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quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A Matilha dos Nove

«Minério na Paradanta? Ná… Por modos passou por lá muito, que no tempo da guerra havia muita candonga e contam-se algumas histórias. Esta foi logo no ano a seguir a eu ter saído da escola; vai lá um bom par d’anos. Já andava na resina e um dia cheguei a casa, já noite, e era um reboliço tão grande na terra que só visto: tinha vindo a Guarda e levado nove homens, todos algemados, para Castelo Branco. Só depois é que se soube o que tinha sucedido:
Na véspera, à tardinha, tinham chegado à entrada da Paradanta quatro homens, cada um com sua saca às costas. Chegaram lá a um certo sítio, apousaram as sacas e esconderam-nas debaixo dum aqueduto, tapadas com mato. Lá terão feito as contas e dois dos homens abalaram pelo mesmo caminho d’onde tinham vindo, os outros dois ficaram assentados ali ao pé, a fumar um cigarro. Passado um bocado também se meteram ao caminho, p’ros lados do Vale D’Urso. Por modos foram a comer a uma casa de pasto que por lá havia naquele tempo.    
Tiveram azar porque uma mulher que morava numa casa lá mais adiante tinha visto chegar aqueles estranhos e ficou à espreita, desconfiada, a ver o que é que eles faziam. Quando os viu abalar saiu porta fora e foi ver o que é que as sacas tinham. Assim que viu como é que elas estavam cosidas e o peso que tinham, desconfiou logo do que é que se tratava. Ainda quis pegar numa, mas não foi capaz de poder com ela. Foi então chamar um dos filhos que já tinha vindo da escola, e os dois lá conseguiram carregar uma das sacas até casa.
Puseram-se a fazer contas: não seriam menos de 50 quilos de minério, a um conto de réis cada um, dava cinquenta contos. Estavam ricos!
O cachopito ficou tão contente que, apesar da mãe lhe ter dito que não dissesse nada a ninguém, foi para a rua e contou logo ao primeiro que encontrou, o achado que tinham feito. E que no mesmo lugar ainda lá tinham ficado mais três sacas.
A notícia chegou depressa aos ouvidos do taberneiro que esfregou as mãos de contente e, juntamente com mais oito que àquela hora estavam a fazer sociedade na taberna, foram logo a correr para o sítio onde diziam que estavam as sacas.
Quando lá chegaram já lá estavam os outros dois homens, sentados à entrada do viaduto, ao pé da mercadoria. O taberneiro pegou na arma que trazia à cintura, deu dois tiros para o ar e berrou:
- Mãos ao ar e ala daqui p’ra fora!
Os outros nem se mexeram.
- Mas que mal é que tem estarmos aqui um pouco a descansar? Os caminhos não são públicos?
- Já disse o que tinha a dizer! Os primeiros foram p’ro ar, mas os próximos vão-vos direitos aos cornos!
Ao ouvirem isto, os dois homens levantaram-se e desataram a fugir estrada fora. Só devem ter parado já longe dali.
Por modos eram do Juncal, e eram contrabandistas de minério, mas deviam ter as costas bem quentes que ao outro dia apareceram na Paradanta uns poucos de guardas da GNR e, quem foi, quem não foi, conseguiram levar para Castelo Branco a matilha completa.
Passaram a noite nos calaboiços da prisão à espera de serem levados ao juiz no dia a seguir. Mas o taberneiro que é quem tinha sido o cabecilha daquilo, durante a noite começou com falinhas mansas para os outros: que podiam dizer ao juiz que ele não tinha tido culpa nenhuma; que só tinha ido apartar porque senão armava-se ali uma grande zaragata; que uma pessoa da categoria dele era uma vergonha se fosse presa e ficava com a vida desgraçada para sempre; e mais isto, e mais aquilo…
- Então vossemecê é que nos meteu nesta alhada toda e é que deu os tiros, e agora quer pôr-se de fora?! Não senhora; ou vamos todos p´ra cadeia ou não vai nem um!
- Se me safarem, prometo que dou um conto de réis a cada um de vós.
Olharam uns para os outros e concordaram.
- Assim é que é falar! Esteja descansado que a gente faz como vossemecê diz.
Naquele tempo um conto de reis era muito dinheiro, que um homem por dia não ganhava mais que sete e quinhentos; e não eram todos…
Foi solto o taberneiro e os outros ficaram presos durante um mês. Quando saíram vinham todos contentes e foram logo a ver se recebiam a paga pela mentira que tinham dito ao juiz, mas o outro negou-se. E que remédio tiveram senão calar-se, com medo, que ele era o Cabo d’Ordens e se os tomava de ponta, estavam desgraçados…
Ficaram conhecidos pela “Matilha dos Nove” para o resto da vida. E o Cabo d’Ordens não escapou da fama, mas nunca se provou…».

Nota: Esta história foi-me contada pelo Ti Chico quando, a propósito da história “As Mulheres da Paradanta” do Joaquim Bispo, lhe perguntei se era verdade que havia volfrâmio na terra dele. 

M. L. Ferreira

sábado, 19 de agosto de 2017

O apocalipse


São Vicente da Beira, 13 de agosto, 10 horas da manhã.
A foto, do André Varanda, parece uma das imagens do início do filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola, ao som dos The Doors com a canção The End.


José Teodoro Prata
Foto de André Varanda

sábado, 5 de agosto de 2017

A poesia de Roque Lino




O TOQUE DOS SINOS

São tantos os toques que ecoam
Naqueles sinos da aldeia
Que até conseguiram cantar-me
Na data do meu nascimento
E também celebraram datas
Que a memória vai recordando
Como aquela do casamento.
Sentinela atenta aos fogos
Que crepitavam nos pinhais,
Os sinos eram alvorada,
E convocação para a missa
E chamamento à oração.
Cantavam as Avé Marias
Como o apelo às novenas
E acompanhavam procissões
A par do estralejar dos foguetes
Que explodiam preces no céu.
Curvados sob as enxadas
Vinham camponeses exaustos
E arrastavam-se almocreves
Ao toque do recolher
Que aqueles sinos tocavam
Com a perfeição de um clarinete.
Quero continuar a ouvir
Todas essas badaladas
Já que enquanto as sentir
Não oiço o toque final
Que nunca ouvirei afinal
Porque o sino é festa e é vida.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Poesia, amanhã


Reconquista, 3 de agosto de 2017

A apresentação de um livro, um concerto da banda, um espetáculo do rancho, um desfile dos bombos ou uma exposição são momentos de comunhão de afetos (e pouco mais que isso).
Alguém partilha com o resto da comunidade o que lhe deu tanto gosto a preparar, algo de si que oferece aos outros.
Por isso é muito bom termos o Roque Lino connosco. Vem partilhar a sua poesia, algo que para mim é das coisas mais íntimas que há. 
Apelo à participação dos que visitarem este blogue: vamos todos estar presentes!
E nesse gesto nos assumimos como comunidade.

José Teodoro Prata

sábado, 8 de julho de 2017

D. Sancho I

Os sinos do mosteiro de Santa Cruz dobram, dentro do templo encontra-se uma urna que contém o cadáver do rei Sancho I de Portugal, colocada em cima de uma essa ricamente ornada, ladeada por seis tocheiros, três de cada lado.
  Frades agostinianos com seus hábitos negros cantam em cantochão salmos fúnebres, imploram ao Senhor o perdão dos seus pecados e receba sua alma na morada eterna do Céu
  O largo fronteiro ao mosteiro está apinhado de gente que reza e chora a morte do bom rei. Sofria de uma doença terrível que grassava em Portugal e em toda a Europa, a lepra.
  Não poupava ninguém, pobre ou rico.
  D. Sancho I morreu desse terrível mal, a igreja considerava castigo de Deus.
  Findas as exéquias fúnebres, o cadáver foi colocada num mausoléu, perto do túmulo de seu pai D. Afonso Henriques.
  Tinha 56 anos quando naquele dia 26 de Março do ano 1211 entregou a alma ao Criador.
  A vida quotidiana decorria com normalidade em Sanctus Vincencii; os servos trabalhavam para os senhores, donos das melhores terras, alguns tinham que fazer corveio, que consistia em trabalhar gratuitamente um ou dois dias da semana para o senhor dono da terra, os que moravam nas Vinhas, na Fonte da Portela, eram livres de qualquer encargo perante o senhor feudal, dai haver alguns renitentes…
  Alguns dias após a morte do rei, um arauto entrou em Sanctus Vincencci, contactou os Homens Bons, estes, imediatamente mandaram tocar o sino da igreja.
  Mensageiro anunciou a todos os moradores o trágico desfecho.
O povo chorou amargamente a morte de D. Sancho, prior rezou ofícios divinos pela alma de sua majestade.
  Rei morto, rei posto; D. Afonso II seu filho, sucedeu-lhe no trono.
  D. Sancho nasceu no dia 11 de Novembro do ano 1154, ”dia de São Martinho”; por esse motivo deram-lhe o nome Martinho.  
  Henrique, seu irmão, “morreu criança”; por morte deste, o herdeiro da coroa passou a ser Martinho. Os nobres achavam que este nome não era o mais apropriado, passou a chamar-se Sancho Afonso.
  Casou D. Sancho I com Dª Dulce de Aragão no ano 1174 de quem teve dez filhos: D. Afonso; D. Pedro; D. Fernando; D. Henrique; D. Raimundo; D.ª Berengária, que foi rainha da Dinamarca; D.ª Branca e as beatas Teresa; Mafalda e Sancha.
 Para além dos filhos legítimos D. Sancho teve alguns filhos naturais: D. Martim Sanches e D.ª Urraca Sanches; filhos de D.ª Maria Aires de Fornelos.
  De D.ª Maria Pais Ribeira teve seis filhos: D. Rodrigo; D. Gil; D. Nuno; D. Maior; D.ª Constança; D.ª Teresa.

  O campo, nomeadamente as Vinhas, Fonte da Portela, eram lugares onde ainda moravam muitas pessoas; certo dia, ouvem-se gritos aflitivos, vinham do lado da Oles.
  Fujam… vêm aí os sarracenos; matam e queimam tudo por onde passam!
  Pedro Afonso homem possante, valente, imediatamente reúne malados, peões, cavaleiros vilãos…armados de chuços, vão ao encontro dos sarracenos; estes vendo que não conseguiam vencer os habitantes das Vinhas e Fonte da Portela fugiram em direcção à campina dilatada de Vila Franca da Cardosa.
  D. Afonso I já tinha atribuído nome à nova povoação que se encontrava mais acima no sopé da serra, as brenhas, os ursos e outros animais por onde passavam devastavam… eram como o inimigo quando fazia algum fossado.
  Os moradores aos poucos foram deixando o campo, apesar de as terras serem mais fáceis de arrotear, as formigas e a falta de água, obrigava-os a deixarem suas cabanas.
  Os vizinhos, à medida que iam chegando a Sactus Vincencii, eram logo ajudados pelos que já lá moravam, todos juntos levantavam paredes e nascia mais uma casa; as mulheres pariam, o povo rezava na pequena igreja, até que um dia o rei D. Sancho querendo povoar o interior do reino convidou gente da Flandres, da Borgonha… a viverem em Portugal.
  Sanctus Vincencii, já era uma terra importante, o rei sempre preocupado com a governança, defendendo o comércio e fomentando a criação de riqueza atribui forais a muitas terras das beiras.
  Covilhã, 1186; Viseu, 1187; São Vicente 1195; Guarda 1199…
  D. Sancho I não se preocupou somente com a criação de concelhos atribuindo forais, também era meticuloso na administração dos dinheiros públicos, deixou muitos morabitinos nas arcas.
 
  Naquele dia pelas ruas da vila ouviam-se pandeiros, guizos, castanholas; eram dois jograis que anunciavam um folguedo no terreiro, vinham acompanhados por uma amásia e uma soldadeira.
  Saltério, viola de arco e outros instrumentos eram tocados pelos jograis, o povo acorreu em massa, as mulheres dançavam enquanto uma tocava o pandeiro e a outra, castanholas...
  O largo estava todo iluminado com archotes e banhado pela lua cheia; compareceram todos os moradores, que assistiram ao espectáculo com alegria.
     
A do mui bom parecer
mandou lo adufe tanger
louçana, d`amores moir`eu

  A hora ia adiantada, mas ainda houve tempo para ouvirem um jogral declamar uma trova da autoria do rei D. Sancho I; foi um grande protector de trovadores e jograis.
Vamos lá então:
Ai eu, coitada, como vivo em gram cuidado
Por meu amigo, que hei alongado!
Muito me tarda
O meu amigo na Guarda!

Ai eu, coitada, como vivo em gram desejo
Por meu amigo, que tarda e nem vejo!
Muito me tarda!
O meu amigo na Guarda!

  Quando os jograis deram por terminada a função, todos foram para a deita satisfeitos.

  Em nome da Santa e indivisa Trindade, Pai, Filho; Espírito Santo, ámen. Eu, rei Afonso, filho do rei Sancho, juntamente com minha mãe rainha Dulce, e ao mesmo tempo com G. Martins, prior de São Jorge e todo o seu convento e com frei João de Albergaria de Poiares, queremos restaurar e povoar o lugar de São Vicente, damos e concedemos o foro e costumes da cidade de Évora a todos, tanto presentes como futuros que lá quiserem habitar…
 (…) Se alguém quiser rasgar este facto nosso seja amaldiçoado de Deus.
Concedemos a todo o cristão, embora servo, desde que habite durante um ano em São Vicente, seja livre e ingénuo, ele e toda a sua progénie…

  Resumindo: uma vila do tempo da fundação de Portugal, e nunca houve ninguém que tenha atribuído o nome de uma rua, largo ou praça ao rei Sancho I ou erguer-lhe um busto. Nunca é tarde para corrigir…
Fiquem bem!

Notas:
Essa: Estrado onde se coloca o caixão com o cadáver durante as cerimónias fúnebres
Cantochão: Canto da igreja católica, canto gregoriano
Malado: Pessoa sujeita a encargos e serviços dos senhores feudais
Peão: Soldado de Infantaria; plebeu
Jogral: Músico
Amásia: Amante
Soldadeira: Mulher que serve por soldada, criada
Saltério: Instrumento musical de cordas
Louçana: Louçã
Hei alongado: Tenho ausente

Pesquisa:
História de Portugal, Fortunato de Almeida, Promoclube
Fotografia D. Sancho I, História de Portugal, Fortunato de Almeida, Promoclube
História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Albino Forjaz de Sampaio, Livrarias Aillaud e Bertrand
Cantiga de amigo, (Ai eu, coitada…) História da Literatura Portuguesa Ilustrada, D. Carolina Michaelis de Vasconcelos

J.M.S

José Barroso

sábado, 1 de julho de 2017

O prazo da Paradanta

Rua e casas da Paradanta; foto do Carlos Matos

Em 1836, realizou-se o "Inventário dos Bens e Acções do Extinto Convento das Religiosas Franciscanas", de São Vicente da Beira. A dado passo escreveu-se:


«Um prazo que consta do Casal do Povo da Paradanta, freguesia desta vila de São Vicente da Beira, que parte com a divisa do termo em outro tempo da Covilhã e hoje do Fundão, águas vertentes, e do outro lado com fazenda da antiga religiosa Ângela do Céu e com fazenda de Manuel Antunes do povo dos Boxinos, cujo casal as religiosas do Convento de São Francisco desta vila de São Vicente da Beira aforaram em "fathoerim perpetuo", enquanto o Mundo durar, aos moradores do dito povo da Pradanta, a saber, Brás Leitaõ e sua mulher, a Manuel Mendes e sua mulher, a João Antunes e sua mulher, a Mateus Fernandes e sua mulher, a Iria Francisca viúva e aos mais moradores, pelo foro anual de cinquenta e um alqueires e meio de centeio, meados de trigo, em cada ano, e mais um carneiro vivo e um bode capado, três galinhas e duas dúzias de ovos, tudo pago em dia de Nossa Senhora de Agosto de cada ano, por escritura feita nas Notas do Tabelião Manoel de Andrade Azevedo desta vila, em doze de abril de mil setecentos e vinte e três. Cujo contrato foi avaliado pelos louvados fazendeiros deste inventário, abatido o foro, em trezentos e oitenta e sete mil e seiscentos réis.»

Vocabulário:
aforar - arrendar
águas vertentes - águas que correm encosta abaixo; neste caso, a propriedade ia do vale até ao cume do monte, cume que era o limite do concelho de S. Vicente da Beira com o concelho do Fundão
alqueire - medida de capacidade, neste caso para sólidos, correspondente a 15,48 litros, em S. Vicente da Beira (a medida variava de concelho para concelho).
bode - macho caprino adulto
foro - renda; os moradores da Paradanta pagavam 51,5 alqueires meados de trigo e centeio; considerando que um foro correspondia a um oitavo do que a propriedade podia produzir, o prazo da Paradanta produziria cerca de 400 alqueires, o que correspondia a mais de 6.000 litros de semente.
louvado - testemunha
Nossa Senhora de Agosto - dia 15 de agosto, em que se comemora a Assunção de Nossa Senhora; neste dia é que se pagavam quase todas as rendas, nesta região
prazo - propriedade arrendada
tabelião - notário

José Teodoro Prata

terça-feira, 13 de junho de 2017

Jerónimo

Ao contrário do que eu a certa altura conclui e aqui escrevi, o apelido familiar Jerónimo não vem do Jerónimo Duarte, filho do Fraga, que casou no Casal do Pisco. E consequentemente os Jerónimo não são os descendentes diretos dos Fraga (são os Teodoro).
A sua origem é a que se segue. Destes até à atualidade mediaram poucas gerações. Prometera a alguns parentes acabar esta genealogia, mas falta-me parte da atualidade, sobretudo o ramo do Zé Eletricista, Luís Jerónimo(Revelho)...

O documento regista o batismo de António, filho de Jerónimo Lopes e Antónia do Carmo, em 1822.

Aproveito para dar notíca de mais uma etapa da vida do ator Albano Jerónimo.


José Teodoro Prata

terça-feira, 6 de junho de 2017

Histórias do meu pai

Quando o meu pai era pequeno o meu avô trabalhava na casa de uma das famílias mais ricas cá da terra e por isso era onde a professora ficava hospedada. Nessa altura o meu pai ainda não tinha idade para entrar para a escola, mas a mãe foi pedir à filha do patrão que falasse à professora a ver se o deixava entrar, só para o tirar da rua. A professora disse que sim, que podia ir, mas que levasse um banquinho de casa, que não tinha onde o sentar. E assim foi. Arranjaram um banco e o menino passava o dia sentado ao lado da secretária da professora, com a pedra no colo, e lá ia fazendo uns riscos com o ponteiro, a imitar as letras e os números que a professora fazia no quadro para os outros copiarem.
Mas aquilo era um inferno para o cachopinho, avesado a andar a correr pelas ruas ou a apanhar peixes na ribeira. Sempre que ouvia os chocalhos dos rebanhos a passar no caminho, ao pé da escola, e os pastores atrás, a assobiar, ficava numa tristeza tão grande que só visto. Mas ficava calado e assobiava baixinho, só para ele, a sonhar com o dia em que também pudesse ter um rebanho de cabras e andar por lá o dia todo com elas. Uma vez chegou a casa a chorar e voltou-se para a mãe:
            - Também não sei porque é que eu nasci tão desgraçadinho e os outros cachopos são tão felizes!
            - Porque é que dizes uma coisa dessas, filho?
            - Então não vejo os outros atrás das cabras, e eu ali o dia todo, assentado num banco a olhar p’ó cu da professora?

Mal fez o exame da 4ª classe começou logo a trabalhar como os da idade dele: à frente das vacas, atrás das cabras, a colher azeitona ou aos molhos de mato e de lenha. Era o que havia para fazer, e às vezes nem havia domingos nem dias santos. Havia alturas que já andava tão farto daquela vida que até sentia saudades dos tempos que passou sentado no banquinho ao lado da professora. Um dia, ainda bem cedo, chegou a casa todo derreado debaixo de um molho de mato que tinha ido roçar lá para uma lonjura que só visto. Antes de o traçar e fazer a cama ao porco foi beber o café, que ainda estava em jejum. Nisto, a mãe ouve-o a lamuriar-se:
            - Sou um desgraçadinho! Os meus primos ceguinhos é que são felizes, que nem têm que ir ao mato nem à lenha. Quem me dera ser com’ a eles!
A mãe nem queria crer no que estava a ouvir:
- Benza-te Deus, filho! Tu nem digas ma coisa dessas que o Nosso Senhor ainda te castiga!
- Digo pois, que s’ eu fosse ceguinho com’ a eles ainda estava na cama a estas horas…

Sempre gostou muito de cagarrapos. O dia em que enchiam as farinheiras, por alturas da matação, era uma festa. À ceia eram sempre dois ou três, ainda quentinhos, com um naco de pão por cima da sopa.
Uma vez, quando se levantou da cama, no dia a seguir, foi a correr chamar a mãe:
 - Eh mãe, venha cá aqui à cozinha, que está uma farinheira caída no meio do chão!
 - Deixa lá! É da maneira que já temos conduto p’rá noite!
O pior é que, durante quase uma semana, todas a manhãs aparecia uma farinheira caída por baixo do fumeiro.
- Rais parta o diabo, qu’inté parece que m’ imbruxaram as farinheiras! - Lamentava-se já a mãe.
- Anda pr’aí mistério; ai anda, anda… - Respondia o filho, ansioso que chegasse a ceia.
Mas um dia a mãe, estranhando que se andasse a levantar da cama primeiro que todos, foi espreitá-lo e descobriu que era ele que andava a afrouxar os nós das baraças das farinheiras.  


Um ano, já era pastor sozinho, começaram a usar-se as camisas de meia manga. Havia cá na terra uns rapazes do ano dele que tinham uma tia em Lisboa e que, pela festa do Santiago, trouxe uma dessas camisas da moda para cada um deles.
            No dia da festa, quando viu os amigos com as camisas novas, não tirava os olhos delas, de tão lindas que as achava. À noite moeu o juízo à mãe:  
            - Sou um desgraçadinho que nem tenho uma camisa de manga curta, com’os outros cachopos! Corte-me lá as mangas a esta aqui.
            - Tu vê se tomas tino e não m’atentes o juízo! E depois no inverno, com’ é que fazes? Apegas outra vez as mangas à camisa?
            Calou-se. Quando foi ao outro dia, que saiu com as cabras, levou um podão bem afiado e, mal chegou lá a um certo sítio, despiu a camisa, pôs as mangas em cima dum cepo e cortou-as pelo meio. Passou o dia numa ânsia, a ver quando é que o Sol descia para arrecadar o gado na corte. Mal entrou em casa e a mãe encarou com ele, ia caindo o Carmo e a Trindade; mas ele, bem ralado! Engoliu a ceia à pressa e saiu porta fora com as mãos nos bolsos, a assobiar, todo inchado, para que todos lhe pudessem ver bem a camisa de manga curta.

Era assim, o meu pai! E o que a gente se divertia a ouvi-lo contar estas histórias à roda do lume…

M. L. Ferreira

domingo, 28 de maio de 2017

Romaria à Senhora da Orada


Prometia ser um rico dia de chuva, mas só caíram uns barrufos, durante a noite.
Na curva da estrada, os feirantes.


Os bombos que ouvia enquanto me aproximava da capela.


Na fonte, as filas do costume, para refrescar o corpo e o espírito.


A procissão já terminara. Havia mais dois cestos como este.


O GEGA animou a festa com uma exposição de fotografias de romarias passadas, 
algumas há uns bons anos.


A Senhora, linda como sempre!

José Teodoro Prata

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Ex votos

Todos nós somos de uma maneira ou outra, religiosos. Mais não seja crermos na ciência humana. Os partidários do agnosticismo não crêem naquilo que não vêm, o intangível. Apesar de aparentemente não acreditarem na existência de um Ser criador de todas as coisas, crêem na ciência. São Tomé só acreditou quando viu o Mestre.
         Ao contrário dos agnósticos, os ateus não seguem qualquer religião; para eles, Deus não existe, em contrapartida, há os que acreditam numa divindade.
Católicos, muçulmanos, judeus, adoram um Deus único. “Latria”. Há povos que aceitam vários deuses.
Os católicos muitas vezes “negoceiam” com a divindade oferecendo contrapartidas pela graça recebida; podem ser velas, dinheiro, ex votos…
Quem numa hora difícil nunca pronunciou a palavra Deus? Valha-me Deus, Deus nos valha, Deus nos acuda…
A igreja da Misericórdia, dedicada ao Senhor Santo Cristo, guarda umas largas dezenas de ex votos, formas de agradecimento por graças alcançadas. Nela figuram dois belos quadros: um oferecido pelo visconde de Tinalhas e o outro pela família Robles Monteiro.
A maioria representa órgãos do corpo humano feitos em cera: braços, pernas, corações… Cada figuração representa a cura daquele órgão figurado.
Também se encontram figurações humanas completas, representam crianças que foram curadas dos seus males. A criança manifesta a dor através do choro, mas não consegue dizer qual o órgão afectado, então os progenitores oferecem à divindade uma figura humana.
Seja na igreja do Senhor Santo Cristo ou no santuário da Senhora da Orada, todos os objectos ex votos estão dependurados nos locais mais nobres do templo.
Na igreja da Misericórdia existe um divisa militar oferta de alguém que foi para a guerra e voltou são e salvo. Também se exibe um grande cirio.
Esta fé em algo que nos transcende já acontecia nos santuários da antiga Grécia. Os nossos reis, em alturas de aflição, agradeciam a Deus, através da construção de grandes monumentos: Real Convento de Mafra, Mosteiro da Batalha… No nosso tempo, ainda há muitos crentes que continuam a oferecer à divindade da sua devoção peças votivas.
Em Santuários como Fátima, Aires, Senhora da Póvoa, existem expostos em lugar apropriado peças de roupa, fotografias, ourivesaria e todo o género de recordações.
         Nos grandes ou pequenos santuários, como da Senhora da Orada, em dias de romaria, os crentes exibem velas acesas como agradecimento. Não se perpetuam no tempo. Enquanto dura a cerimónia, a súplica, o pedido ou o agradecimento pela graça recebida, as velas alumiam, é a forma de pagamento pela graça que a divindade concedeu.
Tudo isto está enraizado nos cultos de raiz popular.    
O Homem, ser finito, pelas suas fragilidades e dores, é limitado. Por isso tem necessidade de recorrer à acção benevolente dos santos, eles são os mediadores entre Deus e o Homem. Estas situações acontecem quase sempre quando a esperança na ciência se esgotou, voltando-se a pessoa para o além, para conseguir o milagre, por intercessão do santo a que se recorre.
A principal razão da existência dos ex votos é a gratidão pela graça concedida, mas para isso o pedido tem que ser acompanhado de muita fé. Porque a fé, nas obras se vê.

J.M.S





M. L. Ferreira

domingo, 21 de maio de 2017

Béjar

Na passada quinta-feira, fui de visita de estudo a Espanha. A manhã foi passada em Moraleja, num intercâmbio escolar, e depois rumámos a Salamanca. Logo a seguir a Plasencia, surgiu-me aquela que eu conhecia apenas dos registos paroquiais: Béjar. Ao contar a história da vinda dos antepassados do Robles Monteiro para a Covilhã, esqueci-me de fotografar, mas esta é a paisagem vista da autoestrada.



O percurso aqui marcado passa na fronteira de Marvão (Galegos), mas nós (SVB) atravessaríamos nas Termas de Monfortinho e dali diretos a Plasencia. É perto.
Béjar é uma cidade de montanha. Ainda havia neve, não tanta como na foto. A abundância de água e de gado ovino fizeram surgir uma forte indústria de lanifícios, daí a contratação do João António Robles (roble é carvalho, em castelhano) para vir ensinar os operários portugueses, no tempo do Marquês de Pombal.
O meu colega, professor de Espanhol, contou-me que ali se situa a praça de touros mais antiga de Espanha, ainda de planta retangular. A meia encosta, existe uma aldeia de montanha com uma arquitetura tradicional, muito bonita (vê-se da autoestrada). Anualmente, realiza-se em Béjar um importante festival de blues.


Este registo refere o batismo de Josefa, nascida a 28.10.1812, filha de Bernardo Ribeiro Robles, da Covilhã, e Antónia Raimunda Ribeira, de São Vicente da Beira, neta paterna de João António Robles e Belchior Gomes, naturais de Béjar, Espanha, e neta materna de José Custódio Ribeiro, de SVB, e Maria Hipólita Cassiana, de Zalamea, Espanha.
Acima referi que este Robles e a sua esposa eram os antepassados do Robles Monteiro. Mas sê-lo-ão também de pessoas ainda a viver em São Vicente.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Aos domingos

O domingo era o dia do descanso das lides do campo e da confraternização com a família. Era sobretudo religioso: ir à missa era um compromisso a que ninguém se atrevia a faltar. Envergava-se o melhor fato. As mulheres cobriam a cabeça com um véu arrendado. A igreja enchia-se: os homens ao fundo, no coro e nos camarins, as mulheres nos bancos e à frente as crianças, nos primeiros bancos e nos degraus de madeira dos altares, sob o olhar vigilante das catequistas, a Menina Amélia, a Menina Graça a tia Estela Passaraça e a Menina Maria de Jesus. As meninas ficavam todas juntas, com os seus vestidinhos engomados e com o lencinho de assoar bordado, preso na mão. A missa demorava, algumas pessoas adormeciam, no abandono do corpo enfim repousado e aconchegado pelo calor e pelo já longo sermão, previamente elaborado, do pároco.
À saída da missa todas as pessoas se concentravam em redor da igreja, agrupando-se para cumprimentar os familiares e para por a conversa em dia. Lembro-me de ser muito pequena e olhar em redor e ver um mar de saias compridas e já não saber qual era a da minha mãe. Cumprimentavam-se os familiares, reviam-se tios e tias, avós e netos, recebiam-se carinhos e palavras calorosas. Os homens dirigiam-se para a taberna, com os filhos ainda rapazitos a reboque e confraternizavam, acompanhados de um copito de vinho, onde por vezes se perdiam, até tarde.
No muro da praça, alguns agricultores vendiam fruta da época. A mãe comprava-nos um dióspiro ou uma romã a cada um que sabiam a pouco e nos ajudava à subida da quelha, no regresso a casa. E no tempo das melancias, era com cada uma, enormes, vermelhinhas e suculentas. Estas, era o pai que as comprava e carregava ao ombro, quelha acima.
Da parte da tarde, por vezes, íamos visitar os avós maternos à Oriana. Fazenda enorme soalheira e fértil situada na parte sul da vila. A casa ficava situada mesmo junto à estrada nova, pelas traseiras e a frente virada para sul, com uma varanda corrida de madeiras cruzadas em losangos, entrelaçadas por trepadeiras, cravos e cravinas bem cheirosas. As flores preenchiam também parte dos muros que dividiam os leirões e que em certas alturas do ano se enchiam de cores.
Juntávamo-nos aos tios e tias, que ficavam a conversar, enquanto os miúdos se entretinham nas brincadeiras. Às tantas, o avô João Prata pedia à avó para ir ao forro buscar fruta para dar aos netos. A avó Doroteia subia os degraus largos de madeira da escadaria que levava ao forro. Lá em cima no soalho, estendiam-se as maçãs sobre a palha que assim se conservavam nos meses de inverno. Encostadas à parede, arcas enormes de madeira onde eram guardados os cereais. Ao lado, as bilhas de zinco com o azeite. Então a avó descia a escada com uma abada de fruta e distribuía pelos pequenos. Mas estes, rebeldes e ainda insatisfeitos, corriam pelos leirões abaixo que se estendiam desde a casa até ao ribeiro, férteis, salpicados de cores, transformados em pomares onde as laranjeiras, carregadinhas de laranjas, abundavam.
No lameiro, altos arbustos em flor, como o noveleiro, carapeteiro e roseiras, ladeavam a represa que ligava o ribeiro ao tanque a transbordar de água límpida, para a rega. Era ali também que as mulheres da casa lavavam a roupa, por vezes na companhia de amigas mais próximas, tempo também aproveitado para conviverem e trocarem confidências.
Os pequenos assaltavam as laranjeiras e tiravam a barriga de misérias e iam atirando algumas aos mais pequenos, que ficavam em baixo, à espera. A avó Doroteia perseguia-os, gritava com eles e punha-os em fuga.
A avó era uma mulher que vivia no seu mundo silencioso, habituada ao trabalho e à obediência ao marido. O avô era um homem inteligente e trabalhador, mas firme no carácter. Deu o seu melhor aos filhos, trabalho e também a educação possível para a época e permitiu-lhes crescer trabalhando no amanho das terras, que eram o sustento da família, ou aprendendo um ofício.
Noutros domingos íamos visitar os avós paternos, no Casal da Fraga: o avô Francisco e a avó Maria do Rosário. Eram pessoas humildes e com um enorme coração. Havia sempre uma fatia de pão com queijo fresco para os netinhos.
Em cada família das tias do Casal e na nossa, havia um domingo por ano que era o dia da matação. Toda a família se juntava: logo de manhã, os homens chegavam para matar e pendurar o porco, mais tarde chegavam as mulheres que, após um farto almoço com toda a família, iam lavar as tripas ao ribeiro, cortar as carnes, temperá-las e tratar dos enchidos. Após uns dias era ver o fumeiro junto ao tecto da cozinha por cima da lareira, com as morcelas, as chouriças, os chouriços e as farinheiras, que emanavam um cheirinho de fazer crescer água na boca.
Também havia o domingo de Páscoa, da Ressurreição. As famílias limpavam cuidadosamente as casas e enfeitavam-nas com flores. O padre Branco com as suas vestes brancas levava a água benta. O Sacristão, o sr. António Maria, com a sua batina vermelha, levava a Cruz de Cristo, toda enfeitada com flores. Os donos da casa mais os familiares próximos faziam um círculo à volta da sala e era-lhes dado o Cristo a beijar. A casa era abençoada pelo Padre, com a água benta. Os pequenos corriam de casa em casa a beijar Nosso Senhor e iam comendo e enchendo os bolsos com os doces e tremoços, que cobriam as mesas.
E no domingo da Senhora da Orada? Era uma alegria. Na véspera tratava-se da merenda, onde não faltava o frango frito e os ovos verdes. Na manhã de domingo, todas as veredas, caminhos e estradas, desde São Vicente e povoações dos arredores, se enchiam de peregrinos, carregados com as cestas do almoço, na mão ou à cabeça, cantarolando, em direcção à ermida. Ao aproximarem-se, já se ouvia o padre e os fiéis a rezarem o terço. Toda a zona envolvente se enchia de barraquinhas, onde se vendiam guloseimas e brinquedos para regalo da pequenada. As mães não podiam deixar de comprar aos pequenos a Nossa Senhora de Açúcar, que era pendurada ao pescoço por uma fita e depois comida no regresso a casa. As pessoas enchiam o terreiro da capela, para ouvir a missa, sob a sombra das grandes amoreiras, no chão, um tapete de flores branquinhas. A seguir à procissão, as famílias procuravam-se e juntavam-se para almoçar: estendia-se uma manta de trapos no chão, à sombra de pinheiros ou amieiros, no meio de mato florido ou relva, o barulho da água a cantarolar no ribeiro e dos passarinhos a cantar. Por cima estendia-se a toalha, onde se colocava a merenda. As famílias sentavam-se em redor, comia-se com vontade e convivia-se.
Quando já era mais crescida, nos domingos à tarde e com a difícil e conseguida permissão dos pais e com a promessa de regressar antes de se fazer noite, ia sair com as minhas amigas. As conversas aconteciam na Praça, na Fonte Velha e por vezes no café da beira da estrada, onde bebíamos uma coca-cola, uma Pepsi ou uma Seven-Up, acompanhada com um prato de amendoins. Quantos namoros começaram assim!
Dávamos passeios na estrada nova, por vezes com alguns rapazes no encalço, uns metros atrás. Mandavam olhares comprometedores e piropos. Havia risos entre os grupos, por vezes trocistas. Nas árvores da estrada eram gravados nomes, corações, juras de amor.
Sentávamo-nos na Praça e jogávamos ao anel e ao lenço, com os rapazes. Era o ponto de partida para uma aproximação entre rapazes e raparigas.
À tardinha quase ao por do sol com o tempo bom, havia baile na Praça, no cantinho, ao pé do café da tia Janja. O César montava a aparelhagem que ligava ao café e punha o funil na árvore do canto da Praça que se enchia com músicas e alegria.
As raparigas sentavam-se de um lado e os rapazes do outro, dançávamos Rock and Roll em grupo, slows e corridinhos. Quando a música era para dançar a dois, os rapazes faziam sinal à rapariga ao longe, ou iam busca-la, se se sentissem seguros. Dançáva-se ao som dos ABBA e outras músicas então em voga. Era então o tempo do despertar de novas emoções, de incendiar as paixões, dos encontros e desencontros.
Quando estava muito frio e chuva, o baile fazia-se num salão ao pé da capela de São Sebastião. Este era também utilizado para teatro e projecção de filmes, o cinema ambulante. As bancadas eram feitas com tábuas de madeira corridas, o filme era projectado num grande papel branco ou um pano a cobrir o palco. Lembro-me do filme que me impressionou e vi naquela sala: O Tubarão. Uma delícia e uma saudade enorme daqueles domingos.


Tina Teodoro

domingo, 14 de maio de 2017

O Espírito Santo

Publiquei, a 3 de abril de 2011, um artigo intitulado Os franciscanos em São Vicente. Recupero a parte inicial:

«A presença franciscana remonta, na nossa terra, possivelmente, ao século XV ou XVI. Quase todos os templos da Vila são desses finais dos tempos medievais e inícios da Idade Moderna, exceto a Igreja Matriz (erigida na época da fundação da povoação) e a Orada (é muito mais antiga que a Matriz, mas a atual capela também foi construída naquele período).
Nesses fins da Idade Média, São Vicente terá alcançou o seu máximo desenvolvimento económico e social. Houve então riqueza para levantar templos, palácios e equipamentos públicos, como a Câmara Municipal e o Pelourinho.
A capela de São Francisco não foge a esta regra. O grande arco de volta perfeita, no seu interior, com a aresta cortada, é, na nossa Beira, tipicamente quinhentista. Esteve, até há poucos anos, pintado de azul.
Mas o templo não foi, desde o início, de devoção a São Francisco, mas sim a Santo António, ele próprio franciscano e contemporâneo do fundador da Ordem Franciscana, com quem ainda se encontrou, na Itália que depois o adotou como seu e onde se tornou um dos santos maiores da Cristandade.
Foi, pois, a capela dedicada a Santo António, até 1744. Nesse ano, veio a São Vicente um grupo de frades franciscanos pregar uma missão. E sementeira foi de tal modo fecunda que, nos anos seguintes, a capela deixou de pertencer apenas a Santo António para a ser, sobretudo, dedicada a São Francisco. Nela teve sede, logo de seguida, a Irmandade da Ordem Terceira…»


São Francisco recebendo a bula da criação da Ordem Terceira das mãos do Papa Inocêncio III. 
Procissão dos Terceiros, 2010 ou 2011.

Ando a ler o livro FRANCISCO, Desafios à Igreja e ao Mundo, do Pe. Anselmo Borges, e ontem encontrei algo que diz diretamente respeito a São Vicente da Beira. Cito uma parte do capítulo “As «sopas» do Espírito Santo”, páginas 242 e 243:

            A propósito das festas do Divino Espírito Santo, nos Açores, escreveu o Pe. Anselmo Borges:
            «Se formos à procura da origem destas festas, encontramos um monge célebre do século XII, Joaquim de Fiore, que deu o joaquinismo. Segundo ele, a História do mundo está dividida em três idades: a Idade do Pai ou da Lei, que é a idade da servidão e do medo; a Idade do Filho, que é a idade da submissão filial; a Idade do Espírito Santo, na qual se ia entrar, e que é a idade do Amor, da Liberdade e da Fraternidade.
[Segue-se um parágrafo em que se refere o eterno conflito no seio da Igreja entre o lado institucional e hierárquico e o lado espiritual e fraternal; a esta nova mensagem revolucionária tinham aderido os franciscanos espirituais, desgostosos com os papas que abafavam o Espírito. Os franciscanos espirituais viriam a abrir um convento na serra da Arrábida.]
            Em 1282, D. Dinis casa com D. Isabel de Aragão, a futura Rainha Santa. (…) Toda a família da nova rainha de Portugal era partidária dos frades espirituais e a própria rainha possuía um conceito franciscano de vida: simplicidade, despego dos bens terrenos, amor aos pobres e fracos. Santa Isabel protegia os franciscanos, e foi por seu intermédio que entrou um culto especial ao Espírito Santo. Fundaram-se confrarias do Espírito Santo, irmandades de socorro mútuo, e instauraram-se as Festas do Império do Espírito Santo, nas quais se celebrava o Pentecostes, comemorando a descida do Espírito santo sobre os Apóstolos.

