.

«Quando o meu avô regressou à terra foi recebido como um herói; mas vinha tão traumatizado que não conseguia falar de outra coisa que não fosse a guerra. Todas as conversas iam dar ao mesmo: as muitas tropas do seu batalhão; os muitos homens nas trincheiras; os muitos mortos que uma vez viu espalhados pelo chão, uns sem pernas, outros sem braços, outros com a cabeça ou a barriga abertas; os que morreram quando tiveram que atravessar um rio agarrados a umas cordas, com a roupa atada ao corpo com umas correias e o pouco dinheiro que tinham, dentro da boca. Referia-se sempre a eles utilizando a expressão «Mais de mil homens!» um número que ele achava ser o maior para definir todas as atrocidades que por lá viu e dificuldades por que passou. Por causa disto puseram-lhe a alcunha de “Mil Homens” e toda a família ficou assim conhecida.

Quando andava na escola também me tratavam por “Mil Homens”. Eu ficava muito envergonhada, porque não sabia a origem do nome e achava-o muito feio. Atualmente, depois de conhecer a história que deu origem à alcunha da família, tenho o maior orgulho nela e no meu avô. (testemunho da neta Celestina Nunes)

A filha Celestina Nunes também se lembra de ouvir o pai contar que, quando chegou a Portugal, por trazer uma caderneta tão limpa, lhe quiseram dar emprego em Lisboa, mas ele não aceitou, porque o que queria era voltar para perto da família, das suas cabras e das suas hortas.

Toda a vida trabalhou na agricultura, quase sempre como jornaleiro numa casa de gente abastada da Partida. No verão raramente faltava a um quinto e no inverno fazia quase todas as campanhas da azeitona. Mas do que ele gostava mais era da sua Metanhosa, uma terra, quase brava, que ele transformou numa propriedade que era o seu orgulho e onde cultivava de tudo para a casa. Também teve quase sempre um rebanho de cabras, que era uma grande ajuda para o sustento da família.

José Nunes faleceu no dia 24 de maio de 1962. Tinha 69 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Celestina Nunes e da neta Celestina Nunes)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

sábado, 1 de julho de 2023

Mãos

 O livro Alma da Terra, do Pedro Martins, é uma obra de arte que, para lá da beleza surpreendente das fotografias publicadas, nos faz sentir a impossibilidade de, mesmo com todos os sentidos bem apurados, observamos o mundo à nossa volta nos detalhes mais interessantes.

Esta, é uma das que elegeria, se tivesse que destacar alguma, talvez porque também é a única que apresenta o elemento humano.


É a fotografia das mãos do senhor Domingos, avô do Pedro Martins, quando tinha já 100 anos; tão iguais às dos avós de muitos de nós.

E fizeram-me lembrar o poema “As Mãos” do Manuel Alegre, principalmente nestes versos:

“Com as mãos se rasga o mar.

Com as mãos se lavra.

Não são de pedra estas casas,

Mas de mãos.

(…)  

E cravam-se no tempo como farpas

As mãos que vês nas coisas transformadas.”

Deve ser por isso que, com frequência, quando olho para tantas coisas à minha volta, me lembro ou ponho a imaginar as mãos calejadas dos artistas que as fizeram.

M.L. Ferreira

NOTA: O Pedro Martins é um fotojornalista, nascido no Vale de Figueiras

domingo, 4 de junho de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Marques Neto

José Marques Neto nasceu em São Vicente da Beira, no dia 14 de agosto de 1892. Era filho de António Marques e Maria Neta, proprietários.

Assentou praça no dia 12 de julho de 1912 e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, em 14 de janeiro de 1913. De acordo com a sua folha de matrícula, sabia ler e escrever corretamente na altura da incorporação e tinha a profissão de ferrador. Completou a recruta em 3 de abril e regressou a São Vicente da Beira.

Foi mobilizado para a guerra e apresentou-se novamente, em 5 de maio de 1916, para integrar o CEP. Embarcou para França no dia 20 de janeiro de 1917. Fazia parte do Comboio Automóvel, 3.ª Secção, do Regimento de Infantaria 21, com o posto de soldado, com número 143 e a placa de identidade n.º 19703 (alterada posteriormente para 20483). Foi colocado no 1.º Grupo Automóvel com as funções de motorista.

Do seu boletim individual consta o seguinte:

a)  Castigado pelo comandante da companhia, com 5 dias de prisão disciplinar, em julho de 1917, por ter discutido com um camarada, tendo-o insultado com palavras obscenas e atirado com um martelo que ia atingindo um militar do mesmo escalão;

b)  Seguiu em diligência para a direção do comboio, em 7 de agosto de 1917;

c)  Colocado no 1.º Grupo Automóvel (1.º escalão), em 2 de abril de 1918, onde ficou com o número 212;

d)  Regressou a Portugal, no dia dois de maio de 1918.

Passou à reserva ativa no dia 11 de abril de 1928 e à reserva territorial em 31 de dezembro de 1933.

Família:

Após ter regressado à terra, José Marques casou com Maria do Nascimento Ferreira, também natural de São Vicente da Beira, no dia 15 de setembro de 1920, e tiveram dois filhos:

1.     José Maria Marques Neto que casou com Maria Rosa Sousa e tiveram 1 filha;

2.     António Marques que casou com Maria Alice Lourenço e tiveram 2 filhas.

Antes de partir para França, José Marques tinha a profissão de ferreiro. Terá depois trabalhado também como carpinteiro e agricultor, inicialmente na Casa Visconde de Tinalhas e depois nas terras que foi adquirindo e herdou dos pais. Foi produtor e negociante de azeite e, durante algum tempo, empreiteiro de obras públicas. Em sociedade com o irmão António Neto, terá sido responsável pela construção do troço da Estrada Nova, entre a Oriana e o Bairro de São Francisco.

Foi mesário da Santa Casa da Misericórdia de São Vicente, exercendo os cargos de secretário e tesoureiro em vários mandatos.

Após a morte da esposa, em 1973, José Marques ainda permaneceu alguns anos em São Vicente, mas, já mais idoso, foi morar para o Fundão, onde viveu com a família do filho António. Foi lá que faleceu no dia 9 de maio de 1994. Tinha quase 102 anos.

(Pesquisa feita com a colaboração da neta Filomena Maria Marques)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra