sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Gente Nossa

Pe. Estêvão Dias Cabral

Na sequência da publicação do livro da jornalista Lídia Barata, pela Alma Azul, sobre este nosso padre-engenheiro (era filho de Teodoro Faustino Dias, de Tinalhas,e de Maria Cabral de Pina, do Violeiro, além de ter falecido na Vila, em 1811), investiguei a sua vida para fazer um podcast para a Rádio Castelo Branco e encontrei este PDF que não resisto a partilhar convosco.

Leiam-no aqui: https://www.academia-engenharia.org/sites/default/files/estevao_cabral_1.pdf

José Teodoro Prata

sábado, 23 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes Caetano

José Nunes Caetano nasceu no Casal da Serra, a 22 de fevereiro de 1895. Era o filho mais velho de Pedro Caetano e Joaquina Nunes, cultivadores.

Assentou praça no dia 19 de junho de 1915 e foi incorporado no dia 14 de janeiro de 1916, no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21 de Castelo Branco. Era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.

Pronto da instrução em 29 de abril de 1916, embarcou para França no dia 21 de janeiro de 1917, integrado na 6.ª Companhia do 2.º Regimento de Infantaria 21, com o número 507, placa de identificação n.º 9920.

No seu boletim individual de militar do CEP consta o seguinte:

a)    Baixa hospitalar em 22 de abril de 1917, com alta em 22;

b)    Diligência para o posto de retaguarda, em 20 de janeiro de 1918, diligência para a frente em 5 de fevereiro;

c)    Baixa à ambulância n.º 4 em 13 de outubro de 1918; alta em 18, seguindo para a sua unidade;

d)    Regressou a Portugal no dia 5 de março de 1919, indo domiciliar-se no Casal da Serra.

Passou à reserva ativa em 11 de Abril de 1928 e à reserva territorial em 31 de Dezembro de 1936.

Família:

José Caetano casou com Felicidade da Conceição, no dia 26 de janeiro de 1925, mas a esposa morreu de parto no dia 1 de Novembro do mesmo ano. Voltou a casar com Ana dos Anjos, em 23 de Fevereiro de 1930, e tiveram quatro filhos:

  1. Antónia dos Anjos que casou com Albertino Barroso e tiveram 3 filhos;
  2. Maria dos Anjos que casou com Joaquim Caio e tiveram dois filhos;
  3. Salete dos Anjos que casou com António Dias e tiveram uma filha;          
  4. Albino Pedro que casou com Albertina Amoroso e tiveram quatro filhas.

«O meu pai era duma família muito pobre e era o mais velho de quatro irmãos. Quando tinha sete anos puseram-no logo a servir como pastor, numa casa da Vila. Diz que o patrão o mandava com o rebanho para a Serra e ele ficava por lá sozinho, a dormir no meio do gado. Diz que, para espantar o medo, se punha a cantar; que ele sempre cantou muito bem, mesmo depois de homem feito.

Quando o meu pai foi para a tropa, diz que a Alemanha declarou uma guerra muito grande aos outros países e o Afonso Costa, que era quem mandava cá em Portugal, vendeu os soldados portugueses para irem para a França.

Ele falava pouco desses tempos, mas diz que passaram por lá muita miséria, porque não havia nada que comer. Às vezes até fugiam e iam durante a noite por aquelas baixas à procura de qualquer coisa que lhes enganasse a fome; mas o mais das vezes a única coisa que conseguiam achar era uns nabos e comiam-nos mesmo crus e tudo. Mas diz que os graduados andavam bem comidos e bem bebidos. Um dia, uns mais afoitos foram espreitar a cozinha deles e viram que tinham lá de tudo, do bom e do melhor. Eles é que tiveram muito medo e não conseguiram roubar nada.

Para além da fome que passaram, o que mais lhe custou a ver naquela guerra tão feia foi os que eram feridos ou mortos ficarem ali tanto tempo ao abandono, caídos no chão, no meio da lama, e pensar que o mais certo era acontecer-lhe o mesmo a ele. Ainda me lembro de o ouvir cantar uns versos que ele tinha feito lá na França, que eram assim:

Mãezinha, que horroroso aquilo foi,

Eu lutei, é verdade, não o nego,

Todos me dizem que eu fui um herói,

Mas eu apenas fiquei cego.