            Ora São Vicente da Beira, embora nos últimos séculos não tenha nenhum culto ao Espírito Santo, teve-o na Idade Média, precisamente na sequência da difusão do joaquinismo em Portugal, pelos franciscanos protegidos da Rainha Santa. É que, em 1362, menos de 100 anos após a chegada de Isabel de Aragão a Portugal, existia na Vila a albergaria do Espírito Santo, certamente gerida por uma confraria do Espírito Santo. Pensa-se que foi esta irmandade que deu origem à nossa irmandade da Misericórdia, na sequência de nova dinâmica fraternal criada por uma outra rainha, D. Leonor, nos finais do século XV. Os fins eram os mesmos e talvez até a albergaria da Misericórdia, situada no início da Rua da Misericórdia, fosse a mesma antes chamada do Espírito Santo.

José Teodoro Prata

sábado, 22 de abril de 2017

Alcunhas 2

Já lai vai mais de um ano que o Zé Barroso publicou aqui no blogue um artigo com as alcunhas usadas na nossa terra. A lista foi sendo completada por vários colaboradores e, no final, já tinha mais de trezentas.
Uma das perguntas que se colocou na altura foi o que fazer a seguir. Parece que não se chegou a nenhum consenso, mas penso que era interessante escrever-se uma pequena história sobre a origem de cada uma. Algumas são tão óbvias que pouco há a dizer; outras perderam-se no tempo e já ninguém se lembrará da sua origem; mas muitas terão por trás episódios interessantes e engraçados.  
Acho que vale a pena tentarmos. Para já, aqui fica a minha colaboração, incluindo também algumas alcunhas da Partida que acho deliciosas:

O Mil Homens
Quando andava na escola todos me chamavam a Mil Homens. Eu ficava muito envergonhada porque achava que era um nome muito feio.
Só mais tarde é que fiquei a saber a origem daquela alcunha e a partir daí senti sempre um orgulho muito grande nela: O meu avô andou na Guerra e quando regressou foi recebido como um herói; mas vinha tão traumatizado que não conseguia falar noutra coisa que não fosse naquilo que por lá passou. Todas as conversas iam dar ao mesmo: as muitas tropas do seu batalhão; os muitos homens nas trincheiras; os muitos mortos pelo chão. Referia-se sempre a eles utilizando a expressão «Mais de mil homens!» um número que ele, analfabeto, achava ser o maior para definir todas as atrocidades que por lá viu e dificuldades que passou. Por causa disto puseram-lhe o Mil Homens e, a partir daí, toda a família ficou conhecida por essa alcunha, até hoje.

O Quinta Casa
Antigamente também não havia grandes farturas na Partida, mas quase toda a gente tinha um bocadinho de terra para tratar uma horta. E havia por cá até algumas casas ricas, com bons lameiros, olivais, terras de pasto e de pinhal que chegavam para eles, para vender e davam trabalho a muita gente.
Um dia o Ti Manuel Lopes pôs-se a deitar contas ao que cada um tinha e, lá para com os seus botões, ia sentenciando qual era a casa mais rica, e a que vinha a seguir, e por aí fora até chegar à dele que, pelas suas contas, estava em quinto lugar. Começou então a gabar-se, para quem o queria ouvir, que a quinta casa maior da Partida era a dele.
A partir daí todos começaram a chamar-lhe o Quinta Casa.

O Conde Caniço
Também tinha muito de seu, o Ti Domingos Nunes. Entre as várias propriedades que possuía, também era dele o Caniço, uma das melhores terras da Partida. Tinha tanto orgulho naquela propriedade que não se calava: «O meu Caniço é a melhor terra que aí há. Nem o conde!».
Tanta vez repetiu aquilo que começaram a chamar-lhe o Conde Caniço.

O Mata Nosso Senhor
Morava no Casal, o João Teodoro. Um dia deu-lhe a preguiça e atrasou-se para vir para a escola. Com medo de apanhar alguma reguada veio o caminho todo a correr até à Vila. Quando chegou à Praça e viu que já toda a gente tinha entrado, correu tanto que até parecia que vinham atrás dele.
Nesse dia o Ti António Mosca andava a podar as olaias e quando o viu naquela pressa, para brincar com ele, desatou a berrar lá de cima da escada: «Agarrem-no! Agarrem-no que foi ele que matou o Nosso Senhor!».
O cachopinho desatou a correr ainda mais e a partir desse dia toda a gente começou a chamar-lhe o Mata Nosso Senhor.

O Nita
Morreu cedo, a mulher do Ti Francisco Candeias, e quem lhe valeu para o ajudar a criar os três filhos, todos ainda crianças, foi a Ti Rita do Manha, tia dos meninos por parte da mãe.
O João, que era o do meio, não saía da casa da tia que o tratava como a um filho e ele também se afeiçoou muito a ela. Mas, como era ainda pequeno e tinha dificuldade em falar, não conseguia dizer o nome dela e, em vez de Rita, chamava-lhe Nita. Foi daí que começaram a chamar-lhe o João Nita.

O Caneco
Era ainda criança e a mãe já o mandava a levar o jantar ao pai quando andava por dia. Uma vez passou por um homem que viu que ele ia todo derreado com a cesta e disse-lhe assim:
- Ó cachopo, olha que tu endireita-me bem a cesta, que ainda entornas o jantar ao teu pai!
- Não entorno não senhor, que hoje até cá levo um caneco de vinho!
Foi quanto bastou para começarem a chamar-lhe o Emílio Caneco…

M. L. Ferreira