 

Os gases, as granadas e os morteiros

Deixam toda a terra envolta em chama,

E os meus pobres companheiros

Envoltos em cal, sangue e lama.

Ainda hoje penso muitas vezes como é que o meu pai, que não sabia uma letra, fez assim uns versos tão lindos!

Diz que um dia houve lá um bombardeamento tão grande, perto de Lille, que só se viam as mulheres a fugirem com os filhos ao colo, ou pela mão, para se esconderem dentro duma igreja. Quando souberam, os alemães atearam fogo à igreja e morreram lá aqueles inocentes todos queimados. Contava isto sempre com a lágrima no olho e dizia que foi a maior barbaridade que um homem podia ter visto na vida.

Quando regressou da guerra, casou com uma rapariga de São Vicente que se chamava Felicidade, mas como por cá havia pouco onde ganhar a vida, foi para a Espanha trabalhar nas minas. Passado pouco tempo, recebeu lá a notícia de que a mulher tinha morrido de parto, ela e o menino. Alguns anos mais tarde casou com a minha mãe e tiveram quatro filhos.

Foi sempre muito bom pai. Muito nosso amigo, mas impunha um grande respeito e nós sabíamos que, quando dava uma ordem, só falava uma vez. Gostava de nos ver sempre asseados e rezava sempre connosco antes de comermos e de irmos para a cama.

E fez questão de nos meter a todos na escola, que era a melhor ferramenta que ele nos podia deixar; mas só eu é que aprendi alguma coisa, porque os outros meus irmãos não tinham queda para as letras. Ao meu irmão até lhe disse que, nem que lá andasse até ir para a tropa, havia de fazer, nem que fosse, a 3.ª classe; mas por fim teve que desistir. Foi o maior desgosto que lhe podiam dar.

E também era muito sério. Uma vez foi festeiro e naquele ano tinha havido aí uma invernia tão grande que o povo não tinha muito para dar para a festa. Quando chegaram ao fim das contas, os ganhos não davam para a despesa. Ele foi ter com o Senhor Vigário e pediu-lhe que perdoasse parte daquilo que pedia por ter feito a festa, mas ele disse logo que se arranjasse como quisesse, mas que não perdoava nem um tostão. O meu pai não teve mais nada, pegou numa corrente de ouro que tinha e tanto lhe custara a ganhar e vendeu-a para pagar a missa e a procissão.

Era muito trabalhador, mas naquele tempo havia pouco quem desse que fazer a um homem e ele teve que abalar outra vez para a Espanha. Ainda por lá andou uns poucos de anos, mas depois arranjou trabalho nas minas da Panasqueira e foi para lá. Ainda lá esteve sete anos, mas aquilo era um trabalho muito duro e como ele quando veio da guerra já trazia o mal dos pulmões, o pó da mina ainda lhe piorou a doença. Ainda viveu uns anos, mas sempre muito doente.

Em vida nunca lhe deram a pensão por ter andado na guerra. Só depois de morto é que a minha mãe um dia foi a Castelo Branco e, quando mostrou a caderneta dele, um senhor até lhe disse assim:

- Parece impossível como é que o seu homem com uma caderneta destas, tão limpinha, não começou logo a receber a pensão!» (testemunho da filha Maria dos Anjos).

José Nunes Caetano faleceu no dia 29 de Novembro de 1969; tinha 74 anos.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria dos Anjos)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Os nossos avós eram cientistas


Andei a semear nabos e fi-lo à maneira antiga; empalhados com caruma (na minha infância também usávamos a palha das enxergas, pois havia muita, da mudança que tínhamos feito em agosto).
Esta maneira antiga de cultivar previne a erosão dos terrenos, pelo vento e pela águas das chuvadas torrenciais, e conserva a humidade da terra, necessária à germinação. E ainda protege dos pardais as plantinhas acabadas de nascer,
Este é um saber de experiência feito, pois, como escreveu Duarte Pacheco Pereira, um dos grandes navegadores das viagens marítimas dos portugueses no século XV e provável descobridor do Brasil, a experiência é a mãe de todas as coisas.
Por estes dias também se tem andado em volta dos mostos das uvas, a observar a sua fermentação, isto é, a transformação dos açúcares das uvas em álcool. E para alguns, a seguir virá a produção da aguardente, em que a parte líquida dos resíduos da produção do vinho passará do estado líquido ao gasoso, sofrendo de seguida uma condensação para voltar ao estado líquido.
Tudo isto é ciência. Estes primeiros dias mais frescos, depois de tantos dias quentes, inspiravam os nossos mais velhos,  preocupados em preparar-se convenientemente para a longa noite do inverno.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Atafona

Na viagem que fiz, em julho, ao concelho do Sabugal, deparei-me com esta pedra de atafona, na povoação de Aldeia da Ponte. É utilizada como adorno, à porta de casa.
É de pequenas dimensões (cerca de 50/60 centímetros de diâmetro, incluindo o rebordo), embora na foto pareça maior. 
Uma atafona era um moinho manual, a sangue, isto é, movido à força de braços ou por animais. Eram utilizados nas zonas mais afastadas dos cursos de água, cuja corrente permitia a moagem a partir da força da água. Foram abundantes até surgir a moagem industrial. Algumas casas com mais posses tinham um para suprir as suas necessidades de farinha. No século XVIII, havia vários em Tinalhas, que moíam para a população.
Esta seria a pedra inferior, pois tem um corte no rebordo (em cima, o corte da esquerda é o rebordo partido) para sair a farinha. Esta pedra inferior estava fixa. A pedra de cima estaria presa à de baixo pelo eixo que existiria no buraco do centro. Na pedra de cima, talvez ligado a este eixo ou independente, haveria um pau para fazer rodar a pedra, manualmente.
Na área do nosso antigo concelho, ao engenho para moer azeitona, utilizando a força animal, chamava-se zangarra.
Segundo a Wikipédia, «Atafona, do árabe at-tahunâ, «moinho», é um tipo de mecanismo manual ou movido por força animal[1] destinado a transformar o andamento do animal em movimento rotativo para mover moinhosengenhos de açúcar, engenhos de ralar mandioca, engenhos de pastel, bombas para elevação de água, teares e outros equipamentos. Para além de seres humanos, foram utilizados para mover atafonas, entre outros animais, cavalosburroscamelos, bovinos, carneiros e cães.»

José Teodoro Prata

sábado, 16 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes

José Nunes nasceu em Ribeiro d´Eiras, no dia quatro de setembro de 1892. Era filho de António Nunes e Maria Joaquina. Como era habitual naquele tempo, começou a trabalhar muito cedo, na agricultura e como pastor.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de julho de 1914, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21. Segundo a sua folha de matrícula, era analfabeto e jornaleiro.

Embarcou para França, no dia 18 de janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 723 e a chapa de identidade n.º 9125. Desembarcou em Brest, no dia 4 de fevereiro.

Do seu boletim individual consta o seguinte:

a)   Baixa ao Hospital n.º 26, em cinco de fevereiro; alta em 20;

b)   Colocado na 1.ª Companhia com o n.º 723, em 16 de novembro de 1917;

c)   Baixa ao Hospital de Base 1, em 14 de abril de 1918; alta em 20;

d)   Baixa ao Hospital de Base 2, em 30 de maio;

e)   Em sessão de junta médica realizada em 14 de junho, foi-lhe concedida licença por 60 dias para convalescença; esta licença foi posteriormente reduzida para 30 dias;

f)     Embarcou para Portugal a bordo do navio Helenus, no dia 17 de março de 1919, e desembarcou em Lisboa a 20 do mesmo mês.

José Nunes, à direita, com dois companheiros

Passou à reserva territorial em dezembro de 1935.

Condecorações: Medalha militar de cobre comemorativa da participação de Portugal na Grande Guerra com a legenda: França-1917-1918.

Família:

José Nunes casou com Ana Maria no dia 27 de abril de 1920 e ficaram a viver na Partida, de onde era natural a esposa. Tiveram três filhos:

1.     João Nunes, que casou com Maria do Carmo e tiveram 1 filha;

2.     Maria de Jesus Nunes, que casou com Joaquim Martins e tiveram 4 filhos;

3.     Celestina Nunes, que casou com César Alves e tiveram 2 filhos.

«Quando o meu avô regressou à terra foi recebido como um herói; mas vinha tão traumatizado que não conseguia falar de outra coisa que não fosse a guerra. Todas as conversas iam dar ao mesmo: as muitas tropas do seu batalhão; os muitos homens nas trincheiras; os muitos mortos que uma vez viu espalhados pelo chão, uns sem pernas, outros sem braços, outros com a cabeça ou a barriga abertas; os que morreram quando tiveram que atravessar um rio agarrados a umas cordas, com a roupa atada ao corpo com umas correias e o pouco dinheiro que tinham, dentro da boca. Referia-se sempre a eles utilizando a expressão «Mais de mil homens!» um número que ele achava ser o maior para definir todas as atrocidades que por lá viu e dificuldades por que passou. Por causa disto puseram-lhe a alcunha de “Mil Homens” e toda a família ficou assim conhecida.

Quando andava na escola também me tratavam por “Mil Homens”. Eu ficava muito envergonhada, porque não sabia a origem do nome e achava-o muito feio. Atualmente, depois de conhecer a história que deu origem à alcunha da família, tenho o maior orgulho nela e no meu avô. (testemunho da neta Celestina Nunes)

A filha Celestina Nunes também se lembra de ouvir o pai contar que, quando chegou a Portugal, por trazer uma caderneta tão limpa, lhe quiseram dar emprego em Lisboa, mas ele não aceitou, porque o que queria era voltar para perto da família, das suas cabras e das suas hortas.

Toda a vida trabalhou na agricultura, quase sempre como jornaleiro numa casa de gente abastada da Partida. No verão raramente faltava a um quinto e no inverno fazia quase todas as campanhas da azeitona. Mas do que ele gostava mais era da sua Metanhosa, uma terra, quase brava, que ele transformou numa propriedade que era o seu orgulho e onde cultivava de tudo para a casa. Também teve quase sempre um rebanho de cabras, que era uma grande ajuda para o sustento da família.

José Nunes faleceu no dia 24 de maio de 1962. Tinha 69 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Celestina Nunes e da neta Celestina Nunes)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Estou de volta

Andei por fora, não demasiado tempo, mas o suficiente para me desligar. Por lá apagou-se-me o telemóvel e não tinha comigo nem me lembrava do código para o voltar a ligar. Uma sorte! Li o Grande Sertão: Veredas, do João Guimarães Rosa, um livro apaixonante mas difícil, pois está escrito na linguagem do sertão brasileiro.

Ainda por cima estou a gozar os primeiros dias da minha reforma e supreendentemente, até para mim, não me apetece fazer rigorosamente nada. Eu que, segundo me dizem, ando sempre a correr.

A exceção é a agricultura, mas tenho de ir com calma, pois fui operado a uma hérnia há meses e tenho uma tendinite de um enorme trambolhão que dei em abril.

Já semeei os nabos nos Cebolais e fui ver como paravam as modas lá pelo Ribeiro Dom Bento. As abelhas estão catitas, mas as figueiras cheias de figos podres nos ramos e no chão. Valeram-me as passas que a São e o Cassiano apanharam antes de começar a chover. A macieira grande do lameiro tinha as maçãs todas no chão, podres, uma pena. Surpreendentemente, colhi boas uvas de mesa, o que não era costume, pois um texugo encarregava-se delas todos os anos. Fiquei triste por, eventualmente, ter perdido esse amigo.

Passei pela Tapada e bebi um copo com o João Candeias, que andava nos preparativos para a vindima. Nem eu nem ele nos lembrávamos de um início de setembro tão chuvoso.

Ando pr'aqui a matutar num projeto que pode vir a ser interessante. Darei notícias dele, em breve.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Um padre visionário

 Estive há dias na apresentação do livro «Estêvão Dias Cabral» de Lídia Barata, jornalista do Reconquista. É um livro pequeno, quase todo de investigação sobre os trabalhos na área da engenharia hidráulica em que Estêvão Dias Cabral participou (ou apenas sonhou...), mas que revela muita pesquisa.

É o caso do “capítulo” A PROJEÇÃO DE UMA FÁBRICA DE PAPEL NA BEIRA BAIXA”, que achei extraordinário, apesar de nunca se ter concretizado:

«Na Beira Baixa, seu berço, Estêvão Dias Cabral também estudou com detalhe as potencialidades que a Serra da Gardunha oferecia para a instalação de uma fábrica de papel, projeto que nunca vingou e nunca saiu do seu pensamento técnico nem do papel, sendo à época, seguramente, visto como visionário e arrojado, ou até mesmo megalómano.

Além do potencial em termos de matéria prima, o seu foco terá incidido na quantidade de nascentes de água das quais a Gardunha é fiel guardiã, ou não fosse a água um dos elementos fundamentais no fabrico de papel.

Além de científico, o seu pensamento também se refletia no campo económico, considerando que com este projeto havia potencial para Portugal deixar de importar papel e, além de colmatar as necessidades de consumo interno, poderia até vendê-lo a outros países.

No seu manuscrito “Memória sobre o Papel”, Estêvão Dias Cabral realça a importância da oferta que cada país tem para a criação da sua imagem. “Paciência, se somos obrigados a comprar em casa alheia o que a nossa terra não dá”, referindo-se a produções naturais, mas no que toca à manufatura, o que depende da arte e do engenho do homem, o Jesuíta considera que “ muitas vezes a boa indústria converte miséria em felicidade e pobreza em riqueza”. Pensamento assente no facto de, à época, Portugal desembolsar anualmente “duzentos mil cruzados” na compra de papel, sobretudo a Génova e Holanda. Cabral reitera assim que não tínhamos necessidade de comprar um produto que podíamos vender. E fundamenta e explica porquê.

E foi como “boa indústria” que classificou a fábrica de papel que projetou para a Beira Baixa. Precisava apenas de garantir que os três pilares fundamentais estavam cumpridos, nomeadamente trapos de linho (mas também papel usado e de livros velhos), água e uma máquina para transformar a mistura dos outros dois elementos.

Certo já de que tudo se aproveita e transforma, considerava que seria fácil, com uma pequena compensação financeira, convencer as criadas das casas abastadas e os mais pobres sem ocupação, a recolher todo este tipo de material, fosse na casa dos patrões, fosse nas ruas. Isto seria, na sua perspetiva, um pequeno investimento que geraria um grande retorno. Introduzia à época o conceito daquilo a que hoje chamamos reciclagem.

Quanto à água, que defendia ter de ser “clara, abundante e com queda tal que possa voltar rodas e mover máquinas”, achou-a em abundância num passeio no Outono de 1790 pela sua região natal.

Num local que designou por serra de Alpedrinha, próximo da localidade de Louriçal do Campo, Torre e Casal da Serra, a água do Ocreza servia perfeitamente o propósito, tal como a proximidade das aldeias, que poderiam fornecer a mão de obra necessária. E mais uma vez, olhando à redução dos custos, apontava que os trabalhos mais leves podiam ser feitos por mulheres, rapazes e raparigas, que ganhavam menos que os “dois tostões” diários pagos aos homens.

Este local ficava, como sublinhou, a ”quatro léguas de Castelo Branco e a sete ou oito de Vila Velha”, Vila Velha de Ródão que, no seu entender, seria o local ideal para fazer escoar o produto final, já que beneficiava da navegabilidade do Tejo. Escoamento que também podia ser feito por Abrantes, em alternativa. A facilidade dos acessos era um fator relevante para o seu estudo. Faltava o terceiro pilar, uma máquina que poderia ser como as referenciadas na literatura francesa, onde esta indústria estaria mais avançada, mas também sugeria que se pudesse visitar uma fábrica que, à data, já laborava na Lousã. Em 1716 a qualidade do Engenho de Papel do Penedo, valia-lhe o prestígio de fornecer a tipografia da Companhia de Jesus de Coimbra, vindo depois a juntar à sua lista de clientes a Tipografia Académica e a Casa da Moeda. De qualquer forma, esta tipografia da Lousã seria de menor dimensão que a projetada por Cabral para a Gardunha.

(…)

Na Gardunha abundava a pedra para facilitar a construção do edificado. Carecia de madeira, sempre alvo fácil de incêndios, mas poderia ser fornecida pelas matas de castanho de Alcongosta ou pelo carvalho do Souto da Casa, madeiras nobres que considerava até poderem ser usadas na construção de navios, pela sua qualidade.

Estêvão Dias Cabral defendia que, havendo método, o papel poderia dar ao Estado o mesmo lucro que este já retirava dos lanifícios da Covilhã. Uma coisa era certa na sua cabeça, a beira baixa reunia todas as condições para acolher a “melhor fábrica de papel do mundo”. 

M. L. Ferreira

NOTA: Para quem possa não saber, Estêvão Dias Cabral, filho de Theodoro Faustino Dias, de Tinalhas, e Maria Cabral de Pina, do Violeiro, foi padre jesuíta e engenheiro hidráulico. Nasceu em Tinalhas, a três de fevereiro de 1734, e faleceu em São Vicente, no dia um de fevereiro de 1811.